Miguel Reale Júnior (*) para O Estado de S.Paulo
O PT diz-se vítima de perseguição judicial, com violação de princípios de um direito democrático. O partido põe-se na condição de condenado graças à propaganda da imprensa conservadora, manipuladora da opinião pública. Os réus teriam, então, sido responsabilizados por serem os ministros do Supremo suscetíveis à pressão popular. Esse discurso é irracional, como todas as choradeiras de vitimização.
A teoria do domínio do fato, tão falada no julgamento do mensalão, nada mais é do que a busca de critérios para distinguir quem deve ser considerado autor ou coautor e quem cabe ser visto apenas como cúmplice por auxiliar na prática do delito. É uma questão mais velha que a Sé de Braga.
Já o Código Penal de 1830 definia autor como o que comete, constrange ou manda alguém praticar crime, sendo cúmplices os demais que concorrem para a realização do delito. Autor, dizia Tobias Barreto, o maior penalista do século 19, é aquele "cujo fato resultante é obra sua" e cúmplice, quem pratica "simples ato de apoio e coadjuvação", merecedor de pena atenuada. O Código Penal de 1940 não fez distinções, depois introduzidas pela reforma de 1984.
Autor ou coautor, portanto, é o que pratica parte necessária do plano delituoso tendo o domínio do fato, designação surgida na Alemanha com Welzel e aprimorada em 1963 por Roxin. Será autor ou coautor aquele a quem se pode atribuir a ação como obra sua por exercer de modo real a condução de sua realização, podendo interrompê-la ou finalizá-la, pois tem em suas mãos o acontecer do fato delituoso. A distinção entre autor e cúmplice reside, pois, na circunstância de que o primeiro tem o domínio sobre o fato delituoso e, segundo Roxin, uma posição objetiva que garanta esse efetivo domínio, enquanto o cúmplice não detém tal domínio.
Roxin, todavia, contesta a tese de que é autor apenas quem tem o domínio positivo do fato, e não quem tem o domínio negativo, ou seja, o entendimento segundo o qual não é coautor, mas mero cúmplice, o agente que segura a vítima enquanto o outro a esfaqueia, por ter o primeiro apenas o domínio negativo sobre o fato e o segundo, que pratica diretamente a ação típica de lesionar, o domínio positivo.
Roxin, com razão, critica essa redução do conceito de coautor, pois a limita à realização da ação típica, quando o ato de segurar a vítima era relevante e necessário de tal forma que a lesão, sem essa colaboração, não se efetuaria. Além do mais, coautor não é também apenas quem executa, mas quem dá uma contribuição essencial no planejamento delituoso ao engendrá-lo ou ao compartilhar a decisão comum de o realizar, podendo interferir no processo de execução. Já o cúmplice não tem o domínio sobre o fato nem participa da formação da vontade comum de realizá-lo, apenas auxilia na obra de terceiro.
A teoria do domínio do fato de modo algum dispensa, para o reconhecimento da condição de coautor, a produção de provas acerca dessa posição objetiva de realizar uma colaboração necessária e a possibilidade de intervir no processo executório. No julgamento pelo Supremo não houve nenhuma menção de, em razão da teoria do domínio do fato, ser desnecessária prova da colaboração efetuada pelos integrantes do núcleo político. Houve, nesse sentido, referência explícita a provas diretas testemunhais, além da menção de provas indiciárias.
Como diz o próprio Roxin (Curso de Derecho Procesal Penal, Buenos Aires, 2000, p. 106), a convicção do tribunal pode estar fundada em prova indiciária em razão de fatos que permitam chegar a uma conclusão sobre a base de circunstâncias diretamente graves. Os indícios são elementos conhecidos da realidade a partir dos quais, segundo os dados da lógica, se alcança a descoberta de fato não conhecido diretamente. São elementos certos quanto à sua existência que, coordenados segundo as categorias da inteligência, por sua qualidade e quantidade, apontam, de forma unívoca, uma realidade não diretamente provada.
