À prova de pressão
Com
a última palavra sobre as questões mais complexas da República e o
destino de réus de relevância nacional nas mãos, o Supremo Tribunal
Federal precisa de mais juízes de carreira. É a avaliação do presidente
da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), desembargador Henrique Nelson Calandra. Segundo ele, falta hoje ao STF a experiência de ministros que tenham passado a maior parte da vida julgando outras pessoas.
Um dos motivos é a suscetibilidade que os julgadores podem ter à pressão pública ao tratar de casos polêmicos. "É importantíssimo que aquele que vai sentar numa cadeira de ministro tenha vivido as experiências de juiz. Como juízes, aprendemos que a opinião pública é importantíssima, mas não julgamos com o coração. Julgamos com a razão, com as provas, com as leis e, sobretudo, com a Constituição", defendeu, em entrevista concedida à Consultor Jurídico. "Como juízes de carreira, vamos desenvolvendo o hábito de resistir à sedução."
Calandra não advoga para si, mas é exemplo do que fala. Está na carreira desde 1981 e é dos desembargadores mais experientes do Tribunal de Justiça de São Paulo. Já trabalhou em comarcas do interior do estado, como Pirassununga, Osasco, Buritama, Jales e Suzano antes de chegar à capital, ainda como juiz de primeiro grau.
Em São Paulo, trabalhou em varas de Família e da Fazenda Pública. Foi promovido a desembargador em 2000, assumindo uma cadeira no 2º Tribunal de Alçada Civil, extinto após a Emenda Constitucional 45, de 2004, que unificou o TJ e os tribunais de alçada. Na época, ingressou no Tribunal de Alçada Criminal, também extinto pela emenda, visto até hoje como um dos colegiados mais complexos do país. Com a unificação, em 2004, chegou ao TJ, de onde hoje está afastado para presidir a AMB.
É desse tipo de vivência que o Supremo precisa, em sua opinião. “O que falta aos ministros é ter comido aquele pó que nós juízes comemos andando pelas estradas do Brasil durante um longo período até o ingresso em um tribunal.” É num órgão colegiado de segunda instância, ele diz, que se aprende a entender que, apesar do poder, um julgador é um entre diversos, e a única ferramenta para fazer valer um argumento é o convencimento. “O poder seduz”, alerta.
O presidente da AMB protesta contra a interferência do Poder Executivo na autonomia financeira do Judiciário, perpetrada por meio de cortes nas propostas orçamentárias enviadas ao Congresso Nacional. “A cada momento surge a alegação de uma nova crise econômica e aquilo que é o cumprimento de um dever básico do Poder Executivo, que é respeitar a autonomia financeira do Judiciário, nunca acontece”, crava.
Leia a entrevista:
ConJur — O ano de 2012 foi marcado por certo protagonismo do Judiciário em questões políticas, que dizem respeito à atividade parlamentar. Ao julgar o processo do mensalão e determinar a perda dos mandatos dos condenados, o Supremo deu um exemplo dessa usurpação?
Nelson Calandra — O Poder Judiciário é sempre protagonista dessas querelas que surgem fora dele e decorrem de lutas partidárias que envolvem os partidos políticos, especialmente os majoritários.
ConJur — Isso tem se agravado, à medida que os próprios parlamentares levam seus embates ao Supremo? Nelson Calandra — Infelizmente para nós, a política no Brasil não é de construção. É uma política autofágica. Só vale jogar se for para destruir o adversário, principalmente se ele for jovem e promissor. Quando vejo processos vindos de CPIs, vejo claramente que é um debate de destruição, muito mais do que de investigação. Mas é um jogo político e não podemos negar. Faz parte da vida política e vai naturalmente desaguar no Judiciário.
ConJur — O perfil dos juízes que chegam aos principais tribunais do país tem mudado? Nelson Calandra — Os que chegam a protagonizar um cargo nesses tribunais normalmente vêm de uma carreira longa, muitas vezes tendo até passado por outras atividades. Mas o que falta àqueles que chegam ao Supremo Tribunal Federal, por exemplo, é ter comido aquele pó que nós juízes comemos andando pelas estradas do Brasil durante um longo período até o ingresso em um tribunal. Onde se aprende que você é mais um entre outros cinco? Que a sua opinião vale, mas para ela prevalecer é preciso convencer formalmente e doutrinariamente os outros? Em um tribunal.
