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Por Lenio Luiz Streck
A Fifa, a falta de gols e o tamanho das goleiras
Há um tempo atrás, a Fifa, preocupada com a falta de gols
no futebol, propôs o aumento do tamanho das goleiras e a extinção das
barreiras na cobrança de faltas. Genial, não? À época, este escriba fez
um projeto B e remeteu para a Fifa: uma resolução com um artigo apenas,
vazado nos seguintes termos: “art. 1º. – Os goleiros poderão ter, no
máximo, 60 centímetros de altura”. Na justificativa, explicitei que,
além de resolver o problema dos jogadores pernas de pau que não fazem os
gols que a Fifa quer, ainda abriríamos um vasto campo de trabalho para
os pigmeus. Bingo.
Pois quando li o projeto do senador Marcelo
Crivella pretendendo “regulamentar” a atividade dos
bacharéis-que-não-conseguem-passar-no-exame-de-Ordem, lembrei do
“Projeto Fifa”. Em vez de o Senador (e o Parlamento) se preocupar em
enfrentar o problema dos concursos públicos e do exame da OAB em terrae brasilis,
prefere apresentar o “plano-simplesefácil”: aumentar o tamanho das
goleiras e/ou proibir as barreiras (da e na OAB F. C), isto é, já que
não conseguem passar na prova, enfrente-se o problema pelo outro lado,
facilitando a vida dos utentes. Quem não passa na prova vira
advogado-pigmeu. Ou um neo-bacharel-rábula (quem não sabe o que é
rábula, vá ao Google). Um microadvogado ou um superestagiário: podem
escolher. É a vitória da gambiarra. Terrae brasilis é pródigo em produzir o homo gambiaraticus.
Ora,
todos sabem de minhas críticas ao Exame de Ordem no modo como ele é e
vem sendo feito. Ah, como poderia ser diferente! Todos conhecem minhas
críticas aos concursos públicos em geral. Os que leem minhas colunas e
meus livros sabem que chamo a tudo isso de quiz shows. E de “concurso para espertos e não experts”. Em que basta treinar para passar. Lembram de minhas críticas ao concurso passado (o famoso case da “perigosa” ladra Jane, que furtou um veículo em Cuiabá e levou para o Paraguai para vendê-lo a um terceiro de boa-fé [sic]?)
Todos
sabem que tenho dito que os alunos e os profissionais do direito que
refletem temas com profundidade não tem espaço no Exame de Ordem e nos
concursos em geral. Tudo isso eu já disse à sociedade e à saciedade.
Tudo isso é reflexo do imaginário jurídico que se forjou por aqui, em
que até os juízes rejeitam petições mais aprofundadas ou “longas”. É o
imaginário “direito tuitado”.
Também não devem ser
desconhecidas minhas críticas aos cursinhos de preparação que se
forjaram ao longo dos anos ao redor dos “castelos dos concursos e exame
de Ordem” (o que deu azo a uma nova “classe”, como na virada do medievo
para o Estado Moderno-absolutista – gente dos burgos enriquecendo
vendendo coisas para os donos dos castelos...). Já triturei, aqui e em
meus artigos e livros, a baixa literatura que, darwinianamente, foi
sendo “construída” por uma guilda de profissionais que se aproveitam
desse estado d’arte. Disse, certa vez, que não se sabe se os cursinhos
são assim por causa dos concursos ou os concursos são assim por causa
dos cursinhos de preparação. É o que chamei de Dilema Tostines.
Portanto
— atenção — sou insuspeito para escrever a presente coluna. O que quero
dizer é que o fato de o estado d´arte do Exame de Ordem e dos concursos
ser este, não justifica que se faça um atalho espertinho, um jeitinho
para resolver o problema dos que ficam de fora do sistema.
Dois-erros-não-dão-um-acerto. Para atirar fora a água suja da bacia,
temos que ter cuidado para não jogar junto... A criança. No fundo, isso
faz parte de um pensamento patrimonialista, que representa o atraso de
nosso Pindorama. As salas de aula das faculdades mostram bem isso.
Professores, em vez de prepararem as aulas com textos sofisticados (ou
um pouquinho mais complexos), preferem usar apostilas e manuais
resumidos e livros que já no título dizem que “o direito pode ser
facilitado”. Claro. É um ensino jurídico gambiarrático. E é por isso que
o projeto do senador Crivella tem clima vingar. Aliás, o senado, pelo
jeito, não se ajuda muito: há poucos dias aprovou projeto que facilita a
revalidação de diplomas obtidos em cursos de fim de semana no exterior.
