domingo, 25 de novembro de 2012

"A sociedade pede juízes obreiros e não gênios"



Menos punição e mais orientação. Essa é a meta do corregedor-geral da Justiça de São Paulo, José Renato Nalini. Para ele, a atuação da corregedoria deve prevenir os episódios que justificariam uma pena. “O corregedor deveria ser aquele que fiscaliza a disciplina, o comportamento e a conduta funcional e privada de cada juiz. Em algumas situações, infelizmente, não é possível deixar de acionar os instrumentos punitivos, mas, em muitos casos, podemos evitá-los. Principalmente quando é levado em conta que o exercício da magistratura é angustiante. Se o juiz é sensível ele vai absorvendo um pouco do drama, da tragédia, da tristeza de cada processo”, afirma Nalini.

No cargo de corregedor para o biênio 2012/2013, Nalini tem mantido contato e oferecido apoio aos julgadores de forma direta, enquanto avalia mensalmente a produtividade de cada um. “Temos juízes muito rápidos, que têm facilidade em decidir, são concisos e objetivos. Mas há juízes que continuam a produzir sentenças com sofisticação e erudição. Como corregedor, eu tenho insistido pelo princípio da eficiência colocado na Constituição Federal. Precisamos ser eficientes assim como os demais poderes. No momento, aparentemente a sociedade está pedindo obreiro e não gênio.”

A magistratura de São Paulo, segundo o corregedor, sempre foi conservadora. “Os juízes não eram estimulados a serem criativos. Eu vim com o seguinte discurso: ouse, crie.” Criatividade essa que pode ser usada para lidar com a “jurisprudência a la carte” oferecida aos julgadores que lidam com os possíveis entendimentos tirados das leis. “A discricionariedade não é uma prerrogativa do magistrado, é de toda a pessoa capaz de interpretar um texto normativo.” defende o corregedor. 

Na opinião de Nalini, nem tudo deve ser levado para o magistrado. O corregedor defende fórmulas extra-judiciais para solucionar conflitos“Eticamente a solução negociada é muito superior à decisão judicial porque o sujeito exerce a sua autonomia, ele não é objeto.” Além disso, a democracia participativa acenada pela Constituição Federal de 1988 exige o exercício da cidadania. “As pessoas devem participar e parar com a visão paternalista que exige tudo do governo.”

Mudança comportamental que, ainda, não está no campo de visão do corregedor. “Não vejo perspectiva nenhuma. Na verdade temos um discurso muito localizado — cada qual defendendo o seu próprio quintal."

Acessível aos juízes e defensor do exercício da cidadania, o corregedor interrompeu a entrevista, algumas vezes, para atender desembargadores, assessores e cidadãos que, brevemente, passaram pelo gabinete para cumprimentar Nalini pelos feitos diários. 

José Renato Nalini nasceu em Jundiaí, interior de São Paulo, em 1945. É bacharel em Direito pela PUC-Campinas, mestre e doutor em Direito Constitucional pela USP. Ingressou no Tribunal de Alçada Criminal em 1993 e no Tribunal de Justiça em 2004.  Ocupou a presidência do extinto Tribunal de Alçada Criminal e antes de ingressar na magistratura foi membro do Ministério Público.

Leia a entrevista do corregedor à ConJur 

ConJur — Qual sua opinião a respeito dos concursos públicos para ingresso na magistratura?
Renato Nalini — Desde a década de 1980, eu sou um pouco rebelde em relação à fórmula que encontramos de fazer concurso. Ela prioriza a memorização, exigimos que o candidato decore um número imenso de leis, doutrinas, jurisprudências e descuidamos da formação humanística. Então os concursos vêm se repetindo com certa homogeneidade. 


ConJur — A formulação do concurso não é bem feita?
Renato Nalini  Não é isso. Tanto que, em relação às minhas dúvidas, meus colegas me perguntam: “Como é que você não acredita em um concurso que te selecionou”?  Eu acredito no concurso, mas nós podemos melhorá-lo. Nós podemos fazer com que ele responda aos novos desafios da Justiça que precisa de um sujeito que decida, alguém que dê uma resposta, que julgue conflitos de massa, numemundo em que tudo se multiplicou, as lides proliferaram, todas as questões chegam ao Judiciário. 


ConJur — Precisamos de outro tipo de magistrado?
Renato Nalini  Sim. E também outro tipo de promotor, de defensor, de procurador. Vale para todas as carreiras jurídicas. O Conselho Nacional de Justiça editou a resolução 75/2009 e, pela primeira vez, o Tribunal de Justiça de São Paulo resolveu obedecer a resolução. Por isso eu aceitei presidir o 183º Concurso Para Ingresso na Magistratura, pois seria o primeiro de acordo com a nova orientação do CNJ. 


