Artigo publicado no Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais 223
A aprovação da Lei 12.403/11 demonstra que a discussão serena e racional de propostas legislativas produz bons resultados. O texto final é produto de longos debates acadêmicos e parlamentares, iniciados em 2001, com a apresentação da primeira proposta de revisão das regras sobre cautelares penais por uma comissão de juristas presidida pela professora Ada Pellegrini. Anos depois, o projeto foi apontado como uma das quatro propostas mais importantes para a reforma processual penal pelo 1º Pacto por um Judiciário mais Rápido e Republicano, firmado pelos três Poderes da República em 2004. Passado mais um longo período, a proposta foi finalmente aprovada e sancionada na integra.
Os textos e artigos trazidos por esse Boletim sobre o tema esmiúçam os diversos aspectos da nova lei, e certamente seus efeitos serão ainda objeto de saudáveis controvérsias. De qualquer forma, a criação de medidas cautelares além da prisão é bem vinda, porque permite a superação da medíocre dicotomia do processo penal, pela qual o juiz não dispunha de alternativa para assegurar a ordem processual e a aplicação da lei penal diferente da prisão. Era a prisão ou nada. Alguns magistrados ainda lançavam mão de outros instrumentos, como a retenção de passaportes ou a proibição de freqüência a determinados lugares, mas a aplicação destas cautelares inominadas sempre foi polêmica e cercada de indagações sobre sua legalidade.
O texto legal põe fim à insegurança ao possibilitar a aplicação de cautelares diferentes da prisão nos artigos 317 e 319 do Código de Processo Penal.
Digna de nota na nova lei a vedação da prisão cautelar em crimes com penas iguais ou inferiores a quatro anos. Fica afastada a privação da liberdade processual nos casos em que a pena final será restritiva de direitos ou multa, consagrando a idéia de que o instrumento cautelar deve ser proporcional à eventual pena. Também merece destaque o fato da nova lei reafirmar o caráter excepcional da prisão processual ao determinar que ela será determinada apenas quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar, exigindo do juiz uma fundamentação a mais quando da decretação da preventiva: a razão da dispensa de outras cautelares.
Dentre inúmeras outras novidades, ainda é relevante mencionar a definição dos institutos do flagrante e da preventiva como sucedâneos. Pelo texto legal, o magistrado, ao receber o flagrante, deve relaxar a prisão, transformá-la em preventiva ou conceder liberdade provisória. Com isso, o réu privado de liberdade no processo ou está preso em flagrante - situação efêmera - ou está em prisão preventiva. Fica explícita a impossibilidade do réu ficar preso por dois motivos (i) pelo flagrante e (ii) pela preventiva, bem como fica afastada a estranha, inusitada, mas recorrente situação anterior, na qual o magistrado revogava a prisão preventiva pela ausência dos requisitos do artigo 312 e o réu continuava preso pelo flagrante inicial.
Em suma, a nova lei merece todos os elogios. Mas há um ponto que exige reflexão: a ausência de previsão da detração diante da aplicação de medidas cautelares distintas da prisão. O Código Penal dispõe, no artigo 42, que será computado, na pena privativa de liberdade e na medida de segurança, o tempo de prisão provisória, no Brasil ou no estrangeiro – a detração. Se o réu aguardou preso preventivamente o andar do processo, é natural que esse tempo seja descontado da pena final, ainda que a qualidade e natureza das prisões cautelar e definitiva seja distinta. A supressão do direito de locomoção para salvaguardar o processo será compensado na pena final.
Ocorre que não há previsão legal da detração nos processos em que a cautelar aplicada é distinta da prisão. Para os casos em que o réu for submetido, por exemplo, à prisão domiciliar ou monitoramento eletrônico durante a instrução, a lei não explicita desconto na pena final, o que parece inadequado. Se a detração da prisão tem por fundamento o principio da equidade e a vedação ao bis in idem[1], deve o instituto ser estendido a qualquer hipótese de intervenção do Estado em direitos do cidadão, seja a liberdade de locomoção, seja outro qualquer.
Com base nisso, o projeto de alteração do Código de Processo Penal (PLS 156), atualmente em discussão no Congresso Nacional, prevê que "o tempo de recolhimento domiciliar será computado no cumprimento da pena privativa de liberdade, na hipótese de fixação inicial do regime aberto na sentença (art.607) e que substituída a pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, nesta será computado o tempo de duração das medidas cautelares" previstas pela proposta (parágrafo único).
Da mesma forma, o Código Penal português prevê o desconto total do tempo de pena de prisão caso o réu tenha sofrido, no curso do processo, detenção, prisão preventiva, ou obrigação de permanência na habitação (art.80º, 1, grifos nossos)[2]. Também o Código Penal espanhol estabelece que se abonarán, en su totalidad, para el cumplimiento de la pena impuesta, las privaciones de derechos acordadas cautelarmente (seccion 6ª, art.58, 2) e que cuando las medidas cautelares sufridas y la pena impuesta sean de distinta naturaleza, el Juez o Tribunal ordenará que se tenga por ejecutada la pena impuesta en aquella parte que estime compensada (art.59, sem grifos)[3].