Por que não colocamos logo na entrada do Brasil uma placa dizendo que
“aqui damos um jeitinho, sempre”? Nos estados americanos, há sempre um
slogan. Por exemplo, a Philadelphia é o estado da Constituição. Pois aqui poderíamos escrever, talvez na bandeira: “Brasil: terra do jeitinho”! Ou “terra do esgarçamento”.
Vamos, então, ao Projeto Crivella:
1.
Diz o senador Crivella que “temos um problema que vem se agigantando
com o passar dos anos, que são os bacharéis em Direito que não conseguem
aprovação no exame da OAB”. É um problema? Problema seria se todos
esses bacharéis obtivessem autorização tabula rasa para advogar.
Aí sim a coisa degringolaria. Sem qualquer filtro, não tem profissão que
resista. Ao mercado de trabalho seria lançada uma multidão de bacharéis
autorizada a lidar com as questões jurídicas de todos nós; as
consequências disso na sociedade, de um modo geral, podem ser
imaginadas. Não que hoje tenhamos excelência na profissão. Longe disso.
Há incompetentes e analfabetos funcionais lidando com o
direitoatortoea-direito. Mas há também médicos com CRM matando gente. E
engenheiros com Creci deixando prédios caírem (afora os buracos no
asfalto e as pontes rachadas). Mas há de se convir que um filtro mínimo
se torna necessário.
Mesmo porque — e isso é extremamente
relevante — não se faz democracia sem advogados à altura do desafio. O
processo jurisdicional democrático é policêntrico ou, sendo mais claro:
não tem numa só figura (notadamente, no juiz) o protagonista. A tarefa é
compartilhada. Há divisão de tarefas, claro, mas igualdade de
importância. E isso, como venho escrevendo em livros e colunas a fio, é
uma conquista democrática. Então, as partes devem, se quiserem ser
levadas a sério, levar-se a sério.[1] Produzir uma decisão jurídica democrática, construir o Direito,
não é coisa para amadores ou quase-advogados, se é que me entendem. É
incrível como sempre surge algum luminar com uma ideia rápida, fácil e
errada para um problema complexo...!
2. Ainda com base na
declaração feita pelo senador, indago: cabe ao Estado resolver o
problema daqueles que não conseguem passar em uma prova? É típico de
Pindorama dar “jeitinhos” para tudo. Fazer puxadinhos... O sujeito não
passa no exame e aí vem o Estado e “cuida” dele... Afinal, o Estado não
pode se omitir em encontrar espaços de trabalho para todos, inclusive
para os (pelo menos formalmente) inaptos e ineptos. “Coitadinhos,
sofreram durante cinco anos, aguentaram mandos e desmandos de
professores, gastaram grana e agora não conseguem um lugar ao sol...”,
alguém diria. Ora, o Estado (entendido como o conjunto de órgãos que
compõem um governo) deveria se preocupar em cuidar da questão do ensino
do Direito e da forma de acesso à profissão e aos cargos públicos. A
questão é tão grave que o Estado, que deveria ele mesmo cuidar disso —
terceiriza concursos (afinal, isso se tornou uma indústria
rentabilíssima). Ou seja, quem cuida do filtro de quem entra no Estado é
uma empresa (ou empresas). É como na alfândega do aeroporto: quem cuida
da entrada dos estrangeiros é uma firma chamada Facility (o nome ajuda,
certo?). Somos a vanguarda do atraso, pois não?
3) Segundo o projeto, são atividades do “assistente de advocacia”: a) todas as que não estejam definidas no Estatuto da Advocacia
como privativas do advogado. Só que o Estatuto diz que são privativas
da advocacia a postulação a órgão do Poder Judiciário e aos juizados
especiais; e as atividades de consultoria, assessoria e direção
jurídicas. Pergunto: os assistentes poderão, por exemplo, fazer
audiências sem a supervisão de um advogado? (isso já existe, acreditem).
Poderão eles próprios avistarem-se com juízes na tentativa de acelerar
diligências? (isso também já ocorre)... Enfim, o advogado a cada dia se
torna dispensável à administração da justiça[2] (apesar do que diz o Estatuto da Advocacia e a própria Constituição);
b) assistência técnica superior em escritórios e departamentos
jurídicos, privados ou públicos, sob a supervisão geral de advogado:
ora, o sujeito que sequer consegue passar no exame da ordem tem alguma
condição de prestar assistência técnica SUPERIOR em escritórios?
Assistência técnica SUPERIOR? Superior... A quê, cara pálida?
Como
estamos em Pindorama, em seguida tudo isso chegará nas fileiras da
Viúva (Estado), que dará um jeito em aproveitar os neorrábulas. E haverá
um 0800: aperte 1 para falar com o advogado; 2 para falar com um
quase-advogado; 3 para falar com um estagiário; 4 para falar com uma
cartomante... E assim por diante.
