Paradoxo da Corte
Já
tive oportunidade de examinar esta importante e delicada questão em
longo artigo sob o mesmo título, publicado há muitos anos (RT,
756:1998), no qual defendi ser de todo conveniente a inserção, dentre as
causas de suspeição arroladas no artigo 135 do CPC, a amizade íntima ou
a inimizade capital entre o juiz e um dos advogados.
Observei então que o advogado e o juiz, que são homens como quaisquer outros, têm sentimentos profundos. A experiência realmente demonstra que a formação moral e cultural dos protagonistas da Justiça culmina interferindo no exercício da profissão.
Realmente, não são raras as ocorrências, em época contemporânea, que revelam as dificuldades que emergem do relacionamento entre o juiz e o advogado de uma das partes.
É indiscutível que a amizade pessoal entre o causídico e o julgador não é, em muitas ocasiões, uma circunstância que possa ser útil ao cliente, “pois se o juiz é escrupuloso e possuidor de sólido caráter, tem tanto medo que a amizade possa inconscientemente induzi-lo a ser parcial em prol do cliente do amigo, que é naturalmente levado, por reação, a ser injusto contra ele”.
Para um juiz honesto, afirma Calamandrei, “que tenha de decidir uma causa entre um amigo e um indiferente, é preciso maior força para dar razão ao amigo do que para lhe negá-la; é preciso maior coragem para se ser justo, arriscando-se a parecer injusto, do que para ser injusto, ainda que fiquem salvas as aparências da justiça” (Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados, 3ª ed., Lisboa, Clássica, 1960, p. 159).
Infelizmente, porém, o ideal de isenção que deveria triunfar durante todo o desenrolar do procedimento judicial e sobretudo no momento do magistrado proferir o julgamento, por força de inexoráveis determinantes do caráter humano, nem sempre é verificado.
Em variadas ocasiões não se faz possível individuar, no âmago dos atos decisórios, preconceitos e valorações inerentes à personalidade dos homens. Abandonada a vetusta teoria que reduzia a decisão a um simples silogismo nos quadrantes da lógica formal, já não se pode negar que a sentença se consubstancia num ato extremamente complexo. Sabe-se hoje que, antes da própria fundamentação, o juiz constrói o dispositivo, para, em seguida, procurar, na motivação, argumentos que se prestam a justificá-lo.
O ato decisório de índole jurisdicional, como emanação do poder estatal de que se reveste o juiz, constitui instrumento deveras perigoso quando estiver conspurcada, por qualquer motivo, a imparcialidade que necessariamente deve exornar a administração da Justiça.
Sendo possível o desvio da função jurisdicional de sua precípua finalidade de atribuir, com a devida isenção, a cada um o que é seu, torna-se imperiosa a instituição de mecanismos que coíbam tal lamentável prática.
O exame à luz da comparação jurídica revela que inúmeras legislações processuais modernas dispõem como causa de afastamento do juiz o seu parentesco com o advogado de um dos litigantes (v., e. g., artigo 120, 1, do CPC português; artigo 170, IV, do CPC do México; artigo 17, n. 1, do CPC argentino; artigo 50, n. 1, da Lei de Procedimiento Civil, Administrativo e Laboral de Cuba; artigo 234 do CPC do Québec).
Outras experiências jurídicas, contudo, reconhecendo que a taxatividade da lei nesse assunto não se presta a solucionar a problemática que emerge da praxe, deixam em aberto os motivos que possibilitam a arguição de suspeição do magistrado.
Assim, o CPC do Japão, após estabelecer o rol das causas objetivas e subjetivas que propiciam a substituição do juiz (artigo 35), preceitua, no artigo 37, que, se ocorrerem circunstâncias que possam prejudicar a imparcialidade da decisão, as partes podem recusá-lo.
Na Alemanha também, apesar do minudente catálogo de situações emoldurado no § 41 do ZPO, determina o § 42 que: “Os juízes poderão ser recusados pelas mesmas razões pelas quais são excluídos por lei e sempre que exista perigo de parcialidade. A recusa por esse derradeiro fundamento poderá ser arguida quando existam motivos suficientes de desconfiança da imparcialidade do juiz”. Consoante importante precedente da Corte de Apelação de Karlsruhe, quando restarem comprovadas diferenças de caráter entre o juiz e o advogado de um dos litigantes, o julgador poderá ser recusado tendo-se em vista o “fundado temor de parcialidade”.