A validade da prova indireta depende, todavia, do caráter unívoco e convergente dos indícios sérios que, de forma harmônica, devem formar uma cadeia excludente de qualquer hipótese negativa da ocorrência do que se busca dar por provado. Assim, se a condenação encontra arrimo em indícios coerentes e concludentes, em nada se afronta o processo penal democrático.
Outra questão diz respeito a eventual violação da presunção de inocência. O Código de Processo Penal, no art. 156, estabelece que a prova da alegação incumbirá a quem a fizer. É certo que cabe à acusação provar a ocorrência do fato, sua autoria e a intenção do agente na prática delitiva. Cumpre à acusação provar o fato imputado, e não à defesa demonstrar sua não ocorrência.
Segundo Michele Taruffo, no entanto, "quem afirma que um fato é verdadeiro tem o ônus de demonstrar a veracidade de sua afirmação". Nesse processo do mensalão, a alegação de não ter havido compra de deputados, mas caixa 2, recursos não contabilizados, é versão que a acusação desfez com provas da relação entre pagamentos e votações. À defesa competiria mostrar, com dados e contas, que a transferência de recursos correspondia, nas datas, a reembolso de gastos de campanha de outros partidos. Essa prova cabia a quem alegara e a quem aproveitaria.
Ao se exigir da defesa prova do alegado em contraste com o imputado, não há quebra da presunção da inocência, mesmo porque a culpa não se presume, sempre dependente de provas da acusação.
O PT, ao acusar o julgamento do mensalão de juízo de exceção, apenas exerce o direito de espernear: uma choradeira de bases emocionais. Foi além da choraminga, contudo, para vergonha nacional, ter-se usado a figura de Roxin, que, em nota no Conjur, desmentiu indignado ter algum interesse na defesa de José Dirceu ou criticado o Supremo, como foi levianamente noticiado.
(*) Jurista e Professor Universitário. Foi Ministro da Justiça no governo FHC
O PT diz-se vítima de perseguição judicial, com violação de princípios de um direito democrático. O partido põe-se na condição de condenado graças à propaganda da imprensa conservadora, manipuladora da opinião pública. Os réus teriam, então, sido responsabilizados por serem os ministros do Supremo suscetíveis à pressão popular. Esse discurso é irracional, como todas as choradeiras de vitimização.
A teoria do domínio do fato, tão falada no julgamento do mensalão, nada mais é do que a busca de critérios para distinguir quem deve ser considerado autor ou coautor e quem cabe ser visto apenas como cúmplice por auxiliar na prática do delito. É uma questão mais velha que a Sé de Braga.
Já o Código Penal de 1830 definia autor como o que comete, constrange ou manda alguém praticar crime, sendo cúmplices os demais que concorrem para a realização do delito. Autor, dizia Tobias Barreto, o maior penalista do século 19, é aquele "cujo fato resultante é obra sua" e cúmplice, quem pratica "simples ato de apoio e coadjuvação", merecedor de pena atenuada. O Código Penal de 1940 não fez distinções, depois introduzidas pela reforma de 1984.
Autor ou coautor, portanto, é o que pratica parte necessária do plano delituoso tendo o domínio do fato, designação surgida na Alemanha com Welzel e aprimorada em 1963 por Roxin. Será autor ou coautor aquele a quem se pode atribuir a ação como obra sua por exercer de modo real a condução de sua realização, podendo interrompê-la ou finalizá-la, pois tem em suas mãos o acontecer do fato delituoso. A distinção entre autor e cúmplice reside, pois, na circunstância de que o primeiro tem o domínio sobre o fato delituoso e, segundo Roxin, uma posição objetiva que garanta esse efetivo domínio, enquanto o cúmplice não detém tal domínio.