4) Para o cliente, o assistente
de advocacia será “vendido” como advogado. Alguém duvida disso? Em que
país estamos mesmo? Hein? Ninguém questionará isso. Atuará como advogado
mesmo. Terá até OAB, segundo projeto Crivella. Só naqueles casos que se
classificam como atividades postulatórias é que assinará juntamente com
um advogado. Mas, convenhamos, isso não será um problema muito grande,
porque haverá advogados que se prestarão a assinar atos postulatórios
juntamente com os assistentes, ainda que nada saibam sobre o caso. Em
que país estamos, mesmo? Advogados que não se deram muito bem na
profissão, outros que sequer a exercem apesar de terem carteira da
Ordem, serão usados pelos assistentes quando for o caso. Outros
simplesmente receberão um percentual dos honorários para assinar atos
postulatórios com os assistentes. É um cenário realista, bem ao gosto de
Pindorama... Bem ao gosto da Myrciaria cauliflora, a nossa jabuticaba. Só dá por aqui.
5)
Conforme o projeto, poderão os assistentes integrar sociedade de
advogados, o que facilitará o exercício da advocacia por eles próprios. O
problema da assinatura dos atos postulatórios, por exemplo, estará
resolvido. E o céu será o limite...
6) As atividades de
consultoria, assessoria e direção jurídica, que são privativas do
advogado, serão exercidas pelo assistente sem maiores problemas, pois
não aparecem, são muitas delas “invisíveis” por assim dizer. Inaptos e
ineptos exercendo a advocacia preventiva, é o que teremos! E as
consequências, como diria o velho Conselheiro Acácio, sempre vem
depois...
7) Sob vários aspectos será mais interessante trabalhar
como assistente de advogado do que como advogado. Afinal, terão eles
direito a honorários contratados. Receberão dos clientes, portanto. E
nada impede que contratem, com o advogado que os “assessora”, percentual
nos honorários de sucumbência. E exercerão a advocacia sob o custo de
uma anuidade que corresponde a 60% daquela destinada a advogados. É a
anuidade “pigmeu” ou anuidade “neo-bacharel-rábula”.
8) O Estado,
com a aprovação desse projeto, está incentivando a preguiça, porque, de
antemão, estabelece que, se você fizer o curso de direito,
tem-dois-caminhos- institucionalizados: o primeiro, ser um advogado (ou
fazer carreira no Estado) ou ser um... Auxiliar de advogado. Em ambos os
casos, terá uma OAB. Já na faculdade, o aluno saberá que, mesmo sem
passar no exame de Ordem, poderá exercer a profissão. O recado é claro:
“— não se preocupem, alunos (mais do que) medíocres, pois terão lugar
garantido no mercado... Não se esforcem tanto, não fiquem preocupados,
não se estressem. Tudo se acertará lá adiante”. É o Estado paternalista
carregando no colo seus filhos, pouco importando as consequências disso a
médio e longo prazo. Pátria amada... Dos filhos deste solo, oh mãe
gentil!
Em síntese: esta coluna não é contra os que não passam no
exame de ordem; com eles me solidarizo em face do estado d´arte dos
modelos implementados nesse contexto nas últimas décadas. Esta coluna é
contra o projeto que pretende dar um drible da vaca em um problema que
deve ser encarado de frente por toda a sociedade. Ou seja, se está mal,
não vamos piorar isso ministrando aspirina para o doente terminal.
Numa palavra:Quo usque tandem abutere, Lenio Streck, patitentianostra?.
Se a moda pega, os bacharéis em medicina que não passarem no exame do
Conselho poderá ter uma inscrição “do tipo B”. Será, quem sabe, auxiliar
de médico. Fará... Curativos. Bingo. Isso poderá ser estendido às
profissões que tenham provas de ingresso nas devidas “ordens”. Em vez de
discutirmos a competência dos centroavantes, estamos aumentando o
tamanho das goleiras e/ou estabelecendo um limite para a altura dos goal keepers.
Que vergonha. Em vez de lermos um livro, vamos ao Google e pegamos o
resumo. E o resumo do resumo. Como diria o personagem de Machado, na Teoria do Medalhão,
em vez de fazer um tratado sobre a vida dos carneiros, compre um e
asse, oferecendo-o aos amigos que você quer influenciar! Em vez de
estudarmos Kelsen, Dworkin e outros autores complexos, compremos
apostilas. Em vez de prepararmos aulas, compremos os livros “resumos
para professores”. Em vez de cursar mestrado e doutorado no Brasil,
atravessemos a fronteira da amizade. Façamos um curso de férias. Na
volta, invoquemos os acordos do Mercosul.
