Meios impróprios
Satiagraha,
castelo de areia e sundown são algumas das operações do Ministério
Público Federal que foram derrubadas na Justiça por terem usado provas
ilícitas — como escutas ilegais. Agora, o MPF quer mudar o Código de
Processo Penal, para que mesmo provas ilícitas possam ser usadas nos
processos, quando “os benefícios decorrentes do aproveitamento forem
maiores do que o potencial efeito preventivo”. A medida está em um
pacote anticorrupção apresentado pelo MPF nesta sexta-feira (20/2) e faz
ressalvas, para casos de tortura, ameaça e interceptações sem ordem
judicial, por exemplo.
As dez medidas anticorrupção serão enviadas ao Congresso. Algumas delas repetem o pacote anunciado nesta semana pela Presidência da República,
como criminalizar o “caixa dois” e o enriquecimento ilícito de agentes
públicos. Mas o MPF também passou a defender que sejam extintos os
chamados Embargos Infringentes e a figura do revisor, que analisa o voto
do relator no julgamento de apelações. Também quer uma nova regra para
prisões preventivas.
A Constituição Federal traz em seu artigo 5º — cláusula pétrea — que
"são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos". O
MPF, no entanto, alega que elas não podem automaticamente prejudicar
todo o processo. “É preciso fazer uma ponderação de interesses e
verificar em que medida a eventual irregularidade na produção da prova
pode indicar prejuízo à parte. Se não houver algo que evidencie prejuízo
à defesa, nada justifica a exclusão dessa prova”, afirma o
subprocurador-geral da República Nicolao Dino Neto, chefe da Câmara de Combate à Corrupção.
Ele
diz que esse caminho segue uma tendência de outros países, como os
Estados Unidos, e evita que crimes deixem de ser combatidos apenas por
conclusões materiais, e não formais. O subprocurador dá como exemplo a
apreensão de uma grande carga de cocaína no Ceará, cujo processo acabou
anulado pois o transporte foi descoberto em uma interceptação telefônica
considerada irregular. “Por força de um detalhe de natureza formal no
processo, um grande caso de narcotráfico internacional foi anulado com
base no apego à prova.”
O texto proposto estabelece exceções em
casos que envolvam violência, grampo sem ordem, violação de residência e
outros “de igual gravidade”. Dino Neto reconhece que a aplicação
poderia ser subjetiva, mas avalia que o sistema processual atual já dá
ao juiz o poder de discricionariedade para verificar cada caso concreto.
O
MPF também quer que a nulidade de atos só possa ser cobrada “na
primeira oportunidade em que couber à parte falar nos autos, sob pena de
preclusão”, para evitar que advogados guardem “trunfos na manga” por
anos. Assim, “as nulidades são consideradas sanadas” se não forem
apresentadas em “tempo oportuno”. Os ajustes no CPP também preveem que o
juiz só anule atos se fundamentar claramente a decisão. Se isso
acontecer, o juiz deverá ordenar “as providências necessárias a fim de
que sejam repetidos ou retificados”.
Tema controverso
O criminalista Arnaldo Malheiros Filho aponta que uma lei não pode mudar a nulidade das provas ilícitas já prevista na Constituição. “[O dispositivo] está no artigo 5º, é cláusula pétrea. Nem uma PEC poderia mudar isso”, afirma.
O criminalista Arnaldo Malheiros Filho aponta que uma lei não pode mudar a nulidade das provas ilícitas já prevista na Constituição. “[O dispositivo] está no artigo 5º, é cláusula pétrea. Nem uma PEC poderia mudar isso”, afirma.
Posição semelhante é adotada pelo advogado Celso Vilardi.
“A proposta é lamentável, para dizer o mínimo. Esbarra na Constituição
Federal e, por isso mesmo, surpreende que seja feita pelo MPF, que,
muito além de ser parte no processo penal, é — ou deveria ser — fiscal
da lei.”
O professor Daniel Sarmento, que atua na
área de Direito Constitucional na Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (Uerj), afirma que já existem debates teóricos questionando se a
proibição da prova ilícita é ou não absoluta. Sem conhecer o projeto do
MPF, ele diz ser mais favorável a essa ponderação na esfera cível. Em
uma disputa por guarda de crianças, aponta, o Superior Tribunal de
Justiça chegou a reconhecer grampo ilegal em que uma mulher dizia que
daria remédios para as crianças "dormirem".
O criminalista Antonio Carlos de Almeida Castro,
o Kakay, avalia que liberar provas ilícitas permitiria abusos em
processos. “É um escândalo”, afirma o advogado, que conseguiu trancar a
megaoperação sundown na primeira vez que o STJ aplicou a
chamada teoria dos frutos da árvore envenenada: se as provas foram
colhidas de forma ilegal, não podem ser usadas para instruir um processo
criminal. Questionado se conhece alguma lei semelhante em outros
países, respondeu: “talvez no Irã ou Iraque”.
Se aprovada, a iniciativa criaria “dois pesos e duas medidas”, na opinião do advogado Alberto Toron.
“Há uma ética interessante na proposta ministerial. O Estado vai fazer o
que quiser, descumprir leis e até mesmo garantias constitucionais sob o
pálio de uma proporcionalidade imaginada em cada caso segundo as
conveniências ideológicas do operador de plantão.” Enquanto isso, réus
serão cobrados por quaisquer deslizes, avalia.
Mudanças nos recursos
O MPF defende ainda mudanças nos recursos dos processos penais. “É comum que processos envolvendo crimes graves e complexos, praticados por réus de colarinho branco, demorem mais de 15 anos em tribunais após a condenação”, diz a instituição, afirmando que defesas de réus costumam adotar “estratégias protelatórias”.
Uma das sugestões é acabar com
os Embargos Infringentes, que permitem a rediscussão de decisões
colegiadas quando não há consenso entre os julgadores. Na Ação Penal
470, o processo do mensalão, esse recurso permitiu que o Supremo
Tribunal Federal recuasse de condenações por formação de quadrilha e
lavagem de dinheiro, por exemplo.
Outras medidas são a aplicação
imediata de condenações quando for reconhecido abuso no direito de
recorrer; o fim dos Embargos de Declaração de Embargos de Declaração; e a
criação de um recurso em que o Ministério Público poderia discutir
Habeas Corpus dentro do próprio tribunal que concede a ordem, para “uma
paridade de armas” quando discordar da liberdade.
Clique aqui para ler proposta sobre nulidades processuais.
Clique aqui para ler proposta sobre recursos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário