"É mais fácil formular uma acusação que destruí-la, como é mais fácil abrir uma ferida que curá-la" (Faustin Helie, 1866).
Escrever sobre a presunção de inocência pareceria,
a princípio, tarefa fácil, uma vez que a garantia é consagrada pela
Constituição, sacramentada por diplomas internacionais e repetidas vezes
destacada em decisões judiciais como elemento fundador de um Estado de
Direito.
No entanto, é preciso sempre indicar a importância, os
fundamentos dos princípios e regras, mesmo que consolidados, para
resguardar sua existência. E com mais veemência quando observamos
frequentes manifestações pela relativização da garantia em questão,
apontando-a como causa da impunidade e da tibieza estatal no combate à
criminalidade.
Por isso, inauguramos a coluna em 2013 com algumas
reflexões sobre o tema, talvez mais em tom de desabafo — ou de angústia —
do que de análise técnica.
Origens e evolução da presunção de inocência
A ideia de que todos são inocentes até manifestação judicial definitiva em contrário é antiga. Bem antiga. Há quem aponte passagens da presunção de inocência no Direito romano. De qualquer forma, a consagração do princípio na Declaração dos Direitos do Homem de 1789 revela que já há alguns séculos a vedação da punição antes da confirmação judicial da culpa era tida como sustentáculo de um modelo jurídico racional.
A ideia de que todos são inocentes até manifestação judicial definitiva em contrário é antiga. Bem antiga. Há quem aponte passagens da presunção de inocência no Direito romano. De qualquer forma, a consagração do princípio na Declaração dos Direitos do Homem de 1789 revela que já há alguns séculos a vedação da punição antes da confirmação judicial da culpa era tida como sustentáculo de um modelo jurídico racional.
Mas nem tudo o que é sólido é mantido eternamente em tal estado, como diria um velho pensador político. A presunção de inocência
foi mitigada nos anos que antecederam aos regimes totalitários da
primeira metade do século XX, em especial por juristas italianos que
viam no instituto uma ideia irracional. Por todos, citemos Manzini, que desenvolveu a ideia da substituição da presunção da inocência pela presunção da não culpabilidade. Para o autor, o magistrado carece de condições para atestar ou presumir a inocência de alguém. Pode, no máximo, afastar a pretensão da acusação de declará-lo culpado, mas isso não significa inocência. Significa
que os indícios colhidos pela investigação foram contraditados
suficientemente pela defesa, afastando as premissas para uma condenação.
Ainda que revestida de cuidados retóricos, a proposta de Manzini desembocava na presunção de culpabilidade, pois
para o autor cabia à defesa afastar os indícios colhidos pelo órgão
estatal, ou ao menos deixar o juiz em dúvida (a incerteza ou a dúvida
leva à declaração de não culpabilidade, mas não à inocência).
Partia-se do princípio que as teses da acusação eram sustentáveis em
si, e se não rebatidas, levavam à condenação. Invertiam-se os sinais, as
incumbências das partes, e feria-se de morte a presunção de inocência.
No
Brasil, tais ideias permearam a legislação do Estado Novo. O
Decreto-lei 88/37 — que instituiu o Tribunal de Segurança Nacional —
previa no artigo 20, 5, que “presume-se provada a acusação, cabendo
ao réu prova em contrário, sempre que tenha sido preso com arma na mão,
por ocasião de insurreição armada, ou encontrada com instrumento ou
documento do crime”. Assim, a prática de crimes graves e o estado de flagrância suprimia a presunção de inocência, em uma fórmula não muito distante daquela adotada por alguns diplomas legislativos em vigor.
