Santa Clara na década de 30
*Manuscrito deixado pela minha saudosa mãe, professora e
poetisa Maria da Glória Dias Campos, que dá vida às fotografias postadas pelo Pe.
Sidney Canto, no facebook.
"No período de 1934 a 1937, dos 14 aos 17 anos, que passei
interna no Colégio Santa Clara, como órfã, todas as segundas-feiras, após a
missa de costume, que antecedia o café da manhã, minha obrigação, como das
demais colegas, era a lavagem de roupa das 100 (cem) órfãs, padres e freiras daquele
educandário.
Naquela época poucas eram as casas que possuíam água
encanada e o nosso colégio era um deles.
A água era retirada de duas cisternas lá existentes. Umas
delas recolhia a água das chuvas; a outra era movida por cata-vento, isto
quando havia vento, dificultando até o nosso banho, que fazíamos duas vezes por
semana, sendo um deles aos sábados, no rio confronte Santarém.
Bem em frente à primeira prefeitura da cidade, existia na
beira-do-rio um banheiro, conhecido como banheiro das freiras. E aos sábados, lá
íamos nós em grande fila, com duas irmãs para o banho.
Rezávamos para não chover, nem ventar... Sabem por quê? Pelo
simples fato das cisternas não encherem.
Uma vez secas, tínhamos de ir lavar roupa no igarapé dos
padres, no Irurá, onde saciávamos a vontade de tomar banho.
Aos domingos à noite, uma das irmãs, após o jantar, lia a
relação de órfãs que iriam lavar roupa.
Muitas vezes, mesmo sem estarmos em condições de saúde, escondíamos
a verdade, já que era a única chance de sairmos e distrairmos um pouco.
E às cinco horas da manhã, após assistirmos a santa missa
na capela do colégio e, tomado o café, seguíamos o longo percurso felizes a
papaguear rumo ao Irurá.
O carro de boi ia à frente cheinho de sacas de roupa, um
panelão com farofa, frutas, e um pequeno rancho para o almoço do dia. Seu
Chico, irmão da tia Neca, era quem conduzia a carroça.
O caminho era pela densa mata virgem, onde aqui e ali encontrávamos
frutas silvestres como: araçá, pitanga, goiaba, achuá, caju e manga, oferta da
mãe natureza.
Ao chegarmos ao Irurá mudávamos a roupa, merendávamos a
farofa e caiamos no igarapé, onde passávamos quase o dia todo de molho, tomando
banho e lavando roupa.
A tarefa era assim distribuída: umas lavavam as batinas,
outras as camisas, outras as calcinhas, outras as cuecas, meias e lenços. Éramos
em números de trinta meninas e três freiras.
O
almoço era servido às 12h00min em cuias.
Cada uma tinha pressa em acabar com a obrigação para dar
umas voltinhas pelas redondezas à cata de frutas, pois para sermos francas, sentíamos
fome... A curta refeição não nos satisfazia.
Foi numa dessas nossas saídas que, desobedecendo às irmãs,
fomos mais longe, atravessando o igarapé dos padres rumo ao campo do araçá.
Havíamos nos distanciado quando fomos surpreendidas por
uma manada de gado bravo, solto.
Dela surgiu um touro preto que investiu contra nós, obrigando-nos
a subir em árvores, só que o danado simpatizou logo com a que eu estava, e
embaixo dela ciscava, chifrava a tenra árvore, que não sei como não tombou. Ele
dava urros pavorosos.
Imaginem quem nunca havia subido numa árvore antes.
As colegas das outras árvores, vendo que o touro só se
preocupava conosco, desceram de mansinho, indo contar para as irmãs, que
ficaram preocupadíssimas conosco.
Nós permanecemos na mira da fera, até que o animal resolveu
acompanhar a manada que se distanciava.
Nós deixamos seguir um pouco e ato contínuo descemos da
árvore e fomos nos juntar as outras colegas.
Custou-nos a desobediência três dias de castigo, fazendo
refeições de joelhos.
Acho que foi uma injustiça, já que a fome comandava os
nossos passos.
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