segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

“É temerário demonizar a prática de função pública”


Em nome do equilíbrio, seria melhor que não houvesse reeleição no Brasil. Ou ao menos que o candidato se afastasse do cargo para a disputa. O rigor das regras que amordaçam os veículos de comunicação em períodos eleitorais deve ser repensado. Afinal, como o eleitor pode escolher bem seus candidatos se não souber tudo a seu respeito?

Essas são algumas das considerações da presidente do Tribunal Superior Eleitoral e integrante do Supremo Tribunal Federal, ministra Cármen Lúcia. Em entrevista à revista Consultor Jurídico, concedida em seu gabinete na Presidência do TSE, a ministra mostrou a convicção de que há bons exemplos de políticos que ainda usam seus mandatos em favor do interesse público. E disse ter receio da demonização da política e da prática de função pública de maneira geral.

“Eu temo que os jovens não tenham interesse pela política. Porque a política é a opção à guerra. Ou nós praticamos a política de maneira ética, séria, responsável para que as coisas andem, ou então as pessoas de bem que ainda hoje se dedicam à política, a cargos públicos, daqui a pouco não vão mais querer. E esse é um dado muito grave”, afirma.

No comando das eleições municipais de 2012, que foram as mais baratas e tiveram a apuração mais rápida da história democrática brasileira — clique aqui para ler texto sobre o tema —, a ministra percorreu quase 20 estados do país e garante ter encontrado um eleitor que questiona, contesta e busca saber sobre a vida daqueles que irão administrar suas cidades.

Na entrevista, a ministra também abordou os questionamentos que se fazem das regras que coíbem o trabalho da imprensa durante o período eleitoral: “O rigor da lei não pode ser confundido com censura”. Falou, ainda, sobre reeleição, financiamento de campanhas políticas e controle de contas partidárias.

Leia a entrevista:
ConJur — Depois das eleições, é comum ver eleitores criticarem violentamente as pessoas que eles mesmos escolheram. O eleitor está bem informado? Ele participa? Qual a avaliação da senhora sobre as últimas eleições municipais?
Cármen Lúcia — Há dois dados importantes. O primeiro que chama a atenção é a circunstância de que nós estamos de fato em um movimento de crescimento de cidadania e de consolidação da democracia no que se refere à representação popular. Nas últimas eleições, o cidadão brasileiro se preocupou muito em saber o que era a chamada Lei da Ficha Limpa, quais suas consequências. Ele procurou efetivamente a central de atendimento ao cidadão da Justiça Eleitoral. Mesmo quando a escolha recai sobre candidatos com pendências e que acabam afastados, ou têm o registro indeferido e não ficam nos cargos, o eleitor questiona quem é, por que é, por que aconteceu isso. O eleitor, hoje, procura informação. Por exemplo, recebemos cartas de eleitores querendo saber por que alguém foi eleito como o mais votado e, ainda assim, foi afastado. E não são poucos os questionamentos. É claro, estamos falando de eleição municipal. Então, o eleitor é muito mais convocado porque é a vida dele em jogo. A vida se passa ali, na cidade, porque ele sabe da rua que não está asfaltada, da escola... Ninguém mata por causa de um presidente da República, mas briga e vai às vias de fato por conta de um vereador. Eu levo em consideração esse dado. Mas, mesmo assim, a participação foi efetiva. Há um crescimento da vontade do eleitor brasileiro de participar, o que melhora a qualidade da cidadania.


ConJur — E o segundo dado?
Cármen Lúcia — A segunda avaliação é que o Judiciário Eleitoral é muito mais presente. A Justiça Eleitoral é a única que não espera que o cidadão a procure. Parafraseando Milton Nascimento, “o juiz vai até onde o povo está”. Nós temos de falar com o cidadão independentemente de ele nos procurar, temos de chamá-lo. O juiz conversa sobre a possibilidade de ser mesário voluntário, por exemplo. E nós administramos as eleições, ao contrário do que acontece em outros países em que há o contencioso em um órgão e a administração fora do Judiciário. Aqui, nós administramos as eleições e exercemos a função jurisdicional.


