sábado, 6 de dezembro de 2014

Formação humanística é tudo...

O ex-ministro do STF, Ayres Britto, comunga da necessidade de formação humanística na magistratura nacional, que eu estendo a todo operador do direito (juiz, promotor, advogado e auxiliares da justiça) no artigo "Repensando o Processo", publicado neste blog (http://joseronaldodiascampos.blogspot.com.br/) há algum tempo.

Veja a seguir a resposta dada pelo jurista à Revista Consultor Jurídico:


Conjur: o que o senhor está dizendo é que o grande avanço que falta no Judiciário não é no nível institucional. É no nível pessoal, da magistratura?


Ayres: eu diria que sim. O Judiciário hoje é muito bem informado. É muito bem preparado tecnicamente. Mas, não é bem formado humanisticamente. O que você vai fazer das informações depende da sua formação. O Judiciário como política pública tem que colocar ênfase na formação do magistrado. O juiz que faz de sua caneta um pé-de-cabra é o meliante número um, sem nenhuma dúvida. O estrago que ele causa na confiabilidade e na autoestima coletiva é maior do que quando esse estrago é perpetrado por qualquer outro agente público. O que você vai fazer de tantas informações técnicas, refinadas de todos os códigos e da Constituição depende da sua formação. Se você não for uma pessoa sensível, não percebe. Sensibilidade também é um requisito de desempenho. Sem isso, você não vai perceber que há dramas humanos naqueles autos. O juiz tem que abrir, mesmo, as janelas do Direito para o mundo circundante. Ele não pode se trancar numa torre de marfim. E tem que buscar inspiração nos códigos e, também, na viva vivida. Nos códigos está a vida pensada, a vida teórica. Na sociedade, nos jurisdicionados, está a vida vivida.





1. A jurisdição: poder-dever do Estado-juiz de dizer a vontade da norma, ou melhor, do Direito, aos casos concretos, quando provocada exterioriza-se por intermédio do processo, instrumento indispensável ao exercício da função/atividade de julgar.

2. E o processo? Esse complexo de atos coordenados progressivamente objetivando a justa, tempestiva e efetiva composição da lide, como deve ser entendido? Creio, mais que um instrumento formal de dicção do direito, o processo deve ser compreendido como um verdadeiro instrumento ético de realização de justiça, escopo maior da jurisdição.

3. Portanto, em que deve consistir, basicamente, a preocupação do operador do Direito, hodiernamente?

a) em compreender que o processo, que reside nos autos, relata, registra um drama social, um drama humano: tem vida, sentimento, chora, sangra e morre, não se resumindo num complexo de atos inertes e frios (petições, requerimentos, arrazoados, documentos, provas etc), num simples número nas hostes cartoriais (estantes bolorentas do foro), mera estatística promocional, fonte de receita estatal e/ou renda para advogado;


b) em exigir formação humanística dos agentes do direito (juiz, advogado, promotor e auxiliares da justiça), que devem se preocupar, voltar suas atenções às partes e interessados, verdadeiros destinatários do serviço jurídico a ser prestado eficientemente e a bom termo pelo Estado. Afinal, o processo é meio, não um fim em si mesmo.


4. O que se pode observar, na realidade prática, é que a prestação jurisdicional, às vezes, não passa de mero serviço monopolizado, caro, moroso e nem sempre de boa qualidade (justo e eficaz) prestado pelo Estado.


5. Na concepção revolucionária do acesso à justiça, como já dizia Mauro Cappelletti, na década de 80, a atenção do processualista se amplia para uma visão tridimensional do direito. Sob esta nova perspectiva, o direito não é encarado apenas do ponto de vista dos produtores do serviço jurídico, mas, principalmente, pelo ângulo dos consumidores do direito e da justiça, enfim, sob o ponto de vista dos usuários dos serviços processuais. O cidadão.

6. A narrativa kafkaniana d’O Processo, ao parodiar os desvios e abusos comuns ao seu desenvolvimento, faz nos ver a necessidade deste transcorrer segundo regras claras, impessoais, democraticamente estabelecidas, com transparência, assegurados o contraditório, a ampla defesa e a sua razoável duração. O temor de Kafka serve de contraponto à crucial importância do processo, garantidor de direitos fundamentais.

7. Josef K., protagonista da obra literária referenciada, não entendeu nada do seu processo, não soube sequer do que ou por quem foi acusado e julgado, embora sempre lhe garantissem que tudo tinha razão de ser.


8. Kafka alerta-nos do perigo de se enxergar o direito no automatismo burocrático que se esconde no escuro dos autos. A fundamentação da decisão, imprescindível por imperativo constitucional, quando não assume o compromisso ético-democrático como referência, pode remeter a um legalismo formal desconectado, capaz de oprimir e negar a vida. O recebimento da denúncia, por exemplo, nem sempre é fundamentado, nem permite recurso, o que traz sérias consequências ao acusado, que às vezes responde a ação penal sem justa causa, fadada ao insucesso. O simples fato de se responder a um processo criminal, que dura uma eternidade, já se traduz numa sanção, com marcas indeléveis na vida do cidadão, destacadamente quando absolvido ao final. A prisão cautelar, qualquer que seja, só pode ser admitida em situação extremada, mesmo a temporária (para averiguação na fase de inquérito), que abomino e vem sendo banalizada por operações policiais sensacionalistas.


9. Portanto, kafkiano é o processo que opera sem entender o que faz, cumprindo regras por serem regras, sem controle de constitucionalidade, olvidando a premissa de que o direito apoia-se nos critérios do justo e do equitativo.

10. Enfim, é assim que gente responsável e culta acaba se transformando em servidores bonachões, descompromissados e indiferentes, que aos poucos acabam promovendo, sem perceber, males gigantescos, adequados aos aparelhos agigantados que os empregam e os transformam.


O post traduz, em parte, colação arrumada e acrescida de obras literárias lidas pelo subscritor, objetivando a reflexão do leitor, que não precisa ser advogado para compreender a mensagem.

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