Ponderações jurídicas
A
ideia lançada nesta segunda-feira (24/6) pela presidente da República
Dilma Rousseff de convocar um plebiscito que decidirá sobre a instalação
de uma Assembleia Constituinte para tratar exclusivamente de reforma
política é desnecessária, juridicamente duvidosa — e perigosa. Essa é a
opinião da maioria dos advogados e ministros, aposentados e em
atividade, do Supremo Tribunal Federal ouvidos pela revista Consultor Jurídico.
Desnecessária
porque é perfeitamente possível fazer a tão esperada reforma política
dentro dos marcos legítimos fixados pela Constituição Federal de 1988.
Ou seja, por meio de projetos de lei e propostas de emenda à
Constituição.
Juridicamente duvidosa porque não é possível se
convocar uma Assembleia Constituinte para tratar de um assunto
específico. O poder constituinte originário é ilimitado. Logo, poderia
avançar para muito além da reforma política. E perigosa porque
constituinte não têm compromissos com a ordem jurídica vigente. Logo, é
possível romper com a ordem vigente hoje no país e que garantiu, até
hoje, 25 anos de estabilidade institucional.
“Sob a roupagem da
reforma política, pode-se reestruturar o país. Pode-se diminuir o tempo
de mandato do presidente da República, por exemplo. Alterar a forma de
escolha dos ministros do Supremo ou fixar mandatos. Na prática, é a
criação de um quarto poder que poderá mais do que os outros três
poderes”, afirmou à ConJur um ministro do Supremo
Tribunal Federal que criticou a ideia. Para ele, reforma política se faz
por meio de leis e emendas à Constituição.
O ministro aposentado do Supremo Ayres Britto
afirmou que enxerga bons propósitos na ideia da presidente da
República. “Vê-se que ela está bem intencionada, que quer acertar”,
disse. De acordo com o ministro, contudo, a Constituição Federal não dá
ao Congresso o poder de convocar um plebiscito para tratar da matéria
específica. “O Congresso Nacional pode, por motivos de conveniência e
oportunidade, repassar para o povo, convocado plebiscitariamente, seu
poder normativo. Ou seja, só pode convocar o povo a decidir sobre os
temas que ele próprio, Congresso, tem legitimidade para decidir. Não é o
caso de convocação de plebiscito para decidir a instalação de uma
Assembleia Constituinte”, disse.
Ayres Britto deu exemplos
práticos. O Congresso convocou um referendo para decidir sobre o
desarmamento no Brasil. Momentaneamente, portanto, deixou de lado a
democracia representativa, por meio da qual deputados e senadores fixam
os marcos normativos do país, e convocou a população a se manifestar por
meio da democracia direta. Mas o Congresso passou ao povo o poder de
deliberar em seu lugar, sobre uma decisão que ele mesmo poderia tomar.
O
Congresso não poderia, por exemplo, convocar um plebiscito para decidir
sobre a fixação da pena de morte no Brasil. Isso porque ele próprio não
tem o poder de legislar em relação ao tema. Logo, se não cabe ao
Congresso decidir sobre a instalação de uma Assembleia Constituinte, não
tem o poder de convocar um plebiscito para decidir sobre a matéria.
“Nenhuma
Constituição tem vocação para o suicídio. Por isso, não prevê a
possibilidade de se convocar uma Assembleia Constituinte. Toda
Constituinte é a sentença de morte da Constituição anterior e, neste
caso, o Congresso Nacional não pode convocar o povo para agir como o
coveiro da Constituição de 1988, que agora é que começa a dar seus belos
frutos”, afirmou Ayres Britto.
Ideia inusitada
O ministro aposentado do Supremo Carlos Velloso
afirmou desconhecer a figura da “Constituinte exclusiva”. Para ele, uma
mudança neste grau pode e deveria ser feita mediante emenda
constitucional. “Isso é um despropósito. Uma medida para enganar a
população que está nas ruas pedindo reforma”, disse o ministro, que
presidiu o STF entre 1999 e 2001.“Essa medida de plebiscito, que
eu considero um absurdo, é algo inusitado que esconde qualquer coisa
porque não tem apoio na ordem jurídica. Sem dúvida, não tem fundamento
jurídico”, criticou.
Já o ministro Marco Aurélio
não entrou no mérito de ser ou não juridicamente possível um plebiscito
para convocar uma Assembleia Constituinte, atribuindo à declaração da
presidente um efeito de “força de expressão”. Para o ministro, como o
momento exige uma tomada séria de providências, a presidente “usou algo
para realmente impactar”. Marco Aurélio afirmou que a realização de um
plebiscito é desnecessária, dada a insatisfação da sociedade ser
evidente, e que a reforma política pode ocorrer por meio de emendas
constitucionais.