ConJur — E isso é bom?
Cármen Lúcia — Sim. O resultado, ano menos, é impressionante. As eleições municipais tiveram quase 500 mil candidatos. O período para o registro eleitoral termina no dia 5 de julho, que é o dia que a maioria faz o registro. E nós tivemos um movimento grevista intenso em alguns estados, justamente em 5 de julho. Em São Paulo, que é o maior colégio eleitoral, grevistas fecharam até as ruas onde está situado o cartório eleitoral. Houve um movimento intenso, muito trabalho dos tribunais regionais eleitorais, para não prejudicar os registros. Mas, às 19 horas, quem tinha de ser registrado estava registrado e nós não precisamos adiar nem um minuto o prazo.


ConJur — Quantas decisões foram tomadas pelo TSE nas eleições de 2012?
Cármen Lúcia — Em relação às eleições de 2012, nós produzimos mais de quatro mil decisões e chegaram mais de cinco mil recursos. Na maioria dos recursos que ainda estão pendentes já houve ao menos uma decisão. Tivemos, portanto, 93% dos casos que chegaram ao TSE já decididos. É o índice mais alto que já tivemos até hoje antes da diplomação. E houve quase 100 pedidos de liminares só entre os dias 20 de dezembro e 4 de janeiro. E eu proferi 72 decisões em oito dias úteis.


ConJur — A senhora citou a Lei da Ficha Limpa. Ao mesmo tempo em que o sistema democrático impõe que a vontade do eleitor prevaleça, cria-se a Lei da Ficha Limpa, que, de certa forma, substitui a vontade do eleitor. Não é contraditório?
Cármen Lúcia — Não. A Constituição estabelece que as condições de elegibilidade sejam definidas por lei. Restrições à candidatura existem desde sempre. Em Roma, na Antiguidade, quem quisesse representar o povo tinha que se apresentar em praça pública trajando apenas uma veste, espécie de tanga, deixando à mostra a maior parte do corpo. E essa veste era branca, cândida. Ele tinha que deixar à mostra o máximo do corpo para demonstrar que ele tinha condições físicas de exercer a representação, e a veste era branca com um símbolo de que ele tinha condições morais, que não havia manchas. A veste passou a se chamar cândida. Daí vem a palavra candidato. Portanto, sempre houve a ideia de que quem pode representar é aquele que possa trajar uma veste cândida a simbolizar exatamente a sua condição moral. A lei vem não para substituir o eleitor, mas para impedir que o eleitor seja fraudado na sua vontade. A vontade tem que ser legítima.


ConJur — Mas o representante não é a projeção do representado?
Cármen Lúcia — Sim. Mas o cidadão pode se ver atraído sem o pleno conhecimento sobre o candidato. Essa é a grande mudança de que eu falava. Hoje, se busca saber em quem se vota, a história, as propostas mesmo. De qualquer forma, a construção da cidadania não se dá do dia para a noite. O que se percebe é que povo brasileiro não suporta mais corrupção, esse é o fato. Em qualquer lugar é possível ver a reação contra a corrupção. Todas as formas de ilegalidade são insuportáveis, agora não significa que o cidadão já disponha de meios para ter pleno conhecimento dessa situação. Por isso, a lei.


ConJur — Quando a Lei da Ficha Limpa foi aprovada, houve um período em que não se sabia se ela seria ou não aplicada às eleições de 2010. O Supremo definiu que não, mas depois das eleições. E aí se verificou que houve oito milhões de votos em candidatos que seriam barrados pela lei, enquanto o projeto de iniciativa popular teve pouco menos de dois milhões de assinaturas. A vontade de oito milhões de pessoas não vale mais do que a de dois milhões?
Cármen Lúcia — É preciso pensar que a assinatura de um projeto é um ato de exercício de cidadania. A pessoa tem de conhecer o projeto, saber o que está assinando, qual o efeito da lei se aprovada, oferecer o título de eleitor, que depois é checado. Isso espalhado em pelo menos cinco estados do Brasil. A dificuldade é muito maior porque esse cidadão que assina o projeto não tem o conhecimento de um nome em quem ele vai votar. O ato demanda mais trabalho. Por isso, acho que quase dois milhões de assinaturas têm uma significação diferente. Não é fácil, tanto que a iniciativa popular está na Constituição desde 1988 e até hoje só dois projetos nesses moldes foram aprovados. E dois casos eleitorais. O outro foi o artigo 41-A, sobre compra de votos.