ConJur — Por quê? Nelson Calandra — Não existe juiz que pode tudo, o que ele pode é responder por abuso de autoridade. Se estiver no Supremo, pode até sofrer um processo de impeachment. Como dizem os ministros Cezar Peluso e Ayres Britto [aposentados], a Constituição brasileira é o único poder definitivo. Qualquer outro poder é completamente transitório e deve ser exercido de acordo com aquilo que o povo brasileiro escreveu na Constituição. Quantas vezes já não votei pela condenação, mas o plenário entendeu pela absolvição? Muitas vezes também já quis determinar a prisão imediata, mas não pude, porque não tinha o acórdão escrito com o aval de meus colegas. Como vou mandar prender alguém sem acórdão? Nenhum juiz pode mandar prender alguém por deliberação verbal.
ConJur — Como a exposição dos processos judiciais à opinião pública afeta os resultados dos julgamentos? Nelson Calandra — Queria me valer dessa entrevista para fazer um apelo público à presidente Dilma Rousseff: é importantíssimo que aquele que vai sentar numa cadeira de ministro tenha vivido as experiências de juiz. Como juízes, aprendemos que a opinião pública é importantíssima, mas não julgamos com o coração. Julgamos com a razão, com as provas, com as leis e sobretudo com a Constituição, que é a rainha de tudo. Como juízes de carreira vamos desenvolvendo o hábito de resistir à sedução.
ConJur — A falta de juízes na formação do Supremo atrapalha? Nelson Calandra — Não podem faltar pessoas de outras categorias, mas a maioria tem de ser constituída por pessoas que passaram a vida julgando outras pessoas. Até porque, quem não tiver essa prática, quando chegar ao Supremo, no dia seguinte, já estará aniquilado e perplexo. O que parecia a maior glória da vida vai se transformar numa pressão que não há como administrar. Um juiz é observado pelo CNJ [Conselho Nacional de Justiça], pelo Ministério Público e pelo advogado, no mínimo. Há muito melhor condição de avaliar uma pessoa sob pressão quando você recruta um magistrado para a Suprema Corte do que ao se recrutar uma pessoa que nunca julgou absolutamente nada.
ConJur — É preciso mudar o método de escolha dos ministros? Nelson Calandra — A necessidade de termos mais juízes no Supremo deve ser pensada. Falo de um modo genérico, mas se for adotado esse critério, dificilmente vamos enfrentar o problema de estrelismo, de pessoas querendo estar ali para se consagrar. O poder seduz, não é mesmo? E quem é juiz de carreira com certeza já passou por tudo isso. Começamos na carreira com 25 anos, em média, e vamos até os 70. São 45 anos dentro da mesma carreira.
ConJur — O país vive uma nova onda acusatória coroada pelo julgamento do mensalão? Nelson Calandra — É uma fase transitória. A teoria do domínio do fato, trazida nesse julgamento, não deve ser aplicada de modo indiscriminado. O próprio [Claus] Roxin, o primeiro a tratar dessa questão com rigor científico, já disse isso. É o bom senso de um grande doutrinador olhando para aquilo que já aconteceu na Alemanha. O povo brasileiro aplaude a condenação dos réus na Ação Penal 470. Assiste aos debates na TV Justiça e endeusa os ministros que condenam e demoniza aqueles que absolvem. Vejo nesse episódio uma demonstração da vida democrática, mas aí volto para minha sala de audiências, onde a opinião popular importa, mas vejo que tenho de julgar de acordo com os autos. Não se pode julgar pelo clamor popular. Foi o clamor popular que absolveu Barrabás e condenou Jesus Cristo — sem comparar, claro, nenhum dos réus com Cristo.
ConJur — Se a mídia não tivesse dado o destaque que deu ao julgamento, o resultado poderia ser outro? Nelson Calandra — Na verdade, foram disputas políticas que acabaram se projetando na imprensa. O que a imprensa faz é noticiar, nada é mais fácil para ela do que fazer isso. O ministro Joaquim Barbosa teve bastante coragem de enfrentar essa relatoria, mesmo sem estar em sua plena condição de saúde. E mais coragem ainda teve o ministro Ricardo Lewandowski que, como revisor, fez o contraponto. Vários réus foram absolvidos porque Lewandowski estava lá apontando que não havia provas contra eles.
