sábado, 27 de outubro de 2012

Juízes apontam perigos da politização do Judiciário

A cada seis anos, ministros da Suprema Corte de 20 dos 50 estados dos Estados Unidos enfrentam um processo eleitoral. Seus nomes são colocados nas cédulas de votação para os eleitores decidirem se devem permanecer no cargo ou se devem ser removidos. É uma escolha plebiscitária: "sim" ou "não". O propósito desse processo era separar o joio do trigo — tirar dos tribunais juízes desqualificados para exercer o cargo, seja por incompetência, por violação da ética ou por incapacidade.

Era. Nos últimos meses, com a proximidade das eleições gerais de novembro, o processo de politização da escolha popular de juízes e ministros das Supremas Cortes, que começou há mais de uma década, se agravou. Os partidos políticos, notadamente o Partido Republicano, bem como grandes corporações, começaram a investir pesadamente em campanhas políticas para eleger juízes ou para remover ministros que decidem contra seus interesses, essencialmente porque preferem fundamentar suas decisões em uma instituição às vezes inconveniente: a lei.
 
Em artigos e editoriais publicados no The National Law Journal, no site Protect Oregon Courts e no jornal Tampa Bay Times, além de em diversas outras publicações, os magistrados americanos se empenham em denunciar a "ação ostensiva do Partido Republicano para politizar o Judiciário". 

Reclamam que, hoje em dia, os juízes já têm de investir "verbas astronômicas" em campanhas políticas, recursos que eles não têm, para serem eleitos para o cargo. No caso dos ministros das Supremas Cortes, que são apontados por governadores, agora também têm de investir um grande volume de recursos financeiros em campanhas políticas para se manter no cargo.

Curiosamente, estão na linha de frente da "rebelião dos juízes" os magistrados aposentados — especialmente ex-ministros de Supremas Cortes Estaduais. Provavelmente para evitar que os juízes tenham de se politizar para combater, na arena política, a politização do Judiciário. A questão-chave é a independência dos juízes para julgar, dizem os ex-ministros Ruth McGregor e Randall Shepard. "Hoje em dia, os ministros das Supremas Cortes estaduais têm de julgar com um olho na lei e outro nas forças políticas que podem derrubá-los nas próximas eleições",  afirmam.

São mais graves, desta vez, os casos da Flórida e de Iowa. Na Flórida, segundo editorial do Tampa Bay Times, o governador Rick Scott e membros do Partido Republicano na Assembleia Legislativa do estado estão tentando remover da Suprema Corte três ministros que se recusaram a reverter leis que eles não gostam. Neste ano, estão nas cédulas de votação os nomes dos juízes R. Fred Lewis e Barbara Pariente, ambos apontados pelo ex-governador democrata Lawton Chiles, e Peggy Quince, que foi apontada conjuntamente por Chiles e pelo ex-governador republicano Jeb Bush. O editorial afirma que a campanha política para derrubá-los "é um assalto ao Poder Judiciário do estado, em que a principal arma é a intimidação política".

De acordo com o jornal de Tampa, os republicanos estão usando um caso que ocorreu em 2003, antes portanto das eleições anteriores, em que ninguém levantou o "problema", para "alimentar a indignação pública contra os três ministros". Nesse caso, a Suprema Corte da Flórida anulou o julgamento — e a condenação à pena de morte — de um réu acusado de um crime que causou comoção popular. "A defesa do réu foi inadequada", concluiu a corte. E ordenou novo julgamento.

Mas as verdadeiras razões são outras, diz o jornal. Uma, por exemplo, foi a decisão da Suprema Corte de anular uma medida tomada pelo governador. Logo que tomou posse, ele assinou uma ordem executiva, aparentemente absurda, em que tentava assumir o controle do processo de aprovação de leis no Estado. A Suprema Corte do estado decidiu que Rick Scott "excedeu sua autoridade constitucional e violou a separação dos poderes". E derrubou a medida. Desde então, "sabe-se que o governador não morre de amores pelo Judiciário estadual", afirma o editorial.

