Observatório Constitucional
As
estatísticas sobre prisões provisórias no Brasil não são nada
animadoras. De acordo com o último relatório do Departamento
Penitenciário Nacional, do Ministério da Justiça, a população carcerária
atingiu, em junho de 2012, 549 mil presos, com a proporção de 288
presos por 100 mil habitantes.[1]
Em 1992, esse número era de 74 presos por 100 mil habitantes, o que
corresponde a um aumento de 380,5%, enquanto que, no mesmo período, a
população brasileira cresceu apenas 28%. Segundo levantamento do anuário
World Prison Brief (WPB), o crescimento da população carcerária no Brasil, nas últimas duas décadas, só foi superado pelo do Cambodja.
Além
do preocupante crescimento da população carcerária, o que mais chama
atenção no relatório é o número de pessoas presas em caráter provisório.
Do total de presos, 191 mil são de pessoas aguardando julgamento,
muitas delas amontoadas em unidades prisionais superlotadas e sem as
mínimas condições de higiene, como se constatou nos mutirões carcerários realizados pelo Conselho Nacional de Justiça[2],
sem contar que mais de 40 mil presos encontram-se, irregularmente
detidos em delegacias de polícia, muitos inclusive já sentenciados.
Houve,
no Brasil, nas últimas décadas, um notório incremento no uso da prisão
cautelar. Em 1990, a proporção entre presos definitivos e provisórios
era bem diferente do que se observa atualmente. Havia, naquele ano, 90
mil presos, dos quais apenas 18% (16,2 mil) eram presos provisórios.
Entre 1990 e 2012, contudo, enquanto o número de presos definitivos
aumentou 490%, o número de presos provisórios, no mesmo período,
cresceu, espantosamente, 1.093%, alcançando, em junho de 2012, cerca de
40% da população carcerária.
Os mutirões carcerários coordenados
pelo CNJ demonstraram que a falência do sistema prisional não pode ser
dissociada das sérias deficiências do sistema de justiça criminal. A par
dos inúmeros casos de prisões provisórias com prazo alongado, sem
conclusão da instrução e sem sentença de primeiro grau, dois exemplos
parecem ilustrar o quadro de abuso eloquente: no Espírito Santo
encontrou-se acusado preso provisoriamente há 11 anos; no Ceará,
verificou-se um quadro ainda mais grave, uma pessoa presa há mais de 14
anos em caráter provisório.
Nesse contexto, a edição da Lei
12.403/11, que ampliou consideravelmente o rol de medidas cautelares à
disposição do juiz (CPP, art. 319), apresenta-se como relevante
instrumento no esforço de alteração desse quadro. Trata-se de medidas
que podem ser adotadas de ofício ou a requerimento das partes ou, quando
no curso da investigação criminal, por representação da autoridade
policial ou a requerimento do Ministério Público (CPP, art. 282, §2º). E
o mais importante: contam com prioridade em relação à prisão preventiva
(CPP, art. 282, §6º)[3].
De
acordo com a nova redação do artigo 310 do CPP, o juiz, ao receber o
auto de prisão em flagrante, deve adotar uma das seguintes providências:
a) relaxar o flagrante, se ilegal; b) converter a prisão em flagrante
em prisão preventiva, se presentes os requisitos do artigo 312 do CPP e
não for possível a sua substituição por medida cautelar diversa da
prisão; c) conceder liberdade provisória mediante imposição de uma, ou
mais de uma, das medidas cautelares previstas no artigo 319 do CPP,
entre as quais a fiança.
O artigo 319 do CPP elenca as seguintes
medidas cautelares alternativas à prisão, que podem ser determinadas
isolada ou cumulativamente (CPP, art. 282, §1º): comparecimento
periódico em juízo, proibição de acesso ou de frequência a determinados
lugares, proibição de manter contato com pessoa determinada, proibição
de ausentar-se da comarca ou do país, recolhimento domiciliar nos
períodos noturnos e nos dias de folga, suspensão do exercício da função
pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira, internação
provisória, monitoração eletrônica e fiança.
Conforme observado na obra Prisão e Medidas Cautelares, Comentários à Lei 12.403, “o sistema processual brasileiro sempre se caracterizou pela bipolaridade (ou binariedade): prisão ou liberdade”. [4]
Não sendo cabível a liberdade provisória com ou sem fiança, não
dispunha o juiz, portanto, de outras medidas substitutivas da prisão
cautelar, passando esta, em muitos casos, a ser a regra, desnaturando
por completo o seu caráter de excepcionalidade.
Retrata-se na referida obra um interessante contraste do sistema então vigente com o modelo concebido pela Lei 12.403/11:
“Nosso
sistema carecia de medidas intermediárias, que possibilitassem ao juiz
evitar o encarceramento desnecessário. Essa bipolaridade conduziu à
banalização da prisão cautelar. Muita gente está recolhida em cárceres
brasileiros desnecessariamente. O novo sistema (multicautelar — art. 319
do CPP), oferece ao juiz várias possibilidades de não encarceramento.”
E assim prossegue-se, com inegável propriedade:
“Para
contornar o problema prisional decorrente do excesso de prisioneiros,
não basta apenas apostar nas penas e medidas alternativas à prisão, que
são aplicadas no momento da condenação definitiva. O cenário nacional
exigia (urgentemente) medidas que possibilitassem alternativas também à
prisão cautelar, já que esta é a principal responsável pela superlotação
carcerária.”