Roxin, todavia, contesta a tese de que é autor apenas quem tem o domínio positivo do fato, e não quem tem o domínio negativo, ou seja, o entendimento segundo o qual não é coautor, mas mero cúmplice, o agente que segura a vítima enquanto o outro a esfaqueia, por ter o primeiro apenas o domínio negativo sobre o fato e o segundo, que pratica diretamente a ação típica de lesionar, o domínio positivo.
Roxin, com razão, critica essa redução do conceito de coautor, pois a limita à realização da ação típica, quando o ato de segurar a vítima era relevante e necessário de tal forma que a lesão, sem essa colaboração, não se efetuaria. Além do mais, coautor não é também apenas quem executa, mas quem dá uma contribuição essencial no planejamento delituoso ao engendrá-lo ou ao compartilhar a decisão comum de o realizar, podendo interferir no processo de execução. Já o cúmplice não tem o domínio sobre o fato nem participa da formação da vontade comum de realizá-lo, apenas auxilia na obra de terceiro.
A teoria do domínio do fato de modo algum dispensa, para o reconhecimento da condição de coautor, a produção de provas acerca dessa posição objetiva de realizar uma colaboração necessária e a possibilidade de intervir no processo executório. No julgamento pelo Supremo não houve nenhuma menção de, em razão da teoria do domínio do fato, ser desnecessária prova da colaboração efetuada pelos integrantes do núcleo político. Houve, nesse sentido, referência explícita a provas diretas testemunhais, além da menção de provas indiciárias.
Como diz o próprio Roxin (Curso de Derecho Procesal Penal, Buenos Aires, 2000, p. 106), a convicção do tribunal pode estar fundada em prova indiciária em razão de fatos que permitam chegar a uma conclusão sobre a base de circunstâncias diretamente graves. Os indícios são elementos conhecidos da realidade a partir dos quais, segundo os dados da lógica, se alcança a descoberta de fato não conhecido diretamente. São elementos certos quanto à sua existência que, coordenados segundo as categorias da inteligência, por sua qualidade e quantidade, apontam, de forma unívoca, uma realidade não diretamente provada.
A validade da prova indireta depende, todavia, do caráter unívoco e convergente dos indícios sérios que, de forma harmônica, devem formar uma cadeia excludente de qualquer hipótese negativa da ocorrência do que se busca dar por provado. Assim, se a condenação encontra arrimo em indícios coerentes e concludentes, em nada se afronta o processo penal democrático.
Outra questão diz respeito a eventual violação da presunção de inocência. O Código de Processo Penal, no art. 156, estabelece que a prova da alegação incumbirá a quem a fizer. É certo que cabe à acusação provar a ocorrência do fato, sua autoria e a intenção do agente na prática delitiva. Cumpre à acusação provar o fato imputado, e não à defesa demonstrar sua não ocorrência.
Segundo Michele Taruffo, no entanto, "quem afirma que um fato é verdadeiro tem o ônus de demonstrar a veracidade de sua afirmação". Nesse processo do mensalão, a alegação de não ter havido compra de deputados, mas caixa 2, recursos não contabilizados, é versão que a acusação desfez com provas da relação entre pagamentos e votações. À defesa competiria mostrar, com dados e contas, que a transferência de recursos correspondia, nas datas, a reembolso de gastos de campanha de outros partidos. Essa prova cabia a quem alegara e a quem aproveitaria.
Ao se exigir da defesa prova do alegado em contraste com o imputado, não há quebra da presunção da inocência, mesmo porque a culpa não se presume, sempre dependente de provas da acusação.
O PT, ao acusar o julgamento do mensalão de juízo de exceção, apenas exerce o direito de espernear: uma choradeira de bases emocionais. Foi além da choraminga, contudo, para vergonha nacional, ter-se usado a figura de Roxin, que, em nota no Conjur, desmentiu indignado ter algum interesse na defesa de José Dirceu ou criticado o Supremo, como foi levianamente noticiado.
(*) Jurista e Professor Universitário. Foi Ministro da Justiça no governo FHC
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