O
que levou a Companhia Ford, instalada na gélida e industrializada
Detroit, região dos Grandes Lagos nos Estados Unidos, a planejar uma
“filial” às margens do equatorial rio Tapajós, em plena selva Amazônica
há quase 80 anos? A resposta é simples. Nos anos 1920, a Ford tentava
escapar do monopólio que os ingleses exerciam sobre a produção de látex.
O produto era matéria-prima valiosa para a efervescente indústria
automobilística: com ela, fabricavam-se pneus e diversas autopeças.
Por Antônio Pedro Tota
AVEIRO – A vila de Fordlândia, localizada a cerca de 120 quilômetros de Santarém, na Amazônia paraense, faz parte do sonho modernista de Henry Ford – o homem que fez o mundo girar sobre quatro rodas, o criador do automóvel como bem de consumo. Mas o que levou a Companhia Ford,
instalada na gélida e industrializada Detroit, região dos Grandes Lagos
nos Estados Unidos, a planejar uma “filial” às margens do equatorial
rio Tapajós, em plena selva Amazônica há quase 80 anos?
A resposta é simples. Nos anos 1920, a Ford tentava escapar do
monopólio que os ingleses exerciam sobre a produção de látex. O produto
era matéria-prima valiosa para a efervescente indústria automobilística:
com ela, fabricavam-se pneus e diversas autopeças.
Em 1927, depois de ter em mãos informações sobre a qualidade da
borracha da Amazônia, Henry Ford tratou de comprar, na região de Boa
Vista, um belo naco de terra, com cerca de 1 milhão de hectares, às
margens do Tapajós. O valor: 127 mil dólares.
No ano seguinte, dois navios – Lake Ormoc e Lake Farge – aportavam na
floresta carregados de todo o material necessário para a instalação da
maior plantação de seringueiras do mundo. Não demorou para que Boa Vista
fosse rebatizada como Fordlândia. Quanto à empresa americana, chegava à
selva com o nome de Companhia Ford Industrial do Brasil.
Muito pouco se comenta sobre esse curioso episódio das primeiras
décadas do século 20 na Amazônia. Por ser um estudioso da influência
americana no Brasil, fui convidado pela revista National Geographic para
visitar – acompanhado do fotógrafo Ricardo Beliel – as cidades
“americanizadas” nesses trechos da floresta.
Em Santarém, tivemos o primeiro contato com a magnitude da empreitada americana. No Instituto Cultural Boanerges Sena,
assistimos a um breve documentário sobre aquela época. As imagens
contam o início da história que buscávamos: tratores derrubando árvores
colossais, serras cortando tábuas, caldeiras movendo turbinas de
geradores de energia, ruas, estradas e casas de alvenaria surgindo no
meio da mata. É o retrato do dinamismo industrial – transportado para a
floresta fechada.
O projeto, no entanto, não vingou. Assim, em 1934, a companhia
americana faria nova tentativa: dessa vez, na região de Belterra, cidade
mais próxima de Santarém. Ao todo, o sonho da Ford nessas paragens
durou até dezembro de 1945.
Para o longo trajeto de 12 horas de barco entre Santarém e as antigas
instalações da Ford, cruzando as águas verdes do Tapajós, tomei certas
providências.
Precisava de uma rede, de uns 2 metros de corda e de um chapéu. O
chapéu, obviamente, para proteger a calva do forte sol equatorial; a
corda, para amarrar a rede na embarcação. “Uma das belas características
do Tapajós são as nuances de cor que apresenta durante os dias e as
noites. Algumas vezes ele tem a cor de esmeralda; outras, a de chumbo;
outras, o dourado – como se caprichasse para nos extasiar com sua
beleza…”
Quem descreve o rio com tal poesia é um filho dessas matas, Eimar Franco, autor do livro O Tapajós Que Eu Vi.
Franco nasceu em Urucurituba, na margem oposta a Fordlândia, em 1921.
Testemunhou toda a implantação do projeto americano por ali.
