Publicado por Avante Brasil
O
portal JusBrasil informou que “A Comissão de Segurança Pública e
Combate ao Crime Organizado aprovou, no dia 20/8/14, proposta que inclui
no Código Penal o crime de intimidação vexatória (ou bullying). A proposta será analisada agora pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Depois, seguirá para o Plenário”.
Re mellius perpensa: logo após a discussão do novo CP (2012) cheguei a pensar (e escrever) que seria uma boa medida política-criminal incluir o delito de bullying no CP.
Melhor meditando sobre o assunto, hoje vejo essa iniciativa como uma
aberração sem tamanho (é incrível como em alguns momentos a senilidade
patológica invade nossa cabeça).
É uma aberração jurídica a proposta porque todos os fatos compreendidos no bullying
já estão tipificados nas leis penais (morte, ameaça, injúria, calúnia,
furto, lesão corporal etc.). Logo, não é por falta de lei que o
gravíssimo problema do bullying (que atinge mais de 5 milhões de crianças e adolescentes por ano no Brasil – veja nosso livro Bullying, Saraiva) não tem sofrido redução.
Uma
das mais graves doenças do nosso país é a falta de certeza da lei
(falta de império da lei). Diante da ausência dessa certeza da lei
penal, o legislador, do alto de sua impotência crônica e da sua
demagogia sistemática, faz de conta que vai resolver os problemas
sociais com a mera aprovação de uma nova lei penal (pedida pela
população brasileira totalmente desnorteada diante do quadro agudo de
violência do país). Entre as promessas que o legislador faz e a
realidade há muita embromação.
Os humanos, diz o filósofo Savater (Ética de urgência, p.
119), “somos maus o quanto nos deixam ser. Se alguém acredita que pode
fazer algo e alcançar alguma vantagem, se está completamente seguro de
que nada vai ocorrer, pois o fará”. Com ressalva dos abolicionistas, a
repressão (desde que justa e proporcional) continua sendo defendida no
campo do poder punitivo (é da tradição moral ocidental).
Na
prática brasileira, no entanto, essa reprovação ocorre em poucos casos.
Diante da falência do estado repressor (da certeza do castigo), que
conta com capacidade bastante reduzida para fazer frente à
criminalidade, algo (substitutivo) tem que ser inventado (ou a sociedade
entra no caos absoluto). Esse alto foi inventado: se chama populismo
penal.
É um discurso e uma prática onde todos enganam ou se
autoenganam. Puro estelionato (na sua quase totalidade). A população
pede mais rigor penal (mais efetividade da lei) e o legislador entrega
outro produto, o falso: aprova novas leis penais. A irracionalidade é
brutal: as leis atuais não são cumpridas, logo, para solucionar o
problema vamos aprovar novas leis penais. Sem pé nem cabeça!
Nosso Código Penal
de 1940, na esteira desse populismo charlatão, já foi reformado 155
vezes (da data do Código até 2014). Nenhum crime, a médio prazo,
diminuiu.
Mais de 280 pessoas são massacradas por dia no Brasil
(126 no trânsito e 157 assassinadas). O fracasso da política populista
do legislador penal demagogo, nas últimas 7 décadas, está estampado na
realidade: 2 milhões e 300 mil pessoas perderam a vida no trânsito ou
por causa das mortes intencionais (dolosas). Mais de 2 milhões de
cadáveres e os números continuam aumentando. A única verdade na
criminologia é a realidade. E a realidade dos cadáveres é incontestável
(Zaffaroni). A política do populismo penal demagógico é ineficaz.
Diante
desses números escabrosos, como é possível ainda encontrar adeptos uma
política tão parcial (porque só repressiva) quanto ineficaz? Como pode,
em pleno século XXI, uma política pública tão questionada (a do
populismo penal), fundada exclusivamente no senso comum da dura
repressão, continuar com tantos admiradores? Como é possível que os
legisladores, apesar do fracasso da política reativa isolada, continuem
fazendo a mesma coisa (edição de novas leis), do mesmo jeito (leis cada
vez mais duras), durante as últimas 7 décadas?