ConJur — O ministro Moreira Alves [aposentado] costuma dizer que não se deve fazer história no Supremo, mas somente antes de chegar lá. Os ministros seguem esse conselho? Nelson Calandra – Conheço 99% dos ministros do Supremo, alguns deles foram meus colegas de tribunal, outros de academia. Vejo em todos eles qualidades imensas, principalmente no enfrentamento de questões dificílimas, como o aborto de anencéfalo, pesquisas com células-tronco, casamento de pessoas do mesmo sexo etc. São temas que causam bastante perplexidade, mas dos quais podemos tirar um grande aprendizado. De todos eles. Acho que o Brasil está num bom caminho.
ConJur — Como foi o ano de 2012 para a magistratura? Henrique Nelson Calandra — Foi um ano de muitas lutas e de muitos avanços. Viramos o ano de 2011 para 2012 lutando dentro do Congresso pela votação do Orçamento Geral da União, para que o Executivo não cortasse o orçamento do Poder Judiciário e fosse respeitada a Constituição Federal. Trabalhamos com a oposição ao governo, por meio do PDT. O deputado Paulinho Pereira [Paulinho da Força] foi quem subscreveu o pedido de desobstrução da pauta. Houve uma garantia do governo de que no ano seguinte tudo seria diferente, e nós acabamos tirando o pedido de desobstrução. Foi aprovado o Orçamento com a proposta de que em 2012 tudo seria diferente.
ConJur — Mas não foi. Nelson Calandra — Demos pequenos passos em 2012 porque, na verdade, aquela palavra empenhada não foi cumprida tal como convencionado. A cada momento surge a alegação de uma nova crise econômica e aquilo que é o cumprimento de um dever básico do Poder Executivo, que é respeitar a autonomia financeira e orçamentária do Judiciário, nunca acontece. E fechamos 2012 na mesma situação: a pauta no Congresso ficou obstruída, e a votação do Orçamento ficou para 2013.
ConJur — A questão salarial foi uma bandeira da AMB. O juiz é remunerado à altura da sua responsabilidade? Nelson Calandra — Não ganhamos muito, nem pouco. Ganhamos aquilo que o legislador brasileiro disse que devemos ganhar. Mas abrimos mão de todos os nossos benefícios e adicionais — que eram incorporados aos vencimentos, mas não eram salário. Abrimos mão de 222% de verbas de representação.
ConJur — Não houve contrapartida? Nelson Calandra — A contrapartida é que o legislador constituinte inseriu a obrigação de o governo repor anualmente o salário pelo menos de acordo com a inflação. O que acontece, na realidade, é uma hipertrofia do Executivo, que não cumpre com esse compromisso. Ele muda os números propostos pelo Judiciário e reduz o aumento requerido. Seria a mesma coisa que um jornal ter, do outro lado da rua, um órgão interferindo em suas contas. Como você se sentiria? Perplexo, com certeza.
ConJur — É uma forma pouco republicana de relacionamento? Nelson Calandra — Tanto não é republicano que ingressamos com um Mandado de Segurança no Supremo e o ministro Luiz Fux deu uma liminar. O procurador-geral da República, Roberto Gurgel, fez a mesma coisa no âmbito do Ministério Público e o ministro Joaquim Barbosa também deu liminar. O Poder Executivo, acompanhado do Legislativo, nem tomou conhecimento de absolutamente nada e votou do jeito que achou que deveria votar: deu à magistratura e ao MP o mesmo aumento que deu aos servidores em geral, ignorando que o Judiciário é um Poder à parte. Professores, por exemplo, obtiveram um aumento escalonado de até 48%, e a magistratura teve 15% dividido em três anos. Isso graças à interferência de um homem que é mais que um ministro, é quase um santo, que é o ministro Carlos Ayres Britto. Houve uma pequena reposição de 15% diluído em três anos, o que significa que a nossa perda salarial, que supera 30% em relação à inflação, não será inteiramente recomposta.
ConJur — Na esfera administrativa, o que 2012 trouxe de novo?