“O que a presidente quis dizer foi ressaltar a
necessidade de uma mudança de rota. E, portanto, de providências dos
poderes constituídos, principalmente do Congresso. Será que é necessário
o plebiscito? É só perceber anseios da sociedade, que quer mudanças no
campo ético, no arcabouço normativo e atenção maior para os serviços
públicos”, disse. O ministro afirmou que não imagina uma convocação
extraordinária para a reforma política, “quando podemos consertar sem
lançar mão de uma nova Constituinte”.
Proposta legítima
Para o ministro aposentado do STF Francisco Rezek,
ex-juiz da Corte Internacional de Justiça de Haia, a nomenclatura
“Constituinte” é menos importante diante do atual quadro do país. Ele
considera que a presidente Dilma Rousseff parte da premissa correta de
que os atuais membros do Congresso Nacional não são os melhores quadros
para empreender uma reforma política.
O que importa, para o
ministro, é que há uma reação diante da onda de manifestações nas ruas e
da perda de representatividade dos membros do Congresso Nacional, que
demonstram a necessidade de se fazer com urgência a reforma no sistema
político do país. Ou seja, enxergam na ação da presidente uma boa
intenção, que pode ser levada a cabo de outra forma.
“Um colegiado
que fosse eleito só para tratar da reforma política, que não fosse
constituído pelos membros regulares do Congresso, teria mais qualidade”,
afirmou Rezek. O ministro afirmou que a discussão não é nova. Nos anos
1980, lembrou, se discutiu a possibilidade da eleição de uma Assembleia
Constituinte separada do Congresso, que se dissolvesse após a elaboração
da Constituição. Ao fim, se decidiu transformar o Congresso em
Assembleia Nacional Constituinte.
“A ideia é correta. Não seria
propriamente uma Assembleia Constituinte. Nós teríamos aí um colegiado
para a reforma política na Constituição, para modificar na Constituição
apenas o necessário para que o produto dessa mudança signifique a
autêntica reforma política que todos esperam alcançar. É uma questão de
adaptar a nomenclatura, mas a ideia é a melhor possível”, defendeu o
ministro aposentado.
Processo de reforma
O advogado constitucionalista Gustavo Binenbojm
questionou a necessidade política da convocação de uma Assembleia
Constituinte diante da história recente do país. De acordo com ele, o
fato de a Constituição de 1988, em seus 25 anos, ter sido alvo de 73
emendas mostra que o processo de reforma da Constituição do Brasil é um
processo facilmente acessível pelo trabalho do constituinte derivado.
“O
processo é factível, é alcançável. Por que, se é possível alcançar o
resultado desejável no âmbito do Congresso e dentro dos marcos
constitucionais em vigor, se instalar uma Assembleia Constituinte?”,
questionou Binenbojm. “Não creio que haja a necessidade. Parte da
reforma pode ser feita por emendas à Constituição e parte por meio de
leis ordinárias”, completou.
O advogado lembrou uma frase do
ministro Ayres Britto: “O poder constituinte originário é o poder que
tudo pode, só não pode o não poder”. De acordo com o advogado, o poder
de uma Assembleia Constituinte é juridicamente ilimitado, insuscetível
de qualquer controle. “Há um risco inerente a qualquer processo
constituinte originário, que é o risco para as instituições
democráticas”, afirmou.
Gustavo Binenbojm lembrou que a instalação
da Constituinte que deu à luz a Constituição de 1988 se deu a partir de
um processo de ruptura com a ordem jurídica anterior, que havia
esgotado seu lastro de legitimidade. “Não é o caso do Brasil de hoje, em
que vivemos em um regime democrático, dentro de um Estado de
Democrático de Direito. Se o poder de uma Assembleia Constituinte é
juridicamente ilimitado, o próprio Supremo Tribunal Federal não terá
liberdade para controlar. Há uma preocupação política com os rumos de
uma convocação dessa natureza”, opinou o advogado.
“Sopesando bem
os prós e contras, acho que essa energia popular presente nas
manifestações nas ruas poderia ser canalizada para um processo de
reforma construído dentro dos marcos da Constituição Federal de 1988,
com a salvaguarda de que os direitos das minorias e os direitos e
garantias fundamentais serão preservados”, concluiu.
O presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Marcus Vinícius Furtado Coêlho,
também afirmou que do ponto de vista técnico, a proposta da presidente
Dilma Rousseff se torna inviável. “Não apenas pelos riscos inerentes
dessa iniciativa, como também em face do poder ilimitado que lhe permite
reformar ou fazer o que bem entender. Em resumo, não é possível
convocar uma Constituinte para discutir matéria ‘a’ ou ‘b’, pois é ela
própria quem define”, afirmou.
Segundo Furtado Coêlho, nada impede
que a iniciativa alcance matérias relativas à liberdade de imprensa,
garantias individuais e tantas outras sobre as quais a sociedade precisa
constantemente se manter vigilante para que não pereçam. “A atual
Constituição, às vésperas de celebrar 25 anos, ainda é fator de
mobilização social, como vemos agora, para assegurar a efetivação de
direitos. Acaba sendo, portanto, uma carta em branco”, disse o
presidente nacional da OAB.