A Suprema Corte da Flórida também contrariou os interesses do Partido Republicano quando decidiu a favor da implantação no estado do "Obamacare" (a lei que mudou o sistema de seguro-saúde no país). E também quando proibiu testes para descobrir o uso de drogas por funcionários públicos estaduais e também por cidadãos pobres que requerem alguma forma de assistência social. Em outras duas decisões, que também irritaram o governador, a corte se recusou a derrubar uma lei que autoriza os médicos a perguntar aos pacientes sobre propriedade de armas e derrubou uma lei que dificultava o registro de novos eleitores (que tendem a votar contra os republicanos).

Em Iowa, "estrelas do Partido Republicano tentaram ridicularizar um ministro durante um showmício, dizem os ex-ministros que publicaram um artigo no The National Law Journal. O ministro David Wiggins é o único da Suprema Corte do Estado que enfrenta as eleições deste ano. A Suprema Corte de Iowa decidiu, por unanimidade, a favor do casamento entre pessoas do mesmo sexo — uma afronta para os republicanos. "É hora de retirar dos tribunais esses juízes militantes", disse o presidente do Partido Republicano de Iowa aos eleitores. A remoção do juiz foi defendida por estrelas do Partido, como o ex-senador e ex-candidato à Casa Branca, Rick Santorum, e o governador de Louisiana Bobby Jindal.

Em Oregon, juízes se aliaram a advogados inscritos na seccional da ABA (American Bar Association, a ordem dos advogados dos EUA) no condado de Multnomah, para criar o website Protect Oregon Courts, com o fim de fazer o que o nome diz: proteger os tribunais de Oregon contra a politização do Judiciário. "A população espera que os juízes decidam disputas com imparcialidade. Mas a justiça básica está ameaçada por grupos com interesses especiais, que tentam, regularmente, injetar política em nosso sistema judiciário. Nos opomos fortemente a essas tentativas", diz a mensagem do grupo de juízes e advogados. Veha o que eles argumentam:

* Os fundadores da nação entenderam que os juízes devem permanecer livres de pressões políticas, para poderem tomar decisões justas e imparciais, sem ficarem presos a interesses partidários ou de grupos de uma classe política;

* A visão dos fundadores do país foi de um Poder Judiciário independente e imparcial, que garanta acesso à Justiça, como os mesmos direitos, a todos os cidadãos, mesmo que suas causas sejam politicamente impopulares;

* Um valor essencial é proteger os direitos do indivíduo, mesmo em face da oposição da maioria. A Constituição obriga os juízes a serem fiéis à lei, acima de qualquer coisa.

* Os juízes devem responder por suas ações perante a lei e a população, não a um grupo específico de pessoas, favorecendo algumas leis em detrimento de outras.

* Nosso atual sistema já dispõe de salvaguardas contra o abuso do poder judicial. No sistema estadual, os juízes são eleitos por mandatos limitados, para evitar que o Executivo aponte juízes para cargos vitalícios, como faz o sistema federal. Se um demandante ou demandado não gosta do veredicto de primeira instância, pode recorrer ao tribunal de recursos e, se for o caso, à Suprema Corte do Estado. Alguns casos podem chegar à Suprema Corte dos EUA. Essa é a forma correta de se mostrar inconformidade com as decisões.

* A separação dos poderes exige que o Judiciário funcione de forma independente do Executivo ou do Legislativo.

Os ex-ministros que publicaram o artigo no The National Law Journal informam que foram apontados para o cargo por governadores republicanos. E que se mantiveram no cargo graças aos votos dos eleitores, em tempos em que a política interferia menos no Judiciário. Afirmaram que não têm projetos políticos, mas não podem se calar em um momento em que os juízes americanos estão sob fogo dos políticos, simplesmente por fazerem seu trabalho como ele deve ser feito: de acordo com a lei.

"Mas esses ataques políticos aos magistrados ameaçam interferir no bom funcionamento do Judiciário, minando a capacidade de juízes de decidir de forma justa e imparcial", dizem. "A transformação das eleições judiciais em eventos políticos coloca em grande perigo a busca do cidadão por Justiça e coloca o Judiciário no meio das guerras políticas do país", escreveram.
João Ozorio de Melo é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.
Revista Consultor Jurídico, 27 de outubro de 2012

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