ConJur — Vigora no país a liberdade de expressão. Mas a legislação eleitoral não me permite expressar opinião sobre um candidato que eu considero melhor que outro. Isso não é censura?
Cármen Lúcia — Eu sou a favor de se repensar isso. O que se alega para impedir que cada órgão de imprensa possa se manifestar livremente sobre a sua escolha é que isso poderia orientar indevidamente os cidadãos. Mas o conceito que se tem de imprensa, a própria imprensa, está em plena mutação com as redes sociais e outros meios de informação. Nós estamos assistindo a uma mudança muito grande no acesso à informação, na filtragem da informação e na legitimidade da informação. Por isso, acho que esse é um ponto que em pouco tempo será repensado no Brasil e discutido com a sociedade.


ConJur — O dever do jornalista é informar. Mas se eu sei que determinado candidato construiu sua carreira em cima de falcatruas ou de ilusão de ótica e decidir informar isso ao leitor, serei condenado. Mesmo que eu aja dentro do mais estrito interesse público, sem adjetivos, somente mostrando como ele construiu a carreira. Como equacionar isso?
Cármen Lúcia — Nós caminhamos para que a liberdade de imprensa seja exatamente a informação de que o cidadão precisa para cada vez mais amadurecer democraticamente. A questão posta é o jornalista informar algo que não interessa a alguém que seja de conhecimento público. Transmitir a informação para o público de maneira séria e responsável não é falar mal ou contra alguém. É descrever o fato para que ele seja de conhecimento e avaliação de cada cidadão. O rigor da lei não pode ser confundido com censura. Os Estados Unidos, por exemplo, são a democracia que em grande parte influenciou pelo menos parte do constitucionalismo brasileiro. E sempre entregaram à imprensa o direito de ela não apenas se manifestar, mas tomar posições a favor ou contra, independentemente de ser porque há alguma ilegalidade. Porque, se houver ilegalidades na vida de alguém, eu não vejo como cercear a imprensa. Os modelos que foram adotados em democracias não estão aí para serem copiados, mas para serem pensados e escolhidos pelo povo brasileiro. Esse assunto está na ordem do dia.


ConJur — A internet desafia a competência territorial da Justiça Eleitoral? A partir de uma desavença local, no caso de eleições municipais, o juiz pode determinar a suspensão de um site nacionalmente?
Cármen Lúcia — A competência e o dever do juiz é julgar a situação daquele candidato. A jurisdição é local, embora a decisão possa ter essa repercussão fora dos limites do município. O juiz pode determinar a retirada da ofensa e sua decisão extrapolar limites territoriais, porque virtualmente esse limite não existe.


ConJur — As resoluções do TSE não criam muitas restrições à propaganda política?
Cármen Lúcia — As resoluções do Tribunal Superior Eleitoral apenas regulamentam aquilo que está previsto em lei, não inovam o ordenamento jurídico. A partir do que a lei estabelece, as resoluções pormenorizam, minudenciam as proibições que já existem e vêm das regras fixadas pelo Congresso Nacional.


ConJur — Há críticas de que há tutela demais em cima de propagandas. Houve recentemente a discussão no TSE em relação ao uso do Twitter. Isso não atrapalha o surgimento de novos nomes, novas lideranças políticas que não têm acesso ao dinheiro de campanha?
Cármen Lúcia — Acho que o que acontece é o contrário. As proibições existem para que todos fiquem em um determinado patamar, em um determinado limite, e democracia aprende-se praticando. Temos, portanto, as regras no Estado de Direito para que essa prática se dê com vertentes de igualdade. Liberar seria como jogar na água o nadador profissional e uma pessoa que nunca nadou, e acreditar que o instinto de sobrevivência fará ambos se saírem bem.