Reconhecendo acertada essa orientação, a lei processual da Itália prevê, entre as hipóteses de suspeição presumida, a intimidade notória do juiz com um dos procuradores atuantes no processo. Com redação deveras peculiar, dispõe o art. 51 do Codice di Procedura Civile que: “O juiz tem o dever de se abster:... 2) se ele ou sua mulher é parente até o quarto grau ou ligado por vínculo de filiação, ou é convivente ou comensal habitual de uma das partes ou de algum dos defensores; 3) se ele ou sua mulher litiga ou tem inimizade ou relação de crédito ou débito com uma das partes ou com algum dos defensores...”.
Verifica-se também que o CPC do Paraguai contempla, a esse respeito, no artigo 20, a mesma disciplina da legislação italiana.
Bem é de ver que estas últimas legislações encaram a fenomenologia do cotidiano social de modo bem mais realístico, uma vez que partem do correto pressuposto de que se infere inevitável presunção de suspeição do relacionamento juiz-advogado.
Abstraindo-se, no entanto, dessa verdade e traçando a distinção entre motivos de impedimento (artigo 134) e motivos de suspeição, o nosso CPC estabelece, no artigo 135, que se considera “fundada a suspeição de parcialidade do juiz, quando: I - amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer das partes; II - alguma das partes for credora ou devedora do juiz, de seus cônjuge ou de parentes destes, em linha reta ou na colateral até o terceiro grau; III - herdeiro presuntivo, donatário ou empregador de alguma das partes; IV - receber dádivas antes ou depois de iniciado o processo; aconselhar alguma das partes acerca do objeto da causa, ou subministrar meios para atender às despesas do litígio; V - interessado no julgamento da causa em favor de uma das partes”.
Em nenhum destes incisos, como se nota, preocupou-se o legislador em afastar o juiz quando relacionado ou inimigo do advogado de uma das partes.
É certo que o parágrafo único do artigo 135 faculta ao magistrado dar-se por suspeito “por motivo íntimo”, mas isto não significa, à evidência, que possa a parte arguir a suspeição decorrente da amizade íntima ou inimizade que porventura conotar o relacionamento do juiz da causa com o advogado da parte contrária.
Diante da supra aludida previsão legal, delineia-se uniforme, por via de consequência, a orientação da jurisprudência pátria no que se refere a essa questão, forte no argumento de que, gravíssima como é a arguição de suspeição, seus motivos geradores devem ser de direito estrito, taxativos, não podendo ser ampliados além daqueles consignados na própria lei. Nesse sentido, dentre outros, confira-se o julgamento proferido pela 3ª Turma do STJ, no Recurso Especial n. 600.737-SP, de relatoria do ministro Carlos Alberto Menezes Direito: “A simples antipatia entre advogado e juiz não pode dar ensancha à suspeição, pois pode o juiz, por motivo íntimo, julgar-se impedido se assim entender. A suspeição em casos de amizade íntima ou inimizade capital diz com a relação entre o juiz e as partes, o que não é o de que se cuida nestes autos”.
No entanto, como acima frisado, diante das vicissitudes da vida, dúvida não pode haver de que o relacionamento próximo ou, especialmente, a inimizade notória entre o juiz e o advogado da causa acarreta uma presunção objetiva de que o magistrado poderá se deixar influenciar por essa circunstância. Fácil é verificar que, entre nós, não são raras as desavenças entre juízes e advogados. A prática tem demonstrado que é o advogado que exerce a profissão em comarcas de primeira entrância quem sofre, mais de perto, as consequências do desentendimento com o juiz, gerador de prolongada inimizade.
Observo que, mais recentemente, durante a tramitação legislativa do Projeto do CPC perante a Câmara dos Deputados, atento a esta inexorável realidade, foi acolhida importante emenda àquele texto legal.
Com efeito, o nosso novo CPC, aprovado pelo Senado Federal no último dia 17 de dezembro, dispõe no artigo 145: “Há suspeição do juiz: I – amigo íntimo ou inimigo de qualquer das partes ou de seus advogados...”. Externo nesta oportunidade, a respeito desta significativa novidade, o meu voto de louvor ao legislador!