Nelson Calandra — Foi julgada, pelo Supremo Tribunal Federal, a ADI que tratava dos poderes correcionais do CNJ. Ficaram estabelecidas duas coisas: a primeira é que o CNJ não é mais um tribunal brasileiro, mas uma parte de um continente chamado Judiciário. E muito mais que isso: o Supremo decidiu que não é possível afastar um juiz de seu cargo sem um processo administrativo disciplinar instaurado — o que era pretensão da antiga corregedora nacional de Justiça, ministra Eliana Calmon. Foram importantes vitórias.
ConJur — Qual sua opinião sobre a competência concorrente do CNJ com as corregedorias locais dos tribunais, decidida pelo STF? Nelson Calandra – Nós não éramos completamente contra. O que não é possível é eliminar as corregedorias como fontes de investigação de fatos ocorridos nos estados. E, para nossa alegria, o atual corregedor nacional, ministro Francisco Falcão, ao assumir o cargo, deixou claro que ele quer que as corregedorias locais exerçam seu papel antes de a Corregedoria Nacional atuar.
ConJur — O Conselho Nacional de Justiça e o Tribunal de Justiça de São Paulo protagonizaram uma queda de braço no ano passado. Qual o saldo dessa disputa? Nelson Calandra — O tribunal amadureceu e cresceu muito. Os conflitos com o CNJ mostraram mazelas que muitos de nós sabíamos que existiam. E quero dizer que estamos superando dificuldades. Pela primeira vez um presidente, que é o desembargador Ivan Sartori, está implantando a figura do assessor para o juiz de primeiro grau. Tem também o desembargador José Renato Nalini, um dos grandes juristas brasileiros, um corregedor extraordinário. Pena que nenhum presidente da República o nomeou para o Supremo.
ConJur — Em que a eleição direta para a diretoria de tribunais, outra bandeira da AMB, mudaria o quadro para a melhor? Nelson Calandra — Queremos a eleição direta porque entendemos que, democratizando a questão, vamos melhorar o serviço lá na ponta da linha. Na medida em que o juiz vota, ele está fazendo suas reivindicações de melhora. Não é por vaidade, mas para que possamos ver outros colegas chegando à direção do tribunal, e não só os mais antigos. Quer ser eleito? Faça como no Ministério Público e gaste sola de sapato andando pelo estado inteiro para conhecer os problemas e poder apresentar um plano de gestão.
Um dos motivos é a suscetibilidade que os julgadores podem ter à pressão pública ao tratar de casos polêmicos. "É importantíssimo que aquele que vai sentar numa cadeira de ministro tenha vivido as experiências de juiz. Como juízes, aprendemos que a opinião pública é importantíssima, mas não julgamos com o coração. Julgamos com a razão, com as provas, com as leis e, sobretudo, com a Constituição", defendeu, em entrevista concedida à Consultor Jurídico. "Como juízes de carreira, vamos desenvolvendo o hábito de resistir à sedução."
Calandra não advoga para si, mas é exemplo do que fala. Está na carreira desde 1981 e é dos desembargadores mais experientes do Tribunal de Justiça de São Paulo. Já trabalhou em comarcas do interior do estado, como Pirassununga, Osasco, Buritama, Jales e Suzano antes de chegar à capital, ainda como juiz de primeiro grau.
Em São Paulo, trabalhou em varas de Família e da Fazenda Pública. Foi promovido a desembargador em 2000, assumindo uma cadeira no 2º Tribunal de Alçada Civil, extinto após a Emenda Constitucional 45, de 2004, que unificou o TJ e os tribunais de alçada. Na época, ingressou no Tribunal de Alçada Criminal, também extinto pela emenda, visto até hoje como um dos colegiados mais complexos do país. Com a unificação, em 2004, chegou ao TJ, de onde hoje está afastado para presidir a AMB.
É desse tipo de vivência que o Supremo precisa, em sua opinião. “O que falta aos ministros é ter comido aquele pó que nós juízes comemos andando pelas estradas do Brasil durante um longo período até o ingresso em um tribunal.” É num órgão colegiado de segunda instância, ele diz, que se aprende a entender que, apesar do poder, um julgador é um entre diversos, e a única ferramenta para fazer valer um argumento é o convencimento. “O poder seduz”, alerta.