Seria a força
dramatizadora da mídia a responsável por isso? Seria a
instrumentalização eleitoral do poder punitivo o centro desse fenômeno?
Seria a ingenuidade da população? Como ainda existem pessoas que
acreditam no mito preventivo da política repressiva desacompanhada de
medidas preventivas eficazes? Por que tudo isso ainda acontece no nosso
país, sem perspectiva de mudança? Se se tratasse de uma doença grave,
que estivesse dizimando a população, claro que o povo não deixaria
prosperar a mesma política errada. Por que, no campo criminal, isso
acontece?
Por que os parlamentares de hoje pensam da mesma forma
que os parlamentares das décadas de 40, 50? Por que a mídia de hoje (no
campo criminal) é a mesma (na sua essência) desse período histórico? O
que estaria por detrás da durabilidade do mito repressivo, que promete
resultados mágicos nunca alcançados (a diminuição da criminalidade)? Que
tipo de fanatismo que está cegando a população estaria por detrás de
tudo isso? Por que não conciliar a repressão com a prevenção,
priorizando esta, como aponta a ciência? Por que não copiar os países
que alcançaram enorme sucesso em suas políticas preventivas (Canadá,
Dinamarca, Suíça etc.)?
Por que neste setor o fogo das paixões
(Durkheim) ainda não cedeu lugar para o primado da razão (como sugeria
Hobbes, Kant etc.)? Teria razão Nietzsche (Genealogia da moral)
ao sinalizar que por detrás de tudo estaria uma tradição moral vingativa
da cultura judaico-cristã? Como explicar, diante de tanto fracasso da
política puramente repressiva, que a opinião pública (midiatizada)
continue acreditando que a solução para nossos problemas reside em punir
mais e castigar melhor (veja Gutiérrez, 2006, p. 20)? O progresso viria
da distribuição de mais dor e mais sofrimento (verberado por Christie,
no livro Los limites del dolor)!
Como conquistam
legitimação rápida as falsas propostas repressivas penais? Isso
ocorreria porque elas compreendem, defendem e exacerbam os sentimentos
de vingança e de medo de grande parcela da população? Será que, como diz
Mead, a população não estaria, por detrás das reações violentas,
fugindo da sua responsabilidade de descobrir as soluções dos seus
problemas? (apud Gutiérrez, 2006, p. 24). As pistas dadas por
Nietzsche, Mead, Christie, Durkheim e tantos outros não deveriam ser bem
investigadas?
No campo do controle da criminalidade poderíamos
estar num paraíso. Mas continuamos mergulhados num inferno profundo. Nos
encontramos (nessa área) naquela situação miserável descrita por Hobbes
(Leviatã, capítulo XIII), com uma grande diferença: não mais a
natureza (adversa) é a causadora da desgraça, sim, a nossa desastrada
urbanização e nossas elites governantes e dominantes. A cada dia nos
aprofundamos mais na escuridão do desespero. A saída é fazer uso da
razão e das paixões que levam à paz (Hobbes). Mas esse não tem sido o
caminho trilhado pelo Estado e pela sociedade, nem tampouco pelo
legislador penal. Que seguem e insistem na política da guerra, que
persegue o inimigo para promover a vingança.
Desde 1937 (Estado Novo), passando pelo Código Penal
de 1940 e pelas 155 reformas penais até 2014, no Brasil só temos
conseguido oferecer uma “solução” enganosa para o problema da
criminalidade: edição de novas leis penais, cada vez mais duras, e
encarceramento massivo abusivo (incluindo criminoso não violento).
Verdadeiro populismo punitivo charlatão. Essas reformas penais costumam
produzir efeito positivo efêmero logo após a sua aprovação, quando
produzem, mas em seguida a criminalidade volta com toda intensidade.
Fonte: JusBrasil.
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