Observei então que o advogado e o juiz, que são homens como quaisquer outros, têm sentimentos profundos. A experiência realmente demonstra que a formação moral e cultural dos protagonistas da Justiça culmina interferindo no exercício da profissão.
Realmente, não são raras as ocorrências, em época contemporânea, que revelam as dificuldades que emergem do relacionamento entre o juiz e o advogado de uma das partes.
É indiscutível que a amizade pessoal entre o causídico e o julgador não é, em muitas ocasiões, uma circunstância que possa ser útil ao cliente, “pois se o juiz é escrupuloso e possuidor de sólido caráter, tem tanto medo que a amizade possa inconscientemente induzi-lo a ser parcial em prol do cliente do amigo, que é naturalmente levado, por reação, a ser injusto contra ele”.
Para um juiz honesto, afirma Calamandrei, “que tenha de decidir uma causa entre um amigo e um indiferente, é preciso maior força para dar razão ao amigo do que para lhe negá-la; é preciso maior coragem para se ser justo, arriscando-se a parecer injusto, do que para ser injusto, ainda que fiquem salvas as aparências da justiça” (Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados, 3ª ed., Lisboa, Clássica, 1960, p. 159).
Infelizmente, porém, o ideal de isenção que deveria triunfar durante todo o desenrolar do procedimento judicial e sobretudo no momento do magistrado proferir o julgamento, por força de inexoráveis determinantes do caráter humano, nem sempre é verificado.
Em variadas ocasiões não se faz possível individuar, no âmago dos atos decisórios, preconceitos e valorações inerentes à personalidade dos homens. Abandonada a vetusta teoria que reduzia a decisão a um simples silogismo nos quadrantes da lógica formal, já não se pode negar que a sentença se consubstancia num ato extremamente complexo. Sabe-se hoje que, antes da própria fundamentação, o juiz constrói o dispositivo, para, em seguida, procurar, na motivação, argumentos que se prestam a justificá-lo.
O ato decisório de índole jurisdicional, como emanação do poder estatal de que se reveste o juiz, constitui instrumento deveras perigoso quando estiver conspurcada, por qualquer motivo, a imparcialidade que necessariamente deve exornar a administração da Justiça.
Sendo possível o desvio da função jurisdicional de sua precípua finalidade de atribuir, com a devida isenção, a cada um o que é seu, torna-se imperiosa a instituição de mecanismos que coíbam tal lamentável prática.
O exame à luz da comparação jurídica revela que inúmeras legislações processuais modernas dispõem como causa de afastamento do juiz o seu parentesco com o advogado de um dos litigantes (v., e. g., artigo 120, 1, do CPC português; artigo 170, IV, do CPC do México; artigo 17, n. 1, do CPC argentino; artigo 50, n. 1, da Lei de Procedimiento Civil, Administrativo e Laboral de Cuba; artigo 234 do CPC do Québec).
Outras experiências jurídicas, contudo, reconhecendo que a taxatividade da lei nesse assunto não se presta a solucionar a problemática que emerge da praxe, deixam em aberto os motivos que possibilitam a arguição de suspeição do magistrado.
Assim, o CPC do Japão, após estabelecer o rol das causas objetivas e subjetivas que propiciam a substituição do juiz (artigo 35), preceitua, no artigo 37, que, se ocorrerem circunstâncias que possam prejudicar a imparcialidade da decisão, as partes podem recusá-lo.
Na Alemanha também, apesar do minudente catálogo de situações emoldurado no § 41 do ZPO, determina o § 42 que: “Os juízes poderão ser recusados pelas mesmas razões pelas quais são excluídos por lei e sempre que exista perigo de parcialidade. A recusa por esse derradeiro fundamento poderá ser arguida quando existam motivos suficientes de desconfiança da imparcialidade do juiz”. Consoante importante precedente da Corte de Apelação de Karlsruhe, quando restarem comprovadas diferenças de caráter entre o juiz e o advogado de um dos litigantes, o julgador poderá ser recusado tendo-se em vista o “fundado temor de parcialidade”.