Terraebrasilis chegou
ao paroxismo. Os semiadvogados são apenas um sintoma (um
particularmente bizarro, é bem verdade) de uma doença bem séria. E ainda
não inventamos os antibióticos. Mas, já que ca
estamos, por que parar por aí? Assim, que tal um concurso para
quase-juízes, abrangendo, especificamente, aqueles valentes bacharéis
que se preparam durante anos para prestar o concurso público desejado,
mas não chegam a passar de fase? Terão foro semi-privilegiado (sei lá,
serão julgados por juízes convocados, esses quase-desembargadores) e
tomarão quase-decisões. E por que não quase-promotores-de-justiça? Ou
quase-defensores públicos? Quase-procuradores do estado? Todos receberão
60% do subsídio e farão, no caso dos promotores e defensores, sob a
atenta supervisão dos agentes “de verdade”, 60% da peroração no plenário
do Júri? Bingo de novo!
Post Scriptum: Quo usque tandem abutere, Lenio Streck, patitentia nostra?
Vocês não são Cícero, não estamos perante o senado e, por Deus!, não
sou Catilina. Mas contem comigo para continuar abusando da paciência de
vocês. Enquanto houver conspiradores e eu tiver forças,
seguiremos. Não se chega a ter LEER (Lesão-por-Esforço-Epistêmico-
Repetitivo) por nada. Orgulho-me das cicatrizes. Faz escuro, mas eu
canto, dizia o poeta.
[1]Prova disso é que Pindorama continua
produzindo um imaginário jurídico errático e fragmentado. Posições
ideológicas e de grupos são confundidas com possibilidades de se fazer
qualquer interpretação sobre a Constituição
e as leis. Tudo pode. Diz-se qualquer coisa sobre qualquer coisa. Um
dos sintomas disso é o pamprincipiologismo, pelo qual qualquer “valor”
(sic) é transformado em normatividade. Para que serve a lei? Para que
serve a Constituição? Para os pamprincipiologistas, nada!
Sincreticamente (para dizer o menos), invoca-se autores sem qualquer
compromisso teorético, além dos sacrilégios com autores sofisticados.
Como é possível sustentar, de forma impune, que Dworkin avalizaria a
esdrúxula decisão do TJ-MA que, contra a Constituição,
contra a legislação, contra a legítima esposa e contra os filhos, deu
metade da herança para a concubina adúltera? Direito é brincadeira?
Direito é um joguinho retórico? Direito é militância? A propósito da
invocação de Dworkin, lembro apenas uma de suas máximas: Juiz não cria
direito! E não julga por políticas ou outros quetais. Parece que, em terraebrasilis, milita-se, em vez de fazer doutrina, como é o caso do artigo Familias paralelas e poliafetivas devem ser reconhecidas pelo Judiciário (ler
aqui), no qual fui duramente criticado. Não tenho mais paciência para
esse tipo de debate que quer pessoalizar as coisas. Minha LEER (Lesão
por Esforço Epistêmico Repetitivo) não permite discutir com o senso
comum teórico (ou suas vulgatas). Aliás, os comentários dos leitores ao
referido artigo já “mataram” a questão. Por todos, basta ler o que
escreveu Sérgio Niemeyer. Bingo, Sérgio!
[2] Basta ver, nesse
sentido, o pensamento de alguns juízes de Pindorama, como é o caso do
artigo publicado neste Conjur (ler aqui), intitulado Juiz tem o poder-dever de determinar, de ofício, provas necessárias,
em que o autor “descobriu” que o juiz-boa-da-lei morreu (bem nova essa,
não?) e agora em seu lugar deve ser colocado um juiz pro-ativo (eis o
fator Büllow nos atormentando). Incrível como esse tipo de tese ainda
tem espaço em um país de modernidade tardia como o nosso. O articulista
prega uma ordem “justa pautada na instrumentalidade do processo” (sic)
(o que seria isto?). E acredita na verdade material (ou real). Eis o que
ele sustenta: “a verdade que reflete com exatidão os acontecimentos
exteriores ao processo é a obsessão a ser seguida”. Ora, obsessão é
acreditar na possibilidade de uma adequatiointelectum et rei
(que, para quem não sabe, é a verdade pré-moderna!). De fato, se o juiz
tem todo esse poder e ele tem a “capacidade” de ver com exatidão os
acontecimentos, como diz o articulista, para que precisamos de
advogados? Ou de Promotores? Ou como disse um dos leitores: Partes para
que? Enfim, eis mais um motivo do agravamento de minha LEER (Lesão por
Esforço Epistêmico Repetitivo).
Como dizem os espanhóis: "¡ les distes en el clavo!".
ResponderExcluirMuito bem José Ronaldo! Agora pergunto: e a OAB? Permanecerá em silêncio sobre este projeto ridículo?
Haverá um " jeitinho" para solucionar as consequências?