Passada
a 2ª Grande Guerra, o princípio voltou a almejar caráter universal, a
ponto de ser incluído expressamente na Declaração dos Direitos do Homem e
do Cidadão (art. XI) no Pacto de San José da Costa Rica (art. 8º), e em
diversos textos constitucionais nacionais, dentre os quais no nosso, no
conhecido inciso LVII do artigo 5º, “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Contornos da presunção de inocência no Brasil
Com a previsão expressa da presunção de inocência na Carta Maior, aos poucos foram relegados à inconstitucionalidade dispositivos legais que impunham restrições de direitos em decorrência de juízos provisórios de culpa, assim caracterizadas as decisões de magistrados ou tribunais sem caráter definitivo, como a chamada execução provisória da pena, que admitia, com base em dispositivos do Código de Processo Penal, a antecipação da sanção penal após condenação em segundo grau, mesmo que não transitada em julgado (por exemplo, na pendência de recurso especial ou extraordinário).
Com a previsão expressa da presunção de inocência na Carta Maior, aos poucos foram relegados à inconstitucionalidade dispositivos legais que impunham restrições de direitos em decorrência de juízos provisórios de culpa, assim caracterizadas as decisões de magistrados ou tribunais sem caráter definitivo, como a chamada execução provisória da pena, que admitia, com base em dispositivos do Código de Processo Penal, a antecipação da sanção penal após condenação em segundo grau, mesmo que não transitada em julgado (por exemplo, na pendência de recurso especial ou extraordinário).
No paradigmático HC 84.078-7/MG (julgado em 5.2.2009), o Pleno do STF decidiu pela inconstitucionalidade dessa execução provisória da pena. A decisão de impedir a execução da pena antes do trânsito em julgado da decisão condenatória foi criticada por alguns como contraproducente sob a perspectiva político criminal. Alegava-se que a morosidade do processo penal e o elevado número de recursos disponíveis, somada à necessidade do trânsito em julgado para a imposição da pena, conferiam uma sensação de impunidade, pois deixavam livres agentes já condenados em duas instâncias.
Diante de tais manifestações, o ministro Eros Grau, relator do Habeas Corpusem questão, foi enfático: “A
prevalecer o entendimento que só se pode executar a pena após o
trânsito em julgado das decisões do RE e do Resp, consagrar-se-á, em
definitivo, a impunidade. Isso — eis o fecho de outro argumento —
porque os advogados usam e abusam de recursos e de reiterados Habeas
Corpus, ora pedindo a liberdade, ora a nulidade da ação penal. Ora — digo eu agora —
a prevalecerem essas razões contra o texto da Constituição melhor será
abandonarmos o recinto e sairmos por aí, cada qual com o seu porrete,
arrebentando a espinha e a cabeça de quem nos contrariar. Cada qual com o
seu porrete! Não recuso significação ao argumento, mas ele não será
relevante, no plano normativo, anteriormente a uma possível reforma
processual, evidentemente adequada ao que dispuser a Constituição. Antes
disso, se prevalecer, melhor recuperarmos nossos porretes...”.
Assim, restou — naquele momento — consolidada a presunção de inocência, com
o rechaço pela Corte Constitucional de qualquer imposição antecipada de
pena antes do trânsito em julgado. E nessa linha seguiu o ministro
Joaquim Barbosa, ao negar pedido de prisão dos réus na Ação Penal 470
antes de condenação definitiva.
Imposição automática de medidas cautelares processuais penais de caráter pessoal
A consolidação da presunção de inocência, no entanto, foi distorcida por um fenômeno legislativo recorrente: a imposição automática de medidas cautelares pessoais diante da gravidade dos crimes imputados.
A consolidação da presunção de inocência, no entanto, foi distorcida por um fenômeno legislativo recorrente: a imposição automática de medidas cautelares pessoais diante da gravidade dos crimes imputados.
Inúmeras leis foram aprovadas pelo Congresso Nacional estabelecendo a prisão preventiva obrigatória de réus acusados da prática de determinados crimes, sob a forma de vedação de liberdade provisória. A
Lei 8.072/90, artigo 2º, II (crimes hediondos), Lei 9.613/98, artigo 3º
(lavagem de dinheiro), Lei 10.826/03, artigo 21 (armas) Lei 11.343/06,
artigo 44 (drogas), previam que em caso de prisão em flagrante, o agente não poderia ser beneficiado com a liberdade provisória dada a gravidade do delito imputado. Em outras palavras, o legislador impunha a prisão cautelar automática aos presos em flagrante.