ConJur — Três meses de campanha eleitoral são suficientes para que o eleitor conheça a proposta dos candidatos?
Cármen Lúcia — São. Cada vez mais o cidadão há de procurar e encontrar, com tantos meios à disposição dele, tudo aquilo que precisa saber sobre o candidato no qual ele pretende votar. E também porque é necessário considerar que, especialmente nas disputas de cargos do Poder Executivo, um período de campanha maior poderia comprometer a administração em detrimento da prestação de serviços públicos. Não é pouco lembrar que nós temos reeleição e, portanto, um candidato à reeleição no Executivo fica cheio de limites, tem de tomar uma série de cuidados.


ConJur — Mas, na prática, já não há campanha muito antes disso? Mesmo com as proibições, há a crítica de que as multas impostas pela Justiça Eleitoral são irrisórias nos casos de propaganda antecipada.
Cármen Lúcia — O papel didático da Justiça Eleitoral é importantíssimo. Em 2012, eu viajei a quase 20 estados antes das eleições e verifiquei o papel didático para os candidatos e para os eleitores. Os eleitores reclamam e houve quem reclamasse exatamente que a pessoa que não cumpre a legislação eleitoral não vai cumprir as leis depois, não vai cumprir a sua palavra. O papel da Justiça Eleitoral é definidor dessa mudança de comportamento. Continua acontecendo? Sim, ilegalidades continuam acontecendo e é para isso que existe o Ministério Público e o Judiciário, para coibir as más práticas.


ConJur — Isso não se resolveria se fosse exigido o afastamento do candidato à reeleição?
Cármen Lúcia — O afastamento geraria a isenção para que o próprio candidato tivesse mais largueza, mais tranquilidade na sua atuação e o eleitor ficasse a salvo de questionamentos. Já houve casos de candidatos que se afastaram espontaneamente exatamente por isso.


ConJur — A senhora é favorável à reeleição?
Cármen Lúcia — Eu preferiria que não houvesse reeleição. Não que eu ache que alguém que esteja fazendo um trabalho não possa continuar fazendo. O eleitor tem reconduzido muitos administradores. Em primeiro turno, muitos foram reeleitos prefeitos de cidades do interior e de capitais. Mas a principal razão alegada para a reeleição é que quatro anos é pouco. Mas, logo mais, o mandato de oito anos será pouco. Sempre acho que a transitoriedade é uma das características da República e era melhor que fosse assim. Antes era de cinco anos o mandato, sem possibilidade de reeleição. Essa é uma boa opção. Mas isso tem de ser discutido no Congresso e a escolha do legislador será cumprida. Mas consideraria cinco anos sem reeleição uma boa escolha.


ConJur — O fato de o Brasil ter 30 partidos políticos atrapalha ou ajuda a democracia?
Cármen Lúcia — Temos partidos demais e precisamos fazer a seguinte separação: há partidos políticos, previstos na Constituição, e há legendas partidárias que não têm toda a construção que é a de um partido político. Porque o partido é uma experiência que vai fazendo uma história, criando uma cultura, que traz votos, que passa pelo processo eleitoral e aí ganha a sua estrutura interna e representação legítima a partir desse processo. A criação de partidos, ou seja, a oferta de legendas não me parece suficiente para dizer que nós temos 30 agremiações com representação na forma prevista constitucionalmente. O que me causa preocupação é que, com esse quadro, há de haver partidos registrados no tribunal que, no entanto, são apenas configurações, legendas, e não tem esse respaldo da legitimidade popular. Nesse caso, atrapalha porque na hora de se fazer a conta de tempo de televisão, de propaganda, eles vão entrar e, se não forem pessoas muito sérias, teremos uma porta aberta grave para composições que não são republicanas, o que é inadmissível.


