Numa verdadeira República, a qual o Brasil há de fundar, o único tratamento formal possível será o de "senhor", da nossa tradição popular.
Publicado por Murilo Wya Almeida
Em
13/6, um juiz do Paraná desmarcou uma audiência porque um trabalhador
rural compareceu ao fórum de chinelos, conduta considerada "incompatível
com a dignidade do Poder Judiciário".
Não muito antes, policiais
do Distrito Federal fizeram requerimento para que fossem tratados por
"Excelência", tal qual promotores e juízes.
Há alguns meses, foi
noticiado que outro juiz, este do Rio de Janeiro, entrou com uma ação
judicial para obrigar o porteiro de seu condomínio residencial a
tratar-lhe por "doutor".
Tais fatos poderiam apenas soar como anedotas ridículas da necessidade humana de criar (e pertencer a) castas privilegiadas.
No
entanto, os palácios de mármore e vidro da Justiça, os altares erguidos
nas salas de audiência para juízes e promotores e o tratamento
"Excelentíssimo" dispensado às altas autoridades são resquícios diretos
da mal resolvida proclamação da República brasileira, que manteve
privilégios monárquicos aos detentores do poder.
Com efeito, os
nobres do Império compravam títulos nobiliárquicos a peso de ouro para
que, na qualidade de barões e duques, pudessem se aproximar da majestade
imperial e divina da família real.
Com a extinção da monarquia, a
tradição foi mantida por lei, impondo-se diferenciado tratamento aos
"escolhidos", como se a respeitabilidade dos cargos públicos pudesse,
numa república, ser medida pela "excelência" do pronome de tratamento.
Os
demais, que deveriam só ser cidadãos, mantiveram a única qualidade que
sempre lhes coube: a de súditos (não poderia ser diferente, já que a
proclamação não passou de um movimento da elite, sem nenhuma influência
ou participação popular). Por isso, muitas Excelências exigem tratamento
diferenciado também em sua vida privada, no estilo das famosas
"carteiradas", sempre precedidas da intimidatória pergunta: "Você sabe
com quem está falando?".
É fato que a arrogância humana não seduz apenas os mandarins estatais.
A
seleta casta universitária e religiosa mantém igualmente a tradição
monárquica das magnificências, santidades, eminências e reverências. Tem
até o "Vossa Excelência Reverendíssima" (esse é o cara!). Somos, assim,
uma República com espírito monárquico.
As Excelências, para se
diferenciarem dos mortais, ornam-se com imponentes becas e togas, cujo
figurino é baseado nas majestáticas vestimentas reais do passado. Para
comparecer à sua presença, o súdito deve se vestir convenientemente. Se
não tiver dinheiro para isso, que coma brioches, como sugeriu a rainha
Maria Antonieta aos esfomeados que não podiam comprar pão na França do
século 18.
Enquanto isso, barões sangram os cofres públicos impunemente.
Caso
flagrados, por acaso ou por alguma investigação corajosa, trata a
Justiça de soltá-los imediatamente, pois pertencem ao mesmo clã nobre
(não raro, magistrados da alta cúpula judiciária são nomeados pelo
baronato).
Os sapatos caros dos corruptos têm livre trânsito nos
palácios judiciais, com seus advogados persuasivos (muitos deles são
filhos dos próprios julgadores, garantindo-lhes uma promiscuidade
hereditária), enquanto os chinelos dos trabalhadores honestos são
barrados. Eles, os chinelos, são apenas súditos. O único estabelecimento
estatal digno deles é a prisão, local em que proliferam.
A
tradição monárquica ainda está longe de sucumbir, pois é respaldada pelo
estilo contemporâneo do liberal-consumismo, que valoriza as pessoas
pelo que têm, e não pelo que são.
Por isso, após quase 120 anos
da proclamação da República, ainda é tão difícil perceber que o respeito
devido às autoridades devia ser apenas conseqüência do equilíbrio e bom
senso dos que exercem o poder; que as honrarias oficiais só servem para
esconder os ineptos; que, quanto mais incompetente, mais se busca
reconhecimentos artificiais etc.
Numa verdadeira República, que o
Brasil ainda há de um dia fundar, o único tratamento formal possível,
desde o presidente da nação ao mais humilde trabalhador (ou
desempregado), será o de "senhor", da nossa tradição popular.
Os
detentores do poder, em vez de ostentar títulos ridículos, terão o
tratamento respeitoso de servidor público, que o são. E que sejam
exonerados se não forem excelentes!
Seus verdadeiros chefes,
cidadãos com ou sem chinelos, legítimos financiadores de seus salários,
terão a dignidade promovida com respeito e reverência, como determina o
contrato firmado pela sociedade na Constituição da República.
Abaixo as Excelências!
FAUSTO RODRIGUES DE LIMA, 36, é promotor de Justiça do Distrito Federal.
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