Descemos em Fordlândia por volta das 5 horas da manhã. Hora local.
Mas não é o mesmo fuso horário de Santarém?, pergunto a seu Vicente, um
companheiro de viagem. Para minha surpresa, não. Fordlândia está sob a
“custódia” do Ministério da Agricultura e,
por isso, é Brasília que determina o horário.Mas Fordlândia também faz
parte da prefeitura de Aveiro – que segue o horário de Santarém.Mais
tarde, constataria a confusão: a dona de um restaurante servia, às 11h, o
almoço aos funcionários do Ministério da Agricultura, um órgão
federal.Ao meio-dia, era a vez dos funcionários da prefeitura que
tecnicamente estavam almoçando às 11h.
O dia nascia em Fordlândia quando uma velha picape Chevrolet veio nos
receber. Ao volante estava Olinaldo Barbosa da Silva, o Fuzica, um
articulador político da região que luta pela autonomia municipal.
Levounos até a Vila Americana, onde moravam os executivos americanos.
Alamedas arborizadas com gigantescas mangueiras, calçadas, postes de
ferro fundido, luminárias de ágata e hidrantes. Tudo muito organizado.
Na Vila Americana, entramos na residência de número 1 – a chamada
Casa de Henry Ford, que no passado serviu à direção da empresa.
Belíssimas cadeiras de balanço de vime, uma mesa de madeira nobre e uma
cristaleira.
Uma velha vitrola RCA Victor me chamou atenção.Aberta a tampa, os
cupins que corroíam a memória da presença americana no Brasil se
apressaram em fugir. Consegui ler a etiqueta de alguns discos quebrados
de 78 rotações: Rapsódia Húngara, de Liszt; um foxtrote, By the River
Saint Marie.Na estante, livros revelavam a principal preocupação dos
americanos: doenças tropicais. Entre os muitos títulos sobre o assunto,
lá estava Recent Advances in Tropical Medicine, de sir Leonard Rogers
(Indian Medical Service), da London School of Tropical Medicine.Na vila
não há eletricidade. Outro sinal do total abandono de Fordlândia.
Procurei saber se o velho mogul da indústria automobilística visitara a
Amazônia. A resposta: não.
Do outrora elegante bairro dos executivos americanos, fomos até a
Casa do Leite, uma imensa construção com vigas de aço onde ainda se pode
ler “Bethlehm/USA”. Ali dentro há restos de máquinas que beneficiariam o
leite do látex. O local tem ares macabros. Algo que se reforça com o
caixão de defunto deixado num canto, feito de metal e já carcomido pelo
tempo. Serviria a americanos que não desejassem ser enterrados no
Brasil. Entretanto, conforme conta a gente local, nenhum americano
faleceu durante a permanência da Ford na Amazônia.
Por alguns momentos, imaginei o que faria se fosse ministro da
Cultura. As paredes de vidro e aço abrigariam um imenso teatro, onde
seriam apresentadas peças de Villa-Lobos.
Fordlândia se tornaria nossa Bayreuth – a cidade natal de Richard
Wagner –, onde todos viriam para reverenciar a Amazônia por meio das
obras do compositor brasileiro…
As ruas de Fordlândia nos levaram à casa de Roque Faria Braz, que
tinha uns 10 anos quando a Ford chegou ao Tapajós. Filho de índios, Braz
alistou-se na companhia para derrubar a mata. Com saudades, ele
recorda- se do “tempo dos americanos”, quando não se pagava aluguel,
havia serviço médico, água e luz.Hoje, aos 84 anos, sente-se abandonado.
Mas nem todos viviam satisfeitos em Fordlândia. Braz nos informa
sobre a “revolta das panelas”, ou “o quebra-panelas”. Foi um episódio
que gerou muitas versões. No seu clássico Bandeirantes e Pioneiros,
Vianna Moog discute diferenças culturais a partir do incidente
histórico. No refeitório de Fordlândia, em 1930, repentinamente os
operários se rebelaram. Cortaram os fios do telégrafo, afugentaram os
americanos e, acima de tudo, queriam a cabeça do cozinheiro. A razão?
