Extraído de: Superior Tribunal de Justiça
Excesso: aquilo que sobra, que é exagerado, desnecessário. Nos
diversos dicionários da Língua Portuguesa, a definição para a palavra é
encontrada de forma precisa. Entretanto, na prática jurídica, o conceito
pode não ser tão simples de classificar. Atualmente, é rotineiro
discutir o excesso de formalismo na linguagem do Direito. Com o
movimento crescente de aproximação Judiciário-sociedade, a procura de um
discurso jurídico mais acessível ao cidadão tornou-se um objetivo a
alcançar. Mas quando se questiona o excesso de linguagem do juiz ao
redigir uma sentença de pronúncia? O que seria excessivo?
De
acordo com os juristas, na sentença de pronúncia é crucial o uso de
linguagem moderada. Não pode o juiz aprofundar o exame da prova a fim de
que não influencie os Jurados que são os únicos Juízes do mérito.
Assim, quando existem duas versões no processo, o juiz deve apenas
mencioná-las, sem emitir qualquer juízo sobre a veracidade deste ou
daquele fato. Também não cabe ao juiz analisar a idoneidade de
testemunhas.
A posição do magistrado no processo deve ser
neutra. Assim, em processos da competência do Tribunal do Júri, a
sentença de pronúncia deve ser cuidadosa, para que os jurados não possam
inferir nenhum juízo de valor. No Superior Tribunal de Justiça (STJ), o
tema do excesso de linguagem voltou ao debate em um pedido de habeas
corpus julgado na Quinta Turma. O caso envolve um acusado de homicídio
que obteve a anulação da sentença de pronúncia, uma decisão pouco comum
na Casa. A matéria postada no site do Tribunal teve grande repercussão,
com mais de 20 mil acessos em julho, mês de recesso forense. Uma
demonstração de que a discussão é importante para o meio jurídico e para
a sociedade.
No recurso de relatoria do ministro Jorge Mussi, a
defesa de Valmir Gonçalves alegou que a forma como a sentença do juiz
de primeiro grau foi redigida poderia influenciar negativamente o
Tribunal do Júri. Os advogados argumentaram que a decisão singular
continha juízo de valor capaz de influenciar os jurados contra o réu.
O
ministro acolheu a tese em favor da defesa e anulou a decisão de
pronúncia com base na lei que permite aos jurados acesso aos autos e,
consequentemente, à sentença de pronúncia. Nesse caso, é mais um fator
para que a decisão do juízo singular seja redigida em termos sóbrios e
técnicos, sem excessos, para que não se corra o risco de influenciar o
ânimo do tribunal popular, concluiu Mussi.
Em um artigo sobre o tema do excesso de linguagem, o doutor em Direito Penal Luiz Flávio Gomes comentou esta decisão do STJ: A Constituição
expressamente impõe ao Tribunal do Júri (formado por jurados leigos) a
competência, com soberania dos veredictos, para o julgamento dos crimes
contra a vida. Portanto, na análise dos fatos e das condições em que
eles ocorreram, o juiz da primeira fase, bem como o juiz presidente, não
devem fazer qualquer apreciação. No momento de pronunciar o réu, ele
apenas faz um juízo de admissibilidade de provas sobre a materialidade e
indícios de autoria, mas juízo de valor e de reprovação, cabe aos
jurados. Desse contexto se conclui que o juiz togado deve se portar de
maneira que, com suas decisões ou comportamentos no Plenário, não
influencie os juízes naturais, que são leigos.
Para o
magistrado, a decisão da Quinta Turma, determinando a elaboração de uma
nova sentença de pronúncia, reconheceu a chamada eloquência acusatória
do magistrado na linguagem empregada na sentença. É importante observar
que o contexto desta decisão do STJ exige uma postura isenta e mais
imparcial do juiz. A imposição não advém porque o ordenamento jurídico
queira que um julgador deixe de lado suas pré-compreensões de maneira a
se tornar um sentenciante isento de qualquer análise humanística e
meritória (simplesmente porque juízes não são máquinas). É que no âmbito
do Tribunal do Júri essa análise não é de sua competência, mas dos
jurados. Daí a anulação da decisão. Tudo em conformidade com a Lei
Maior. A eloquência acusatória não está autorizada ao juiz. O sistema
acusatório dividiu bem as funções de cada um: o Ministério Público
acusa, o advogado defende e o juiz julga. Não cabe ao juiz cumprir o
papel de acusador, finalizou o jurista.