Um nítido exemplo disso pode ser observado na
quantidade de Habeas Corpus em tramitação no Superior Tribunal de
Justiça, aproximadamente 200 mil. E o que impressiona ainda mais é que
metade deles, conforme dados da distribuição até 2011, deu entrada
naquela Corte nos últimos três anos. Somente em 2012, até no final de
setembro, foram ajuizados mais de 25 mil novos HCs. Como grande parte
desse acervo tem por objeto a concessão de liberdade provisória, resta
clara a urgência de se repensar o modelo cautelar no processo penal, o
que se espera seja alcançado com as modificações trazidas pela nova lei.
No Supremo Tribunal Federal, esse impacto também é visível. De acordo
com estatísticas da Corte, apenas em 2012, até o mês de agosto, foram
concedidos 221 HCs, grande parte por excesso de prazo.
Além das
medidas cautelares, uma medida que poderia ter impacto positivo é a
apresentação do preso em flagrante ao juiz. Cuida-se de procedimento
expressamente previsto em tratados dos quais o Brasil faz parte, já
incorporados ao Direito interno, como o Pacto Internacional sobre
Direitos Civis e Políticos (art. 9º, item 3, primeira parte do Decreto
592/92 — Pacto de Nova Iorque) e Convenção Americana sobre Direitos
Humanos (art. 7º, item 5, primeira parte do Decreto 678/92 — Pacto São
José da Costa Rica).
Conforme bem lembrado por Delmanto Júnior,
“desde que o Brasil ratificou a Convenção Americana sobre Direitos
Humanos e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de Nova
Iorque, existe, em nosso ordenamento, o dever (reiteradamente desrespeitado) de as autoridades policiais apresentarem a um juiz de Direito o preso em flagrante”.
Trata-se,
portanto, de importante mecanismo de controle da legalidade das prisões
em flagrante, prevenindo-se prisões ilegais e até torturas no ato da
prisão, situações constatadas nos mutirões carcerários realizados pelo
Conselho Nacional de Justiça e constantemente noticiadas pela imprensa.
Diante
desse quadro, mostra-se oportuna a iniciativa do CNJ em dar cumprimento
às citadas imposições legais, conforme deliberação plenária daquele
órgão em procedimento específico sobre o tema.
Esse
procedimento precisa ser efetivamente aplicado pelos próprios
magistrados. Estudos indicam que, até aqui, a Lei 12.403/2011 teve pouco
impacto na diminuição da população carcerária brasileira. Embora o
número de presos provisórios tenha crescido menos (em 2011, o aumento
foi de 1%, ao passo que em 2010 foi de 2,9%), ainda há 217 mil pessoas
encarceradas provisoriamente. E no estado de São Paulo, onde se
concentra grande parte da população carcerária do país, a situação é
ainda pior. O número de presos provisórios desse estado aumentou, no
mesmo período, em 3,6%, o que representa mais do que o triplo do
percentual nacional
De
qualquer sorte, é importante ressaltar que, agora, dispõe o juiz,
portanto, com um amplo leque de medidas cautelares diversas da prisão
preventiva e que podem ser adotadas como providência mais justa ao caso
concreto. É necessário, contudo, que tais medidas sejam efetivamente
aplicadas. De nada adiantarão as mudanças implementadas se não houver,
da parte do Judiciário, a clara percepção de que as medidas viabilizadas
pela nova lei contam com prioridade em relação à prisão preventiva, e
que esta, após a vigência da Lei 12.403/2011, somente se justifica
quando devidamente demonstrada a inadequação das cautelares à disposição
do juiz.
Um
dado importante sobre a cultura do encarceramento no âmbito do próprio
Judiciário foi revelado em diagnóstico publicado pelo Ministério da
Justiça em 2010, sob o título Dez anos da política nacional de penas e medidas alternativas. Registrou-se nesse estudo que:
“Característica
essencial das penas e medidas alternativas é que elas se constituem
como sanção que não implica a privação de liberdade. Ante o perfil do
autor do fato e da conduta praticada, a melhor maneira de promover sua
responsabilização são as sanções a serem cumpridas em meio aberto.
Nesses casos, a prisão, dadas suas consequências sociais e econômicas, é
intervenção a ser evitada. No entanto, embora pareça contraditório,
ainda é grande o número de réus sancionados por penas ou medidas que
aguardam o julgamento do seu processo preso provisoriamente.”
Esse
fenômeno, de acordo com o citado estudo, foi identificado por pesquisa
realizada em cinco unidades da federação brasileira — Belém, Distrito
Federal, São Paulo, Pernambuco e Porto Alegre—, em processos de furto.
Constatou-se que, nas localidades pesquisadas, embora para a maioria dos
réus sejam aplicadas penas e medidas alternativas, grande parte deles
passa pela prisão cautelar. Assim concluiu Barreto (2007), autor da
pesquisa citada no diagnóstico:
“Verifica-se que dos processos
concluídos em que houve aplicação de pena, mais de dois terços
resultaram em alternativa à prisão em São Paulo, Recife, Belém e
Distrito Federal. Apenas em Porto Alegre este número é inferior a 50%
[...].O tempo médio de prisão provisória para réus cujo processo teve
como conclusão alguma medida alternativa à prisão é bastante
significativo. Por exemplo, em todas as cidades, o tempo médio de prisão
provisória dos réus condenados a cumprir penas restritivas de direito
foi superior a um mês, sendo que em Recife esse número superou quatro
meses e em Belém quase chegou a 10 meses.”
Esse dado, como se percebe, parece confirmar a utilização abusiva da prisão provisória.
A
superação desse quadro vergonhoso no sistema prisional exige um mutirão
institucional com a cooperação proativa de todos os setores envolvidos,
tendo em vista também uma efetiva revisão da justiça criminal.
Fonte: Conjur.
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