O presidente da AMB protesta contra a interferência do Poder Executivo na autonomia financeira do Judiciário, perpetrada por meio de cortes nas propostas orçamentárias enviadas ao Congresso Nacional. “A cada momento surge a alegação de uma nova crise econômica e aquilo que é o cumprimento de um dever básico do Poder Executivo, que é respeitar a autonomia financeira do Judiciário, nunca acontece”, crava.
Leia a entrevista:
ConJur — O ano de 2012 foi marcado por certo protagonismo do Judiciário em questões políticas, que dizem respeito à atividade parlamentar. Ao julgar o processo do mensalão e determinar a perda dos mandatos dos condenados, o Supremo deu um exemplo dessa usurpação?
Nelson Calandra — O Poder Judiciário é sempre protagonista dessas querelas que surgem fora dele e decorrem de lutas partidárias que envolvem os partidos políticos, especialmente os majoritários.
ConJur — Isso tem se agravado, à medida que os próprios parlamentares levam seus embates ao Supremo? Nelson Calandra — Infelizmente para nós, a política no Brasil não é de construção. É uma política autofágica. Só vale jogar se for para destruir o adversário, principalmente se ele for jovem e promissor. Quando vejo processos vindos de CPIs, vejo claramente que é um debate de destruição, muito mais do que de investigação. Mas é um jogo político e não podemos negar. Faz parte da vida política e vai naturalmente desaguar no Judiciário.
ConJur — O perfil dos juízes que chegam aos principais tribunais do país tem mudado? Nelson Calandra — Os que chegam a protagonizar um cargo nesses tribunais normalmente vêm de uma carreira longa, muitas vezes tendo até passado por outras atividades. Mas o que falta àqueles que chegam ao Supremo Tribunal Federal, por exemplo, é ter comido aquele pó que nós juízes comemos andando pelas estradas do Brasil durante um longo período até o ingresso em um tribunal. Onde se aprende que você é mais um entre outros cinco? Que a sua opinião vale, mas para ela prevalecer é preciso convencer formalmente e doutrinariamente os outros? Em um tribunal.
ConJur — Por quê? Nelson Calandra — Não existe juiz que pode tudo, o que ele pode é responder por abuso de autoridade. Se estiver no Supremo, pode até sofrer um processo de impeachment. Como dizem os ministros Cezar Peluso e Ayres Britto [aposentados], a Constituição brasileira é o único poder definitivo. Qualquer outro poder é completamente transitório e deve ser exercido de acordo com aquilo que o povo brasileiro escreveu na Constituição. Quantas vezes já não votei pela condenação, mas o plenário entendeu pela absolvição? Muitas vezes também já quis determinar a prisão imediata, mas não pude, porque não tinha o acórdão escrito com o aval de meus colegas. Como vou mandar prender alguém sem acórdão? Nenhum juiz pode mandar prender alguém por deliberação verbal.
ConJur — Como a exposição dos processos judiciais à opinião pública afeta os resultados dos julgamentos? Nelson Calandra — Queria me valer dessa entrevista para fazer um apelo público à presidente Dilma Rousseff: é importantíssimo que aquele que vai sentar numa cadeira de ministro tenha vivido as experiências de juiz. Como juízes, aprendemos que a opinião pública é importantíssima, mas não julgamos com o coração. Julgamos com a razão, com as provas, com as leis e sobretudo com a Constituição, que é a rainha de tudo. Como juízes de carreira vamos desenvolvendo o hábito de resistir à sedução.
ConJur — A falta de juízes na formação do Supremo atrapalha? Nelson Calandra — Não podem faltar pessoas de outras categorias, mas a maioria tem de ser constituída por pessoas que passaram a vida julgando outras pessoas. Até porque, quem não tiver essa prática, quando chegar ao Supremo, no dia seguinte, já estará aniquilado e perplexo. O que parecia a maior glória da vida vai se transformar numa pressão que não há como administrar. Um juiz é observado pelo CNJ [Conselho Nacional de Justiça], pelo Ministério Público e pelo advogado, no mínimo. Há muito melhor condição de avaliar uma pessoa sob pressão quando você recruta um magistrado para a Suprema Corte do que ao se recrutar uma pessoa que nunca julgou absolutamente nada.