ConJur — Como deve ser feito o preparo do novo magistrado?
Renato Nalini — Na França, no Japão, e em Portugal, por exemplo, há a permanência no centro de estudos do Judiciário. No Brasil, chamaríamos de escola onde o sujeito frequentaria as aulas durante dois anos, pelo menos. Na França são vinte e oito meses. Seria uma preparação como o Instituto Itamaraty faz com os diplomatas, e como a formação de seminário que ainda existe na Igreja Católica. Nós já tivemos essa ideia de escola no estado de São Paulo. Nesse período, eu era juiz auxiliar da presidência, e o presidente era o desembargador Aniceto Lopes Aliende. Ele ficou convencido de que essa escola seria o melhor, mas houve muita crítica, pouca crença no sistema. A própria comissão do concurso não participou do preparo e depois foi bastante rigorosa em relação aos alunos que saíram da escola — quase como uma tentativa de mostrar que não teria adiantado nada a permanência deles lá.


ConJur — O aspecto humano é mais importante do que a teoria?
Renato Nalini — O que menos interessa para o juiz é ele ter habilidade de memorização. Ele precisa ser alguém que tenha curiosidade e vontade de procurar sobre os temas em questão. O conhecimento está disponível.  Não é necessário questionar o candidato para ver se memorizou um artigo, o que significa isso? Decorar um texto. O que preciso saber é: o que ele fará quando desafiado diante de questões concretas? Ele terá equilíbrio, sensibilidade, e consciência? É fácil decidir, eu posso decidir o que eu quiser, escrevo e assino. Mas e depois, o que vai acontecer com a minha decisão? O que ela vai significar para o destinatário? O que ela vai significar para a comunidade? Então eu tenho que ter noção das consequências das minhas decisões, eu tenho que me compenetrar do que é o papel do juiz. Esse questionamento fica totalmente esquecido. 


ConJur — O senhor é a favor das fórmulas extra-judiciais de soluções de conflitos?
Renato Nalini — De todas elas. E gostaríamos de criar outras. No caso da conciliação, a pessoa exerce sua autonomia no sentido de obter uma solução. Na negociação não há o jogo de “ganha-ganha”, os dois lados devem ceder um pouco.  Eticamente a solução negociada é muito superior à solução da decisão judicial porque o sujeito exerce a sua autonomia, ele não é objeto do processo. Agora, o sujeito como parte de um processo, além da dor e prejuízo, ele tem de contar a história a um profissional de capacidade postulatória que a reduz a uma peça escrita que nem sempre é inteligível. O sujeito é deixado de lado e perde o controle da sua própria história.  O segundo aspecto é em relação ao exercício da cidadania. O constituinte em 1988 acenou com uma democracia participativa. As pessoas devem participar e parar com a visão paternalista que, singelamente de uma forma reducionista, fala: “O governo não faz, o governo não me dá casa..”, quem é o governo? O governo é um servo da população.  Se o sujeito precisa de um advogado para entrar em juízo, ele (sujeito) declina de participar e nunca será um cidadão.  Se a pessoa não assumir as rédeas da nação nós seremos sempre um povo tutelado. 


ConJur — O senhor acredita que essa mudança comportamental pode acontecer em breve?
Renato Nalini — Eu não vejo perspectiva nenhuma.  Na verdade temos um discurso muito localizado — cada qual defendendo o seu próprio quintal.


ConJur — Hoje a gente tem um sistema recursal caótico. Esse sistema deve ser alterado?
Renato Nalini — Poderia, pelo menos, ser simplificado com a valorização da primeira instância para que a Justiça caminhe no mesmo passo da sociedade. A primeira instância é aquela que tem contato direto com a realidade e com os fatos.  Os principais interessados vão ter contato com o juiz que vai olhar no olho de cada um. À medida que vai subindo para as outras instâncias há uma perda do contato com o fato e começa a discutir teses. Se a gente continuar nessa linha, nós vamos fazer o Brasil virar um grande tribunal, um juiz em cada esquina e será que é essa a resposta, será que essa é a solução, é só de Justiça que o povo precisa?


ConJur — A solução seria mudar...
Renato Nalini — Mudar o sistema. Teria que reservar a Justiça para coisas realmente sérias e criar na população uma cultura de diálogo. Os advogados precisariam ter outra formação, não a formação adversarial, mas um advogado para aconselhar o cliente antes dele fazer bobagem — antes de fazer contrato, casar, separar, antes de adotar, antes de entrar no emprego, sair do emprego. É necessário um profissional do aconselhamento, da orientação, da prevenção.