ConJur — A senhora é a favor das atuais regras de financiamento de campanhas?
Cármen Lúcia — Nós precisamos colocar em discussão de maneira séria a questão de financiamento. Em primeiro lugar, para afastar algumas ilusões. O financiamento pode ser feito por particular e tem uma parte que é o financiamento público de fundos partidários, e que não é pequeno. Existe o tempo de televisão que é público, que é caro. Nós temos, portanto, que afastar a ideia de que aqui no Brasil praticamente nós não temos financiamento público das campanhas, ao lado do privado.


ConJur — E o financiamento por empresas?
Cármen Lúcia — O financiamento precisa ter uma ligação direta com a escolha daquele que é o doador da campanha. Qual a razão de ser do financiamento por empresas? A empresa não é eleitora, não vota. Obviamente, os empresários têm interesses, mas eles podem atuar como cidadãos. Fato é que a questão do financiamento precisa ser pensada em uma ligação direta com a figura do doador, pela singela razão de que ao lado do financiamento há outro dado que me causa preocupação como cidadã e como juíza, que é a questão de controle e fiscalização das contas partidárias, das contas de campanha, das contas em geral. Por isso constituí uma comissão externa para ver como podemos pensar a fiscalização e o controle de contas. Já o julgamento das contas, que até há pouco tempo era administrativo, agora é judicial.


ConJur — Quem compõe a comissão?
Cármen Lúcia — Marcello Cerqueira; Everardo Maciel; Marcelo Lavénère; Antônio Fernando; e Hamilton Carvalhido. Cinco nomes experientes que estão estudando propostas novas para que possamos ter mais eficácia e celeridade no controle das contas. Porque, ao pensar sobre financiamento, é preciso pensar não apenas em quem financiou, mas como se controla quem financiou: quem doou, para quem doou e quanto doou? Não acho que haja certo e errado sobre financiamento público e privado de maneira definitiva, mas precisamos de regras mais claras. Por quê? Porque isso não pode significar uma porta aberta para, depois, quem fez “a doação” chegar ali na frente e achar que o eleito com a doação lhe deve alguma coisa. E não deve. Doação se faz sem qualquer retorno.


ConJur — A senhora concorda com a expressão de que, na forma atual, quem financia a democracia no Brasil são as empresas?
Cármen Lúcia — Não. Eu acho que quem financia é o poder público. A campanha, em grande parte, na maior parte, quem financia é o poder público. E não importa quem financia. O representante deve o seu voto é ao cidadão, deve contas é à sociedade. Nem ao poder público, aos governos instalados, nem muito menos a particulares.


ConJur — Na prática é assim?
Cármen Lúcia — Na prática nem sempre é assim, mas há ainda os que pensam no interesse público. Eu conheço bons exemplos. Porque também não acho que seja bom “demonizar” a prática da função pública. Eu temo que os jovens não tenham interesse pela política. Porque a política é a opção à guerra. Ou nós praticamos a política de maneira ética, séria, responsável para que as coisas andem, ou então as pessoas de bem que ainda hoje se dedicam à política, a cargos públicos, daqui a pouco não vão mais querer. E esse é um dado muito grave. É preciso que os jovens de hoje queiram cada vez mais participar efetivamente da vida política porque a sociedade precisa disso.


ConJur — A má imagem do político tem fundamento?
Cármen Lúcia — Acho que tem em muitos casos. Basta ver que nós precisamos da Lei Complementar 135, que foi chamada de Lei da Ficha Limpa, exatamente para impedir que pessoas frustrassem a liberdade do voto transmitindo a imagem que alguns já sabiam de antemão que não era verdadeira.


ConJur — Qual é a origem dessa imagem que o político brasileiro tem hoje?
Cármen Lúcia — As más práticas políticas no Brasil. Basicamente, o brasileiro não aguenta mais corrupção. Aliás, eu acho que em nenhum lugar do mundo as pessoas aguentam isso com facilidade, mas se olharmos a história do Brasil, já houve práticas em que a confusão entre o público e o privado acontecia e o cidadão não se indignava como se indigna hoje.