ConJur — É preciso mudar o método de escolha dos ministros? Nelson Calandra — A necessidade de termos mais juízes no Supremo deve ser pensada. Falo de um modo genérico, mas se for adotado esse critério, dificilmente vamos enfrentar o problema de estrelismo, de pessoas querendo estar ali para se consagrar. O poder seduz, não é mesmo? E quem é juiz de carreira com certeza já passou por tudo isso. Começamos na carreira com 25 anos, em média, e vamos até os 70. São 45 anos dentro da mesma carreira.
ConJur — O país vive uma nova onda acusatória coroada pelo julgamento do mensalão? Nelson Calandra — É uma fase transitória. A teoria do domínio do fato, trazida nesse julgamento, não deve ser aplicada de modo indiscriminado. O próprio [Claus] Roxin, o primeiro a tratar dessa questão com rigor científico, já disse isso. É o bom senso de um grande doutrinador olhando para aquilo que já aconteceu na Alemanha. O povo brasileiro aplaude a condenação dos réus na Ação Penal 470. Assiste aos debates na TV Justiça e endeusa os ministros que condenam e demoniza aqueles que absolvem. Vejo nesse episódio uma demonstração da vida democrática, mas aí volto para minha sala de audiências, onde a opinião popular importa, mas vejo que tenho de julgar de acordo com os autos. Não se pode julgar pelo clamor popular. Foi o clamor popular que absolveu Barrabás e condenou Jesus Cristo — sem comparar, claro, nenhum dos réus com Cristo.
ConJur — Se a mídia não tivesse dado o destaque que deu ao julgamento, o resultado poderia ser outro? Nelson Calandra — Na verdade, foram disputas políticas que acabaram se projetando na imprensa. O que a imprensa faz é noticiar, nada é mais fácil para ela do que fazer isso. O ministro Joaquim Barbosa teve bastante coragem de enfrentar essa relatoria, mesmo sem estar em sua plena condição de saúde. E mais coragem ainda teve o ministro Ricardo Lewandowski que, como revisor, fez o contraponto. Vários réus foram absolvidos porque Lewandowski estava lá apontando que não havia provas contra eles.
ConJur — O ministro Moreira Alves [aposentado] costuma dizer que não se deve fazer história no Supremo, mas somente antes de chegar lá. Os ministros seguem esse conselho? Nelson Calandra – Conheço 99% dos ministros do Supremo, alguns deles foram meus colegas de tribunal, outros de academia. Vejo em todos eles qualidades imensas, principalmente no enfrentamento de questões dificílimas, como o aborto de anencéfalo, pesquisas com células-tronco, casamento de pessoas do mesmo sexo etc. São temas que causam bastante perplexidade, mas dos quais podemos tirar um grande aprendizado. De todos eles. Acho que o Brasil está num bom caminho.
ConJur — Como foi o ano de 2012 para a magistratura? Henrique Nelson Calandra — Foi um ano de muitas lutas e de muitos avanços. Viramos o ano de 2011 para 2012 lutando dentro do Congresso pela votação do Orçamento Geral da União, para que o Executivo não cortasse o orçamento do Poder Judiciário e fosse respeitada a Constituição Federal. Trabalhamos com a oposição ao governo, por meio do PDT. O deputado Paulinho Pereira [Paulinho da Força] foi quem subscreveu o pedido de desobstrução da pauta. Houve uma garantia do governo de que no ano seguinte tudo seria diferente, e nós acabamos tirando o pedido de desobstrução. Foi aprovado o Orçamento com a proposta de que em 2012 tudo seria diferente.
ConJur — Mas não foi. Nelson Calandra — Demos pequenos passos em 2012 porque, na verdade, aquela palavra empenhada não foi cumprida tal como convencionado. A cada momento surge a alegação de uma nova crise econômica e aquilo que é o cumprimento de um dever básico do Poder Executivo, que é respeitar a autonomia financeira e orçamentária do Judiciário, nunca acontece. E fechamos 2012 na mesma situação: a pauta no Congresso ficou obstruída, e a votação do Orçamento ficou para 2013.
ConJur — A questão salarial foi uma bandeira da AMB. O juiz é remunerado à altura da sua responsabilidade? Nelson Calandra — Não ganhamos muito, nem pouco. Ganhamos aquilo que o legislador brasileiro disse que devemos ganhar. Mas abrimos mão de todos os nossos benefícios e adicionais — que eram incorporados aos vencimentos, mas não eram salário. Abrimos mão de 222% de verbas de representação.