ConJur — Como o senhor avalia os prazos de decisão na primeira e segunda instância atualmente? Segundo o IDJus, o Índice de Desempenho da Justiça criado pelo Instituto Brasiliense de Direito Público, o Rio Grande do Sul é o mais eficiente, São Paulo é o décimo primeiro.
Renato Nalini — Hoje há metas para as decisões. Se, por um motivo justificado, o juiz não conseguir cumprir essas metas, nós temos auxílio-sentença formado por juízes que se dispõem a ajudar os outros. Em alguns casos, somos obrigados a abrir procedimento administrativo disciplinar por falta de produtividade. Essa produtividade, porém, é relativa: temos juízes muito rápidos, que têm facilidade em decidir, são concisos e objetivos. Mas há juízes que continuam a produzir sentenças com sofisticação e erudição. Esses acham que a decisão tem de ser muito ponderada.  Como corregedor, eu tenho insistido que o princípio da eficiência colocado na Constituição Federal contemplou exatamente o Poder Judiciário e nós precisamos ser eficientes assim como os demais poderes.  Se a demanda é massiva, é necessário um produtor massivo de soluções. Deixe que os eventuais aperfeiçoamentos venham nas instâncias subsequentes. O Brasil fez um modelo de quatro instâncias, alguém lá para frente vai consertar se tiver erro. O juiz deve dar a solução, fundamentada, mas não precisa pensar que ela é a última palavra. Vamos ser um pouco mais humildes, menos perfeccionistas, mais obreiros... No momento, aparentemente a sociedade está pedindo obreiro, e não gênio.


ConJur — O senhor disse que os juízes acabam tendo muita pressão.  Como o senhor vê o papel da imprensa no Judiciário?
Renato Nalini — A mídia estimula. Na “sociedade do espetáculo” a versão é mais importante do que o fato, então é evidente que há uma influência, mas isso não é o fator primordial para gerar reflexos automáticos no funcionamento do Judiciário. A mídia tem que noticiar, mas eu não diria que haja uma vinculação automática entre o que a imprensa noticia e a postura judicial.


ConJur — No caso do julgamento do mensalão, o senhor acredita que  teve influência?
Renato Nalini — Teve influência na divulgação. Foi até benéfico levar temas que são reservados aos técnicos para a população. Não acredito que qualquer dos juízes tenha mudado a opinião por causa de pressão, mesmo porque há pressão dos dois lados.



Conjur — O STF tem usurpado a função do legislador?
Renato Nalini —
Não, porque o Poder Judiciário não invade a área do parlamento. Ele está suprindo vácuos que o produtor de direito novo não proveu. Nada impede que o parlamento legisle de forma diferente depois, e o Judiciário, como fiel servo da lei, vai se curvar à lei.


ConJur — Sobre a decisão recente do Tribunal de Justiça de criar um Gabinete de Crise, para enfrentar o surto de violência que ocorre em São Paulo, alguns juízes dizem que se trata de um tribunal de exceção...
Renato Nalini —
Não. Ele não terá função jurisdicional. A criação do gabinete de crise foi uma resposta à comunidade para dizer que a Justiça está também empenhada em analisar esse fenômeno e colaborar dentro das suas atribuições para que a busca, a apreciação das condutas dos eventuais responsáveis seja feita com a celeridade possível. É um acompanhamento para verificar, no limite das nossas atribuições, o que a Justiça pode fazer para dar uma resposta que a comunidade está esperando. Ela quer pacificação, ela quer andar à noite em segurança. Então não há nada de tribunal de exceção, não é juiz sem rosto, não é nada disso.


ConJur — Qual é o papel da corregedoria, no Brasil?
Renato Nalini — A corregedoria existe desde que existe Judiciário. O corregedor na verdade é aquele que corrige, aquele que fiscaliza a disciplina, o comportamento, a conduta funcional e privada de juízes, funcionários, os delegados dos serviços extrajudiciais, dos presídios. Nós estamos mudando um pouco o foco. A corregedoria passa a ser um órgão mais de orientação, de aconselhamento, de apoio. Ela vai atuar preventivamente evitando que aconteçam episódios que justificariam uma punição. A corregedoria, por deter o acervo de tudo que acontece e de tudo que já aconteceu, tem um histórico bastante alentado de tudo aquilo que possa ocorrer na Justiça. Então ela tem também condições de desenhar alguns cenários do futuro, de tentar criar mecanismos de tornar a Justiça mais eficiente, mais acreditada, mais prestigiada. 