Nova redação da Lei, polêmica à vista
A reforma do Código de Processo Penal (CPP), precisamente a Lei nº 11.689
de 2008, abriu caminho para que o tema do excesso de linguagem ganhe,
cada vez mais, espaço para ser debatido no Tribunal da Cidadania. Essa
lei alterou o procedimento relativo aos crimes dolosos contra vida. O
antigo parágrafo 1.º do art. 408 passou a ter a seguinte redação: "Art.
413. (...) 1.º A fundamentação da pronúncia limitar-se-á à indicação da
materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria
e participação, devendo o juiz declarar o dispositivo legal em que
julgar incurso o acusado e especificar as circunstâncias qualificadoras e
as causas de aumento de pena".
A razão de ser desse dispositivo
foi evitar que a pronúncia se transformasse em peça de acusação, pois a
indicação da certeza de autoria poderia influenciar o Conselho de
Sentença. Todavia, o entendimento sobre as alegações de excesso de
linguagem do juiz não são unânimes. O próprio Supremo Tribunal Federal
(STF) firmou entendimento de que não haveria mais interesse de agir em
recurso contra decisão de pronúncia por excesso de linguagem, sob o
argumento de que, com a reforma da lei, não existiria mais a
possibilidade de leitura da sentença de pronúncia quando dos trabalhos
no Plenário do Júri.
Entretanto, o artigo 480 do CPP
acena para a possibilidade de os jurados efetivamente lerem a
pronúncia. Caso algum deles não se sinta habilitado para proferir o
veredicto, poderá ter vista dos autos, desde que a solicitem ao juiz
presidente. Portanto, o novo sistema não impediu o contato dos jurados
com a decisão de pronúncia. Ao contrário, ainda permanece a necessidade
de utilização, pelo juiz togado, de um discurso sóbrio e comedido. Por
isso, o STJ segue analisando a questão do excesso de linguagem nos
recursos que recebe, mesmo após as inovações introduzidas pela Lei 11.689/08.
Um argumento, muitos casos
Levando
em conta todas essas nuances, uma decisão monocrática do ministro
Nilson Naves concedeu, em parte, uma liminar para desmembrar o processo
contra o traficante Fernandinho Beira-Mar. O ministro reconheceu que
houve excesso de linguagem no acórdão do Tribunal de Justiça do Mato
Grosso do Sul (TJMS), que fez uso de expressões linguísticas que
poderiam vir a influenciar os jurados. Em função disso, determinou que o
documento fosse desmembrado dos autos da ação penal e colocado em
envelope lacrado, sendo vedada sua utilização no júri. Foi a solução que
Naves encontrou para não suspender o julgamento do réu. Ao invés de
suspender o júri marcado há tempo, como pretendia a defesa, creio que o
melhor seja vedar a leitura de tal peça em plenário, de forma a evitar
possível nulidade do julgamento.
Mas nem sempre a tese do
excesso de linguagem é acolhida. Em março desse ano, a Quinta Turma do
STJ negou um pedido de habeas corpus em favor do empresário Daniel
Dantas para afastar o juiz Fausto Martin de Sanctis do processo. A
defesa de Dantas argumentou que haveria suspeição contra o juiz de
Sanctis porque ele estaria vinculado emocionalmente ao caso e, também,
excesso de linguagem dele ao redigir a sentença, que fez um juízo
depreciativo sobre o réu. Todavia, o ministro Arnaldo Esteves Lima não
acolheu o pedido, ressaltando que não encontrou dúvidas em relação à
imparcialidade do magistrado suficientes para justificar a suspeição.