ConJur — Não houve contrapartida? Nelson Calandra — A contrapartida é que o legislador constituinte inseriu a obrigação de o governo repor anualmente o salário pelo menos de acordo com a inflação. O que acontece, na realidade, é uma hipertrofia do Executivo, que não cumpre com esse compromisso. Ele muda os números propostos pelo Judiciário e reduz o aumento requerido. Seria a mesma coisa que um jornal ter, do outro lado da rua, um órgão interferindo em suas contas. Como você se sentiria? Perplexo, com certeza.
ConJur — É uma forma pouco republicana de relacionamento? Nelson Calandra — Tanto não é republicano que ingressamos com um Mandado de Segurança no Supremo e o ministro Luiz Fux deu uma liminar. O procurador-geral da República, Roberto Gurgel, fez a mesma coisa no âmbito do Ministério Público e o ministro Joaquim Barbosa também deu liminar. O Poder Executivo, acompanhado do Legislativo, nem tomou conhecimento de absolutamente nada e votou do jeito que achou que deveria votar: deu à magistratura e ao MP o mesmo aumento que deu aos servidores em geral, ignorando que o Judiciário é um Poder à parte. Professores, por exemplo, obtiveram um aumento escalonado de até 48%, e a magistratura teve 15% dividido em três anos. Isso graças à interferência de um homem que é mais que um ministro, é quase um santo, que é o ministro Carlos Ayres Britto. Houve uma pequena reposição de 15% diluído em três anos, o que significa que a nossa perda salarial, que supera 30% em relação à inflação, não será inteiramente recomposta.
ConJur — Na esfera administrativa, o que 2012 trouxe de novo?
Nelson Calandra — Foi julgada, pelo Supremo Tribunal Federal, a ADI que tratava dos poderes correcionais do CNJ. Ficaram estabelecidas duas coisas: a primeira é que o CNJ não é mais um tribunal brasileiro, mas uma parte de um continente chamado Judiciário. E muito mais que isso: o Supremo decidiu que não é possível afastar um juiz de seu cargo sem um processo administrativo disciplinar instaurado — o que era pretensão da antiga corregedora nacional de Justiça, ministra Eliana Calmon. Foram importantes vitórias.
ConJur — Qual sua opinião sobre a competência concorrente do CNJ com as corregedorias locais dos tribunais, decidida pelo STF? Nelson Calandra – Nós não éramos completamente contra. O que não é possível é eliminar as corregedorias como fontes de investigação de fatos ocorridos nos estados. E, para nossa alegria, o atual corregedor nacional, ministro Francisco Falcão, ao assumir o cargo, deixou claro que ele quer que as corregedorias locais exerçam seu papel antes de a Corregedoria Nacional atuar.
ConJur — O Conselho Nacional de Justiça e o Tribunal de Justiça de São Paulo protagonizaram uma queda de braço no ano passado. Qual o saldo dessa disputa? Nelson Calandra — O tribunal amadureceu e cresceu muito. Os conflitos com o CNJ mostraram mazelas que muitos de nós sabíamos que existiam. E quero dizer que estamos superando dificuldades. Pela primeira vez um presidente, que é o desembargador Ivan Sartori, está implantando a figura do assessor para o juiz de primeiro grau. Tem também o desembargador José Renato Nalini, um dos grandes juristas brasileiros, um corregedor extraordinário. Pena que nenhum presidente da República o nomeou para o Supremo.
ConJur — Em que a eleição direta para a diretoria de tribunais, outra bandeira da AMB, mudaria o quadro para a melhor? Nelson Calandra — Queremos a eleição direta porque entendemos que, democratizando a questão, vamos melhorar o serviço lá na ponta da linha. Na medida em que o juiz vota, ele está fazendo suas reivindicações de melhora. Não é por vaidade, mas para que possamos ver outros colegas chegando à direção do tribunal, e não só os mais antigos. Quer ser eleito? Faça como no Ministério Público e gaste sola de sapato andando pelo estado inteiro para conhecer os problemas e poder apresentar um plano de gestão.
Pedro Canário é repórter da revista Consultor Jurídico.
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