Conjur — O senhor está satisfeito com o trabalho que está sendo feito?
Renato Nalini — Estou bem satisfeito com aquilo que eu tenho conseguido fazer. Principalmente revendo normas de serviços que são orientações. É quase que um catecismo para os funcionários, para os juízes e para os delegados de serviços extrajudiciais, que normalmente levam mais a sério as normas de serviço do que a legislação. A norma é diretamente voltada para a atuação deles. Eu estou fazendo uma atualização das normas, abrindo muitas vias para tornar a Justiça mais ágil. Estamos trabalhando bastante para tornar a Justiça mais eficiente e cumprir o mandamento da eficiência.


ConJur — Quando o senhor assumiu o cargo de corregedor, afirmou que a Corregedoria deveria ser um órgão de orientação e não punição. Houve essa mudança?
Renato Nalini — Sim. Eu sou muito acessível. Todos os juízes têm muita facilidade de conversar comigo, trazer as suas reivindicações e propostas. Em algumas situações, infelizmente, não é possível deixar de acionar os instrumentos punitivos, mas, em muitos casos, podemos evita-los. Principalmente quando é levado em conta que o exercício da magistratura é angustiante. Se o juiz é sensível, ele vai absorvendo um pouco do drama, da tragédia, da tristeza de cada processo. A magistratura é um terreno minado, pleno de armadilhas. Os juízes são questionados e fiscalizados pelas partes que têm todo o direito em querer pressa. O corregedor não pode esquecer isso e tratar o juiz como um subordinado.


Conjur — Como é o seu relacionamento com os juízes?
Renato Nalini — A magistratura de São Paulo sempre foi muito conservadora. Então os juízes não eram muito estimulados a serem criativos. Eu vim com esse discurso: ouse, crie. Em relação à prevenção, antes que o problema aconteça, a correição pode ser feita pela internet. Os juízes são obrigados a fazer planilhas e, todo mês, mandar o relatório das atividades. Uma vai par ao CNJ e outra para a corregedoria.  Eu estou tentando deixar como uma coisa só. Pelos relatórios, eu acompanho o que está havendo e faço um ranking dos piores resultados  e telefono para os juízes para perguntar se ele está com algum problema e se eu posso ajudá-lo. Eu também ligo para aqueles que estão indo bem para parabenizá-los — como uma forma de estímulo. 


ConJur — O magistrado tem discricionariedade?
Renato Nalini — Claro! E não é uma prerrogativa do magistrado, é de toda pessoa capaz de interpretar um texto normativo. Os romanos falavam que aquilo que está claro não precisa ser interpretado. Só que hoje não é assim. Toda lei precisa de interpretação. Os textos da Constituição de 1988 foram redigidos de uma forma que permite várias leituras. São tantas palavras na lei, que depende da formação do juiz escolher entre as vários possibilidades trazidas no texto legal. Por essa razão há jurisprudência a la carte


ConJur — O que o senhor pensa sobre a tecnologia no Judiciário?
Renato Nalini — É irreversível, tem que realmente melhorar. Na corregedoria do Rio Grande do Sul, há uma meta: petição 10, sentença 10. A petição inicial e a sentença não podem ultrapassar dez laudas.  Porque com o “copia e cola” é possível copiar trechos imensos que geram petições com 38, 40 laudas, aí o juiz também fica na obrigação de fazer uma decisão correspondente. Hoje nós só temos 26 unidades digitais no estado de São Paulo. Nós estamos tentando implementar para ver se até o final do ano que vem 40% do Judiciário de São Paulo já esteja informatizado.


ConJur — O CNJ deve substituir as corregedorias dos tribunais?
Renato Nalini — Não. O CNJ é um órgão do Poder Judiciário abaixo, somente, do Supremo Tribunal Federal. Ele era requisitado como um órgão de planejamento. O Brasil é muito grande, na verdade são muitos “Brasis”: 27 unidades da Federação, 6 mil municípios e a Justiça sempre se ressentiu da inexistência de um órgão de planejamento. É muito saudável que haja o CNJ tentando fazer uma disciplina de homogeneização daquilo que deve ser homogeneizado.


ConJur — Como é a relação do Conselho Nacional de Justiça com a corregedoria?
Renato Nalini — Maravilhosa. A corregedoria do CNJ tem sido de uma elegância em relação às corregedorias locais que eu posso testemunhar, cada vez que chega uma denúncia, tanto a ministra Eliana como o ministro Falcão, mandam o expediente para cá para que nós apuremos. 


Lívia Scocuglia é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 25 de novembro de 2012

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