Reconhecendo acertada essa orientação, a lei processual da Itália prevê, entre as hipóteses de suspeição presumida, a intimidade notória do juiz com um dos procuradores atuantes no processo. Com redação deveras peculiar, dispõe o art. 51 do Codice di Procedura Civile que: “O juiz tem o dever de se abster:... 2) se ele ou sua mulher é parente até o quarto grau ou ligado por vínculo de filiação, ou é convivente ou comensal habitual de uma das partes ou de algum dos defensores; 3) se ele ou sua mulher litiga ou tem inimizade ou relação de crédito ou débito com uma das partes ou com algum dos defensores...”.
Verifica-se também que o CPC do Paraguai contempla, a esse respeito, no artigo 20, a mesma disciplina da legislação italiana.
Bem é de ver que estas últimas legislações encaram a fenomenologia do cotidiano social de modo bem mais realístico, uma vez que partem do correto pressuposto de que se infere inevitável presunção de suspeição do relacionamento juiz-advogado.
Abstraindo-se, no entanto, dessa verdade e traçando a distinção entre motivos de impedimento (artigo 134) e motivos de suspeição, o nosso CPC estabelece, no artigo 135, que se considera “fundada a suspeição de parcialidade do juiz, quando: I - amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer das partes; II - alguma das partes for credora ou devedora do juiz, de seus cônjuge ou de parentes destes, em linha reta ou na colateral até o terceiro grau; III - herdeiro presuntivo, donatário ou empregador de alguma das partes; IV - receber dádivas antes ou depois de iniciado o processo; aconselhar alguma das partes acerca do objeto da causa, ou subministrar meios para atender às despesas do litígio; V - interessado no julgamento da causa em favor de uma das partes”.
Em nenhum destes incisos, como se nota, preocupou-se o legislador em afastar o juiz quando relacionado ou inimigo do advogado de uma das partes.
É certo que o parágrafo único do artigo 135 faculta ao magistrado dar-se por suspeito “por motivo íntimo”, mas isto não significa, à evidência, que possa a parte arguir a suspeição decorrente da amizade íntima ou inimizade que porventura conotar o relacionamento do juiz da causa com o advogado da parte contrária.
Diante da supra aludida previsão legal, delineia-se uniforme, por via de consequência, a orientação da jurisprudência pátria no que se refere a essa questão, forte no argumento de que, gravíssima como é a arguição de suspeição, seus motivos geradores devem ser de direito estrito, taxativos, não podendo ser ampliados além daqueles consignados na própria lei. Nesse sentido, dentre outros, confira-se o julgamento proferido pela 3ª Turma do STJ, no Recurso Especial n. 600.737-SP, de relatoria do ministro Carlos Alberto Menezes Direito: “A simples antipatia entre advogado e juiz não pode dar ensancha à suspeição, pois pode o juiz, por motivo íntimo, julgar-se impedido se assim entender. A suspeição em casos de amizade íntima ou inimizade capital diz com a relação entre o juiz e as partes, o que não é o de que se cuida nestes autos”.
No entanto, como acima frisado, diante das vicissitudes da vida, dúvida não pode haver de que o relacionamento próximo ou, especialmente, a inimizade notória entre o juiz e o advogado da causa acarreta uma presunção objetiva de que o magistrado poderá se deixar influenciar por essa circunstância. Fácil é verificar que, entre nós, não são raras as desavenças entre juízes e advogados. A prática tem demonstrado que é o advogado que exerce a profissão em comarcas de primeira entrância quem sofre, mais de perto, as consequências do desentendimento com o juiz, gerador de prolongada inimizade.
Observo que, mais recentemente, durante a tramitação legislativa do Projeto do CPC perante a Câmara dos Deputados, atento a esta inexorável realidade, foi acolhida importante emenda àquele texto legal.
Com efeito, o nosso novo CPC, aprovado pelo Senado Federal no último dia 17 de dezembro, dispõe no artigo 145: “Há suspeição do juiz: I – amigo íntimo ou inimigo de qualquer das partes ou de seus advogados...”. Externo nesta oportunidade, a respeito desta significativa novidade, o meu voto de louvor ao legislador!
José Rogério Cruz e Tucci é
advogado, diretor e professor titular da Faculdade de Direito da USP e
ex-presidente da Associação dos Advogados de São Paulo.
Revista Consultor Jurídico
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