Enfim, os textos citados revelam a adequação da previsão da detração para cautelares distintas da prisão, a sugerir a revisão pontual do Código Penal para a adequação da detração à essa nova realidade legislativa.
No entanto, a ausência de menção à detração para cautelares distintas da prisão no ordenamento não impede sua aplicação pelo juiz, que por analogia pode beneficiar o réu com uma interpretação amplie a abrangência do instituto para além da prisão. Nos parece possível, por exemplo, descontar o tempo passado em prisão domiciliar da eventual pena de prisão definitiva em regime aberto, ou o período processual no qual o réu foi proibido de freqüentar determinados lugares da pena restritiva da mesma natureza, se essa for a condenação. Caso a cautelar e a pena tenham naturezas distintas – como na hipótese da cautelar de prisão domiciliar e a pena de prisão em regime fechado – o tempo descontado poderá ser o mesmo, mas é possível construir pela jurisprudência uma formula que permita deduzir proporcionalmente – com base na razoabilidade - algo da sanção para detrair a cautelar aplicada.
Mas, a par de questões pontuais como essas, a nova lei é bem vinda. Como qualquer novo ato, ainda será debatida e revolvida pelos operadores do direito e pela academia sob todas as perspectivas. No entanto, sua aprovação e sanção integral demonstra como a articulação entre Poderes e a racionalidade podem produzir normas que contribuam para um processo penal mais eficaz e civilizado, que contribua para a segurança pública e, ao mesmo tempo, respeite a dignidade humana e os princípios constitucionais dela decorrentes.
[1] FRANCO, Alberto Silva, BELLOQUE, Juliana. Comentários aos arts.41 a 60 da obra Codigo Penal e sua interpretação, coord. FRANCO, Alberto Silva e STOCO, Rui, 8ª Ed.. São Paulo: RT, 2007, p.277.
[2] Disponivel em http://www.juareztavares.com/textos/codigoportugues.pdf acessado em 12.05.2011
[3] Disponivel em http://www.juareztavares.com/textos/codigoespanhol.pdf acessado em 12.05.2011.
A aprovação da Lei 12.403/11 demonstra que a discussão serena e racional de propostas legislativas produz bons resultados. O texto final é produto de longos debates acadêmicos e parlamentares, iniciados em 2001, com a apresentação da primeira proposta de revisão das regras sobre cautelares penais por uma comissão de juristas presidida pela professora Ada Pellegrini. Anos depois, o projeto foi apontado como uma das quatro propostas mais importantes para a reforma processual penal pelo 1º Pacto por um Judiciário mais Rápido e Republicano, firmado pelos três Poderes da República em 2004. Passado mais um longo período, a proposta foi finalmente aprovada e sancionada na integra.
Os textos e artigos trazidos por esse Boletim sobre o tema esmiúçam os diversos aspectos da nova lei, e certamente seus efeitos serão ainda objeto de saudáveis controvérsias. De qualquer forma, a criação de medidas cautelares além da prisão é bem vinda, porque permite a superação da medíocre dicotomia do processo penal, pela qual o juiz não dispunha de alternativa para assegurar a ordem processual e a aplicação da lei penal diferente da prisão. Era a prisão ou nada. Alguns magistrados ainda lançavam mão de outros instrumentos, como a retenção de passaportes ou a proibição de freqüência a determinados lugares, mas a aplicação destas cautelares inominadas sempre foi polêmica e cercada de indagações sobre sua legalidade.
O texto legal põe fim à insegurança ao possibilitar a aplicação de cautelares diferentes da prisão nos artigos 317 e 319 do Código de Processo Penal.
Digna de nota na nova lei a vedação da prisão cautelar em crimes com penas iguais ou inferiores a quatro anos. Fica afastada a privação da liberdade processual nos casos em que a pena final será restritiva de direitos ou multa, consagrando a idéia de que o instrumento cautelar deve ser proporcional à eventual pena. Também merece destaque o fato da nova lei reafirmar o caráter excepcional da prisão processual ao determinar que ela será determinada apenas quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar, exigindo do juiz uma fundamentação a mais quando da decretação da preventiva: a razão da dispensa de outras cautelares.
Dentre inúmeras outras novidades, ainda é relevante mencionar a definição dos institutos do flagrante e da preventiva como sucedâneos. Pelo texto legal, o magistrado, ao receber o flagrante, deve relaxar a prisão, transformá-la em preventiva ou conceder liberdade provisória. Com isso, o réu privado de liberdade no processo ou está preso em flagrante - situação efêmera - ou está em prisão preventiva. Fica explícita a impossibilidade do réu ficar preso por dois motivos (i) pelo flagrante e (ii) pela preventiva, bem como fica afastada a estranha, inusitada, mas recorrente situação anterior, na qual o magistrado revogava a prisão preventiva pela ausência dos requisitos do artigo 312 e o réu continuava preso pelo flagrante inicial.