Com
o passar do tempo, tais preceitos também foram declarados
inconstitucionais — em caráter incidental ou abstrato — por sua
incompatibilidade com a presunção de inocência.
Notou o STF, em diversas oportunidades, que tais dispositivos não
passavam de subterfúgio para mitigar a presunção constitucional de
inocência.
As medidas cautelares — prisão e mesmo outras menos gravosas —
justificam-se diante de um comportamento do réu no sentido de turbar a
investigação ou a persecução. A imposição de restrições a direitos
automáticas, sem qualquer análise da conduta concreta do afetado, não
tem natureza cautelar — pois não estão atreladas a fatos que indiquem a
possibilidade de perecimento de direito ou bens — mas caracterizam uma sanção antecipada. Não por acaso, estão sempre ligadas à gravidade do crime, à hediondez da imputação, ou
seja, a uma acusação cuja demonstração está ainda em curso, cuja
constatação requer o exaurimento de uma instrução ainda em andamento.
Em outras palavras, a cautelar automática é uma execução antecipada da pena, uma vez que carece de justificativa instrumental. Portanto, conflita claramente com a presunção de inocência, sendo corretamente declarada inconstitucional em diversas oportunidades pela Corte Maior.
Mitigações à presunção de inocência
No entanto, mesmo com toda a vigilância jurisprudencial, não raro são aprovadas leis incompatíveis com a presunção de inocência. Embora não se admitam mais regras que imponham execução antecipada da pena, ou prisão preventiva obrigatória, outras tantas formas de afetação da presunção de inocência foram aprovadas pelo Legislativo e até mesmo chanceladas pelo Judiciário.
No entanto, mesmo com toda a vigilância jurisprudencial, não raro são aprovadas leis incompatíveis com a presunção de inocência. Embora não se admitam mais regras que imponham execução antecipada da pena, ou prisão preventiva obrigatória, outras tantas formas de afetação da presunção de inocência foram aprovadas pelo Legislativo e até mesmo chanceladas pelo Judiciário.
É
o que ocorreu com a chamada Lei da Ficha Limpa. A Lei Complementar
135/2010 estabeleceu que são inelegíveis todos os condenados por órgão colegiado pela prática de alguns crimes elencados na norma (ex. crimes contra a fé pública, o patrimônio público ou privado, o sistema financeiro). Em outras palavras, a norma previu a inelegibilidade daquele
que foi considerado culpado em julgamento proferido por mais de uma
pessoa, mesmo que tal decisão não seja definitiva, não tenha transitado
em julgado.
Sabe-se que o STF declarou tal dispositivo
constitucional (ADPF 4.578), mas isso não o isenta de críticas, nem
impede que se aponte sua incompatibilidade com a presunção de inocência, como já apontamos em Coluna anterior.
Da
mesma forma, a nova redação da Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei
9.613/98, com a redação alterada pela Lei 12.683/12) afronta a presunção de inocência ao prever o afastamento automático do servidor público em caso de indiciamento pelo crime de lavagem de dinheiro.Pelo artigo 17-D, sempre que a autoridade policial indiciar um servidor público por lavagem de dinheiro, a consequência imediata, automática, será seu afastamento do cargo.
Mais uma vez, mitiga-se a presunção de inocência, ao impor ao réu uma pesada medida cautelar constritiva sem fundamento processual, como mera antecipação de pena, calcada em decisão provisória do delegado de Polícia.
Da mesma forma, o projeto de lei de reforma do Código Penal, em trâmite no Senado Federal, propôs a criminalização do enriquecimento sem causa, definido como o ato de “adquirir,
vender, emprestar, alugar, receber, ceder, utilizar, ou usufruir de
maneira não eventual de bens ou valores móveis ou imóveis, cujo valor
seja incompatível com os rendimento auferidos pelo funcionário público
em razão de seu cargo ou por outro meio lícito” (art.227).