Ninguém suportava mais cornflakes, espinafre e outras comidas
importadas. Todos queriam saborear o peixe da região, queriam feijão e
farinha.
Rebeliões e resistências, no entanto, não ficaram restritas à comida.
Os caboclos que se empregavam na Ford do Brasil estavam proibidos de
consumir cachaça. Não demorou para que o contrabando surgisse. Pequenos
alambiques vendiam a bebida no meio do rio, fora da jurisdição da
companhia. Depois, escondida dentro de melões ou melancias, a pinga era
levada para o interior da vila.
O hospital e o cemitério de Fordlândia são metáforas dos dias de
hoje. O primeiro não funciona há anos. E, ironicamente, os instrumentos
abandonados ali poderão matar, e não salvar vidas: dois aparelhos de
raios X profetizam uma tragédia semelhante à do césio de Goiânia. O
cemitério está esquecido.
Encontrei-me com antigos moradores locais. Pedro Rocha, de 84 anos,
Olinda Pereira Branco, de 93, e Juvêncio Alves dos Santos, 80, são
alguns deles. Todos saudosos do tempo da companhia.
A Ford deixou a Fordlândia em 1934, trocando o município por outro,
este a apenas uma hora de Santarém. Foi lá, em Belterra, que o
secretário de Turismo e Meio Ambiente Chardival Pantoja nos explicou
porquê.
A região do Tapajós foi escolhida pela companhia, em parte, porque
foi dali que os ingleses contrabandearam sementes da Hevea brasiliensis,
em 1876. Ou seja, levaram nossa seringueira diretamente para suas
colônias no Extremo Oriente. Trata-se de um dos primeiros casos de
biopirataria na Amazônia e que, anos mais tarde, provocaria o fim o
ciclo da borracha brasileiro. Os especialistas da Ford prepararam o
terreno. Seguindo o modelo de estandardização das linhas de produção de
automóveis, eles plantaram, em campo simétrico, milhões de mudas
colhidas na mata.
Na floresta, porém, as seringueiras eram dotadas de proteção natural
contra fungos e pragas. No campo aberto, ficavam vulneráveis. O fungo
Microcylclus ulei atacou as árvores, tornando-as imprestáveis para a
produção do látex. Em 1934, a empresa foi para Belterra, onde evitaria
os erros cometidos em Fordlândia. Nascia, assim, a segunda experiência
da Companhia Ford na Amazônia.
Como fizeram em Fordlândia, os americanos reproduziram ali uma
cidadezinha interiorana dos Estados Unidos. Ruas bem traçadas, os
ubíquos hidrantes, cinema, hospital, sistemas de água e luz elétrica,
campo de golfe e o Club House, onde as famílias ouviam música e jogavam
cartas. Na verdade, havia duas Belterras: a dos americanos e a dos
trabalhadores brasileiros. Ou a Vila Americana e a Vila Assalariada.Aos
moradores da segunda era vedada a freqüência na primeira.
As plantações de Belterra também obedeciam o traçado retilíneo,
claro. Só que as mudas não eram locais, e sim trazidas do Ceilão,
resistentes aos fungos. Tudo indicava que o projeto de Henry Ford iria
vingar. Mas, com a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra, as
novas experiências com borracha sintética alcançavam resultados
positivos. Em fins de 1945, a Ford resolveu deixar de lado a Amazônia.
Por cerca de 250 mil dólares, vendeu tudo para o novo governo
brasileiro. Desde então, Fordlândia tornou-se parte do patrimônio do
Ministério da Agricultura. Um patrimônio abandonado nos confins da
floresta. (National Geographic)
Copiado de: Gazeta de Santarém
Esqueceram de citar "Daniel de Carvalho", fazenda experimental localizada entre Belterra e fordlândia, no rio Tapajós, bem confronte a cidade de Aveiro, que cultivava gado da marca "Nelore" para abastecer as supracitadas cidades de Ford.
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