ConJur — Mas pesquisas já indicaram que o brasileiro ainda acha natural trocar o voto por um favor ou por dinheiro.
Cármen Lúcia — O que eu vi nas eleições de 2012 não foi isso. E eu estive em 20 estados, conversei com membros de tribunais, juízes eleitorais, promotores, servidores da Justiça e com muitos cidadãos. Recebi uma grande quantidade de cartas e mensagens, especialmente por meio da central de eleitor. Não é isso que a gente vê. Pelo contrário, o eleitor hoje não acha natural, acha que isso é um absurdo e reclama muito disso.


ConJur — A senhora diz que o brasileiro não suporta mais a corrupção. A gorjeta, a comissão, a bonificação não fazem parte da cultura? A corrupção não está na gorjeta que se dá para o garçom tratar melhor a sua mesa que a mesa do vizinho? As mesmas pessoas que demonizam a política pedem recibos com valores maiores em táxis, por exemplo. A corrupção não está na cultura do brasileiro?
Cármen Lúcia — Não acho que corrupção seja mais da cultura brasileira. Acho que foi da cultura brasileira, até pela forma que nós tivemos de viver com o coronelismo, por exemplo. Victor Nunes conta isso muito bem. Era na casa do coronel, em um dos quartos, um dos cômodos, onde se reuniam, confundindo-se integralmente o público e o privado. Dali vem uma raiz grave de confusão entre o público e o privado que facilita a prática da corrupção. Eu não acho que isso seja comum hoje. Eu vejo mudanças e vejo um marco constitucional mesmo.


ConJur — Mas depois da Constituição vimos vários escândalos de corrupção.
Cármen Lúcia — Sim, tanto que precisamos das leis que introduziram o artigo 41-A e novas hipóteses de inelegibilidade no ordenamento jurídico para tentar coibir essas práticas. A minha pergunta é: isso é ainda resquício da cultura de aceitação dessas práticas ou é do mundo? Em outros países, o furto aumentou ou diminuiu? A segurança aumentou ou diminuiu? O que eu vejo hoje é o jovem mais atento. Por exemplo, na minha geração, era comum ver em um gramado a placa “proibido pisar na grama” e gente atravessando. Hoje se presta mais atenção a isso. O jovem está muito mais preocupado. E aí eu chamo a atenção para o jovem. Eu não vejo as pessoas não terem o cuidado de pelo menos olhar com o papelzinho na mão para ver se não acha uma lata de lixo. Há uma melhoria. Por isso, eu acho que ética se aprende, que corrupção se combate, sim, com uma acentuada e permanente educação cívica. Quando eu cheguei à Presidência do TSE, me diziam: “A senhora foi advogada de jornalistas a vida inteira. Defendeu a imprensa. E agora que virou vidraça?”. A imprensa me ajuda, porque eu não dou conta de ver tudo. Quando a imprensa me aponta alguma coisa, eu corro para saber se alguma coisa se passou sem que eu tivesse sabido. Portanto, não me atrapalha. E tem outros dados. Juízes dos mais longínquos locais me ligando às 23h do dia 21 de dezembro: “Ministra, não consegui falar com o TRE, mas estou ligando para a senhora porque consta...”. Eu acho ótimo, porque é a prova da mudança. Um juiz jovem preocupado em saber como ele cumpre a lei. Eu noto, quanto à ética, muito mais preocupação hoje. Vou usar uma palavra que talvez seja forte para o juiz, mas não vejo mais a desfaçatez de fazer e nem ao menos tentar esconder. Eu sou de uma geração que ainda escutou: “Sabe com quem está falando?”. Hoje ninguém tem coragem de fazer isso, eu acho. E se fizer provavelmente será vaiado.

Márcio Chaer é diretor da revista Consultor Jurídico.
Rodrigo Haidar é editor da revista Consultor Jurídico em Brasília.
Revista Consultor Jurídico, 3 de fevereiro de 2013

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