(Todas as grafias acima estão corretas)
Pe. Sidney Augusto Canto (*)
Recentemente
o Conselho Comunitário da Vila de Alter do Chão aprovou o uso da grafia “Çairé”
para o evento que ocorre a cada ano naquela Vila. Mesmo sabendo que o tema é
apaixonante do ponto de vista político (“Ç” para os partidários de um governo e
“S” para os de outro), quero aqui discorrer sobre o caráter HISTÓRICO da
grafia.
Quando
os portugueses chegaram à Amazônia havia diversos povos e tribos indígenas,
cada uma com sua “LÍNGUA” própria. Os índios apenas FALAVAM, mas não escreviam,
visto que toda a sua tradição se fazia de maneira ORAL. Para facilitar a
COMUNICAÇÃO por parte dos religiosos com os índios, os JESUÍTAS criaram uma LÍNGUA
GERAL, conhecida como NHEENGATU. Esta “língua geral” servia para comunicação entre
os padres e seus catequisados. Era incompreendida para os colonos, que mal
sabiam ler e escrever em português. A língua geral servia, portanto, para
CONFUNDIR os COLONOS e facilitar a COMUNICAÇÃO dos índios com os PADRES.
Ora,
conhecer a língua e dominá-la indica posse do poder... Isso não agradava a
Corte portuguesa que, por meio de cartas régias, obrigavam os padres a ensinar
a língua portuguesa nas Missões. A lei era desobedecida até a chegada de
Mendonça Furtado à Amazônia. O mesmo reclamou ao seu irmão (leia-se “Pombal”),
que os padres dificultavam o diálogo com os índios usando do Nheengatu
desprezando a língua portuguesa. Resultado: Jesuítas expulsos e obrigatoriedade
de se ensinar português a todos os índios da Colônia. Com isso grande parte da
cultura dos povos locais (inclusive as dos Boraris) recebeu quase que uma
sentença de morte. O Sairé se mostrou então como uma resistência a esse golpe,
pois as cantigas ainda eram feitas em Nheengatu...
Podemos ver, assim, que a problemática de como se escreve a palavra
Sairé não é moderna. Sobre a grafia na língua geral dos índios, passo a
transcrever o que diz Ermano Stradelli em sua Gramática de Nheêngatú, publicada em 1928 na Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (possuo uma cópia a que frequentemente
eu recorro): “O Nheêngatú ou língua geral se escreve foneticamente com 19
letras, a saber: A,B,C,D,E,G,H,I,K,M,N,O,P,R,S, T,U,X,Y. Comparado ao alfabeto
português faltam-lhe sete letras, isto é, Ç,F,L,J,Q,V,Z. O Ç, profusamente
empregado pelos nossos antecessores, é afinal um S, e a pronúncia de quem fala
o nheêngatú, como língua aprendida dos lábios maternos, não autoriza a
distinção de pronúncia que pressupõe o uso de sinais diferentes”. Ou seja,
para quem estuda e conhece nhêengatú sabe que a grafia “Çairé” não existe, nem
na língua geral e nem como português exato.
Mas se tratando da língua tupi, a grafia é aceita, contanto que se
escreva sublinhada, ou aspeada, ou em negrito (esta são as
normas da ABNT, que valem para as línguas não oficiais do nosso país que adota
SOMENTE o PORTUGUÊS como língua oficial). Aliás, essa introdução do “Ç” em
forma inicial na língua tupi se deve ao naturalista Barbosa Rodrigues, que a
introduziu no final do século XIX. Antes do século XIX não existia o “Ç” nem
sequer no TUPI. Ou seja, as duas formas são corretas contanto que se usem as
devidas referências preferenciais do termo, ou seja, se em português ou
nheengatu, é com “S”, se na língua tupi, é com “Ç”.
Além
disso, vale a pena lembrar o que diz Ladislau Baena sobre o Sairé de Belém: Na noite de Natal e na
véspera e dia da festa, que é uma das oitavas, o juiz e a juíza caminham à
Catedral precedidos do Toriua, a que
outros chamam Sairé: o qual é um semicírculo de cipó de seis palmos de
diâmetro quadripartido com uma cruz, e um espelho em cada uma dessas partes e outra
cruz no meio da periferia”. Toriua, ou Turyua”
que quer dizer (conforme Barbosa Rodrigues): “Alegria”.
Como
eu disse em uma postagem recente nas redes sociais: “qualquer estudante de
História sabe disso”. O problema, portanto, parece ser muito mais de caráter político.
Sendo assim, parece que novamente se faz a lei do mais forte, que já impuseram
à cultura indígena um verdadeiro MASSACRE. Até mesmo o fato do índio ESCREVER
foi uma IMPOSIÇÃO portuguesa que ainda hoje alguns dos “dominadores” atuais
insistem em introduzir e conservar, ao invés de simplesmente deixarem fluir a
antiga tradição oral que havia, sem escrita e mesmo assim entendida...
Enfim,
as DUAS GRAFIAS são corretas, contanto que se obedeçam as NORMAS GRAMATICAIS em
vigor. Concordo até com meu amigo, historiador Paulo Lima, que a ABNT deveria
considerar o TUPI como uma língua “oficial”, aliás, deveria considerar cada
língua indígena de nosso país como OFICIAL para aquele grupo de brasileiros que
falam diferente da maioria...
E,
para encerrar, ao invés de fazerem tanto “BA-FÁ-FÁ” em torno da grafia,
deveriam era discutir e lutar para melhor valorização da cultura de fato
NATIVA, para melhor valorização da história e da vida de nossos índios, para
buscar de novo o SAIRÉ/ÇAIRÉ/TURYUA em sua forma mais original possível: algo
que em sua essência nada mais é do que “SALVE” e “ALEGRIA” e que, numa tradução
livre pode simplesmente ser: Saudemos a Alegria, Saudemos!
* Presbítero da Diocese de
Santarém, é membro da Academia de Letras e Artes de Santarém (ALAS) e
presidente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós – IHGTap.
Nenhum comentário:
Postar um comentário