Tal proposta também viola o princípio em comento, pois parte da presunção de que o patrimônio não justificado do servidor público não só é fruto de ilícito, mas de ilícito penal, e impõe a ele a comprovação da origem legal dos bens, sob pena de criminalizar seu status patrimonial.
Conclusão
Parece claro que a presunção de inocência, embora consagrada constitucionalmente, vigora pela incessante atividade jurisdicional de vigilância, pela constante declaração de inconstitucionalidade de preceitos que, expressa ou veladamente, mitigam sua aplicação. Mesmo assim, são vezeiras leis ou propostas que afetam a regra, sempre calcadas no argumento de que o respeito à disposição constitucional aumenta a impunidade e enfraquece a política criminal, em especial nos casos de réus acusados de delitos graves.
Parece claro que a presunção de inocência, embora consagrada constitucionalmente, vigora pela incessante atividade jurisdicional de vigilância, pela constante declaração de inconstitucionalidade de preceitos que, expressa ou veladamente, mitigam sua aplicação. Mesmo assim, são vezeiras leis ou propostas que afetam a regra, sempre calcadas no argumento de que o respeito à disposição constitucional aumenta a impunidade e enfraquece a política criminal, em especial nos casos de réus acusados de delitos graves.
O mais
preocupante é que muitas destas propostas contam com amplo apoio
popular, o que se explica nas palavras de Arnaldo Malheiros Filho: “Escravos
aos leões, enforcamentos em praça pública, autos-de-fé com gente
ardendo na fogueira sempre foram, ao longo da história, campeões de
audiência. Nossa sociedade midiática só aprofunda o sucesso das
execuções sem julgamento e sem “formalidades” que protejam os direitos
individuais.”
No entanto, vale aqui a lição de Rui Barbosa, para quem a gravidade dos delitos imputados ao réu apenas reforça a necessidade de respeito à presunção de inocência: “Quanto
mais abominável é o crime, tanto mais imperiosa, para os guardas da
ordem social, a obrigação de não aventurar inferências, de não revelar
prevenções, de não se extraviar em conjecturas (...) Não sigais os que
argumentam com o grave das acusações, para se armarem de suspeita e
execração contra os acusados. Como se, pelo contrário, quanto mais
odiosa a acusação, não houvesse o juiz de se precaver mais contra os
acusadores, e menos perder de vista a presunção de inocência, comum a
todos os réus, enquanto não liquidada a prova e reconhecido o delito.”
A
redução da impunidade não está atrelada ao enfraquecimento das
garantias constitucionais. Ela passa pela racionalização do processo
penal, pelo desenvolvimento de sistemas de inteligência policial, pelo
cuidado das autoridades em evitar nulidades que atrasam a persecução.
Existem várias formas de conferir eficiência ao sistema penal sem abrir
mão dos preceitos e garantias construídos pelo tempo, que protegem o
cidadão contra o arbítrio, contra o mau uso do ius puniendi.
Pelo
exposto, resta claro que, apesar dos anseios por uma intervenção
estatal mais aguda na liberdade em nome de uma pretensa segurança, ainda
vigora um limite, um parâmetro constitucional e intransponível ao menos
no Estado de Direito: a inocência como o estado original de todo o cidadão brasileiro.
Afastada
tal garantia, seja pela fase processual, pela gravidade do delito, ou
por qualquer outra justificativa atrelada a um juízo de culpa, restará
desprotegido o cidadão perante o Estado e perante seus pares, submetido a
restrições de direitos antes de considerações definitivas sobre as
questões por ele alegadas. Esvaziado estará o Estado de Direito, e,
nesse caso, como já disse o ministro Eros Grau: “melhor recuperarmos nossos porretes...”
Fonte: Conjur
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