Também
foi da Quinta Turma a decisão que negou o pedido de habeas corpus em
favor do assassino de três garotas condenado à pena de 75 anos de
prisão. A defesa de Antônio Carlos Faria alegou nulidade da pronúncia em
razão de excesso de linguagem, mas a Turma, com base no voto da
ministra Laurita Vaz, manteve a sentença condenatória.
Em outro
habeas corpus, o presidente do STJ, ministro Cesar Asfor Rocha, manteve a
data de julgamento pelo Tribunal do Júri de uma jovem acusada de matar a
mãe adotiva. Em sua defesa, ela alegou excesso de linguagem na sentença
de pronúncia no que se referia à autoria do crime e à qualificadora.
Todavia, Asfor Rocha não encontrou ilegalidade na decisão do Tribunal de
Justiça do Estado de Santa Catarina (TJSC), que já havia indeferido o
pedido em favor da ré.
Os ministros da Sexta Turma negaram um
pedido de habeas corpus em favor de Éder Douglas Santana Macedo. Ele é
acusado de matar pai e filho no aeroporto internacional de Brasília, um
crime que chocou a cidade. No recurso julgado pelo STJ, a defesa
sustentou que as qualificadoras do homicídio não estariam adequadamente
fundamentadas, pois teria havido excesso de linguagem. Porém, o relator
do processo, ministro Og Fernandes, não viu excesso de linguagem na
acusação contra Éder, uma vez que o documento se baseou exclusivamente
nos autos e ficou dentro dos limites da normalidade.
Outro caso
que mobilizou o país também foi analisado sob o prisma da inadequação da
linguagem utilizada pelo juiz. Os advogados do casal Nardoni recorreram
ao STJ com um pedido de habeas corpus contestando a decisão de primeiro
grau que decretou a prisão preventiva e o acolhimento da denúncia
contra os réus. A defesa alegou excesso de linguagem, criticou o laudo
pericial e o trabalho de investigação da polícia. Mas a Quinta Turma
negou o pedido e o casal acabou condenado pelo Tribunal do Júri.
A
defesa de um médico acusado de matar a esposa, que pretendia se separar
dele, também apelou no STJ pedindo a anulação da decisão de pronúncia
fazendo uso da tese do excesso de linguagem, que evidenciaria a
parcialidade do julgador. Contudo o relator do habeas corpus, ministro
Felix Fischer, afirmou que a decisão apenas indicou os elementos acerca
da existência do crime e os indícios de autoria por parte do médico, não
estabelecendo antecipadamente um juízo condenatório em desfavor do réu.
O policial militar Jair Augusto do Carmo Júnior não conseguiu
suspender a aça penal instaurada contra ele, com o objetivo de evitar a
realização de novo julgamento pelo Tribunal do Júri pelo assassinato da
namorada. O então presidente do STJ, ministro Raphael de Barros Monteiro
Filho, indeferiu a liminar na qual se alegava que a decisão do Tribunal
de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) possuía excesso de linguagem,
pois, de forma analítica, expôs as provas dos autos, o que seria capaz
de influenciar os jurados. O ministro não concedeu o habeas corpus,
ressaltando que o acórdão do TJSP somente explicitou os motivos que
levaram ao convencimento quanto à necessidade da realização de novo
julgamento do paciente, não tendo o poder de influenciar o ânimo dos
jurados.
Muito embora o STF, em recente julgado de 2009 (HC
96.123/SP, Rel. Min. Carlos Brito), tenha entendido que a nova lei
impossibilita as partes de fazer referências à sentença de pronúncia
durante os debates, eliminando o interesse de agir das impetrações que
alegassem excesso de linguagem, existe a norma do novo art. 480 do CPP,
permitindo aos jurados a oportunidade de examinar os autos logo após
encerrados os debates, o que, em tese, justificaria tal interesse. Ou
seja, o Tribunal da Cidadania provavelmente ainda vai se deparar com
muitos pedidos de habeas corpus relativos ao tema para apreciar. A
polêmica continua.
Autor: Coordenadoria de Editoria e Imprensa - Fonte: JusBrasil
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