Em suma, a nova lei merece todos os elogios. Mas há um ponto que exige reflexão: a ausência de previsão da detração diante da aplicação de medidas cautelares distintas da prisão. O Código Penal dispõe, no artigo 42, que será computado, na pena privativa de liberdade e na medida de segurança, o tempo de prisão provisória, no Brasil ou no estrangeiro – a detração. Se o réu aguardou preso preventivamente o andar do processo, é natural que esse tempo seja descontado da pena final, ainda que a qualidade e natureza das prisões cautelar e definitiva seja distinta. A supressão do direito de locomoção para salvaguardar o processo será compensado na pena final.
Ocorre que não há previsão legal da detração nos processos em que a cautelar aplicada é distinta da prisão. Para os casos em que o réu for submetido, por exemplo, à prisão domiciliar ou monitoramento eletrônico durante a instrução, a lei não explicita desconto na pena final, o que parece inadequado. Se a detração da prisão tem por fundamento o principio da equidade e a vedação ao bis in idem[1], deve o instituto ser estendido a qualquer hipótese de intervenção do Estado em direitos do cidadão, seja a liberdade de locomoção, seja outro qualquer.
Com base nisso, o projeto de alteração do Código de Processo Penal (PLS 156), atualmente em discussão no Congresso Nacional, prevê que "o tempo de recolhimento domiciliar será computado no cumprimento da pena privativa de liberdade, na hipótese de fixação inicial do regime aberto na sentença (art.607) e que substituída a pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, nesta será computado o tempo de duração das medidas cautelares" previstas pela proposta (parágrafo único).
Da mesma forma, o Código Penal português prevê o desconto total do tempo de pena de prisão caso o réu tenha sofrido, no curso do processo, detenção, prisão preventiva, ou obrigação de permanência na habitação (art.80º, 1, grifos nossos)[2]. Também o Código Penal espanhol estabelece que se abonarán, en su totalidad, para el cumplimiento de la pena impuesta, las privaciones de derechos acordadas cautelarmente (seccion 6ª, art.58, 2) e que cuando las medidas cautelares sufridas y la pena impuesta sean de distinta naturaleza, el Juez o Tribunal ordenará que se tenga por ejecutada la pena impuesta en aquella parte que estime compensada (art.59, sem grifos)[3].
Enfim, os textos citados revelam a adequação da previsão da detração para cautelares distintas da prisão, a sugerir a revisão pontual do Código Penal para a adequação da detração à essa nova realidade legislativa.
No entanto, a ausência de menção à detração para cautelares distintas da prisão no ordenamento não impede sua aplicação pelo juiz, que por analogia pode beneficiar o réu com uma interpretação amplie a abrangência do instituto para além da prisão. Nos parece possível, por exemplo, descontar o tempo passado em prisão domiciliar da eventual pena de prisão definitiva em regime aberto, ou o período processual no qual o réu foi proibido de freqüentar determinados lugares da pena restritiva da mesma natureza, se essa for a condenação. Caso a cautelar e a pena tenham naturezas distintas – como na hipótese da cautelar de prisão domiciliar e a pena de prisão em regime fechado – o tempo descontado poderá ser o mesmo, mas é possível construir pela jurisprudência uma formula que permita deduzir proporcionalmente – com base na razoabilidade - algo da sanção para detrair a cautelar aplicada.
Mas, a par de questões pontuais como essas, a nova lei é bem vinda. Como qualquer novo ato, ainda será debatida e revolvida pelos operadores do direito e pela academia sob todas as perspectivas. No entanto, sua aprovação e sanção integral demonstra como a articulação entre Poderes e a racionalidade podem produzir normas que contribuam para um processo penal mais eficaz e civilizado, que contribua para a segurança pública e, ao mesmo tempo, respeite a dignidade humana e os princípios constitucionais dela decorrentes.
[1] FRANCO, Alberto Silva, BELLOQUE, Juliana. Comentários aos arts.41 a 60 da obra Codigo Penal e sua interpretação, coord. FRANCO, Alberto Silva e STOCO, Rui, 8ª Ed.. São Paulo: RT, 2007, p.277.
[2] Disponivel em http://www.juareztavares.com/textos/codigoportugues.pdf acessado em 12.05.2011
[3] Disponivel em http://www.juareztavares.com/textos/codigoespanhol.pdf acessado em 12.05.2011.
Pierpaolo Cruz Bottini é
advogado, sócio do escritório Bottini & Tamasauskas Advogados,
professor de Direito Penal na USP e coordenador regional do Ibccrim. Foi
membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do
Ministério da Justiça e secretário de Reforma do Judiciário (2005-2007),
ambos do Ministério da Justiça.
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