Entrevista Miguel Henrique Otero
Publicado por Roberto Macedo - 14 horas atrás
"Bolsa hoje, fome amanhã"
O
jornalista venezuelano vê nos planos de controle da imprensa no Brasil o
mesmo padrão do chavismo e diz que manter os pobres dependentes é
ruinoso, mas essencial ao populismo
O jornal venezuelano El
Nacional é o último de alcance nacional a resistir à repressão do
governo de Nicolás Maduro. Sem autorização para comprar bobinas de
papel, o jeito foi reduzir o número de páginas e contar com a
solidariedade de jornais estrangeiros. A matéria-prima, contudo, acaba
no fim do ano e o diário corre o risco de fechar. Seu proprietário e
editor, Miguel Henrique Otero, de 67 anos, resiste bravamente. O
estrangulamento imposto pelo chavismo por meio da restrição à compra de
papel e de ações judiciais derrubou a tiragem dominical do jornal,
fundado pelo avô de Otero em 1943, de 250000 para 100000 exemplares.
Otero comanda a publicação desde 1988. Se tiver de fechar as portas,
será o golpe final na liberdade de expressão no país.
O senhor vê semelhanças entre os caminhos trilhados pelo governo petista no Brasil e pelo chavismo na Venezuela?
Sim.
O Brasil está seguindo a tendência de uma parcela da América Latina de
caminhar em direção ao populismo autoritário. Esse modelo começa
confrontando o setor privado e logo passa a transbordar rumo à liberdade
de expressão e aos direitos humanos. O populismo autoritário também tem
como característica a intenção dos seus líderes de perpetuar-se no
poder. Para isso, eles modificam as leis, de preferência a Constituição
como um todo, para evitar a alternância de poder. Na Venezuela, por
exemplo, Chávez acabou com o limite de mandatos para presidente. Outra
forma de conseguir isso é garantir o apoio popular, o que é obtido com
políticas que distribuem à população comida e dinheiro. O problema é que
essa política não gera riqueza. Com os benefícios, o povo pode até
momentaneamente acreditar que sua condição melhorou, mas o fato é que
permanecerá pobre, porque não terá boas opções de emprego e a economia
ficará estagnada. Nas estatísticas, eles deixam de ser considerados
pobres porque recebem salário ou ajuda financeira adicional, mas a longo
prazo a ascensão social é nula. É o que na Venezuela chamamos de
"comida hoje, fome amanhã". Para esses governantes, manter a população
na pobreza é importante porque isso lhes garante a sustentação política
de que precisam. No Brasil, essa lógica ficou muito clara. No Norte,
onde estão muitos dos beneficiários do Bolsa Família,
o apoio ao governo é forte. No Sul, onde há uma classe média em
expansão e a economia é mais produtiva, as pessoas votaram no candidato
da oposição. Fica claro que grande parte da população brasileira está
condenada a ser mantida na pobreza, no que poderiam chamar de "bolsa
hoje, fome amanhã".
Qual é a origem desse modelo populista e autoritário?
Sem
dúvida, a inspiração é o ex-presidente venezuelano Hugo Chávez. Mas ele
não veio do nada. Chávez é uma criação do Foro de São Paulo (o encontro
de partidos e organizações de esquerda da América Latina que surgiu em
1990 de uma conversa entre o ex-presidente Lula e o ditador cubano Fidel
Castro). No fundo, é a ideologia castrista de supressão das liberdades
individuais não mais pela revolução armada, mas por eleições. Pode
parecer legítimo, mas não é. Quando estão na iminência de perder o
pleito, eles trapaceiam, violam os resultados e exigem reformas
políticas boas apenas para eles. São persistentes. Na reforma
constitucional tentada por Chávez em 2007, o presidente perdeu, mas logo
conseguiu o que queria de outra forma (em 2009, Chávez fez aprovar a
reeleição indefinida, que havia sido rejeitada antes, em referendo). O
uso da democracia para acabar com a democracia foi a estratégia comum
dos populistas na Venezuela, Nicarágua, Equador, Bolívia e Argentina.
Por essa lógica, quais seriam, a seu ver, os próximos passos do populismo no Brasil?
Provavelmente, dentro de quatro anos, o Brasil mudará a Constituição
para permitir a reeleição de Dilma Rousseff. Que usará a ameaça da
volta de Lula para conseguir o que pretende. A perpetuação no poder é
parte integrante do modelo populista totalitário, mesmo que isso não
possa ser feito descaradamente. Cristina Kirchner, na Argentina, não
teve como disputar uma terceira eleição, mas o poder, que já foi do
marido, Néstor, se depender dela, será passado ao filho, Máximo
Kirchner. O Brasil, por ser um país continental, talvez pareça mais
resistente ao populismo autoritário, mas o que se constata no seu país
não é nada animador.
Quais são as características comuns aos governos que, a exemplo da Venezuela, namoram com o modelo do populismo totalitário?
A
principal é reprimir a liberdade de expressão. Esses regimes
simplesmente não podem sobreviver com imprensa livre. A verdade é tóxica
para eles. Na Venezuela, a prioridade do governo de ter a hegemonia na
comunicação social foi explicitada no Plano da Pátria, programa de
governo de 2012 de Hugo Chávez. O objetivo do governo é ter o controle
total da informação. O máximo que esses governos admitem de um órgão de
informação é a neutralidade. Fazer críticas ou ter opinião diferente da
oficial está fora de cogitação.
O que o senhor entende por "neutro"?
Vou
usar um exemplo. Uma rádio no interior do país tinha programas com a
participação dos ouvintes, por telefone. O povo ligava e dava livremente
a opinião contra ou a favor do governo. Era um costume muito
tradicional nessa rádio. Hoje, essa estação eliminou todos os programas
de opinião. Não há mais a participação dos ouvintes. Só toca música. Foi
neutralizada.
A censura foi sempre assim com Chávez ou foi recrudescendo aos poucos?
Eles
são persistentes, podem até recuar quando sentem que estão mais fracos,
mas a marcha rumo à supressão da liberdade de expressão continua
sempre. Na Venezuela, o processo começou há quinze anos. Em 2004, veio a
Lei de Responsabilidade de Rádio e TV, conhecida como Lei Resorte. Que
permitiu a Chávez fechar estações de rádio e televisão que não obedeciam
à linha oficial. Aos poucos, o espectro de rádio e televisão foi quase
todo ocupado com programas de Chávez em cadeia nacional, pregações
intermináveis, em que ele se dedicava a ameaçar, insultar adversários e
inculcar sua visão de mundo nos ouvintes e telespectadores. A fase
seguinte foi aparelhar os tribunais de modo a facilitar o silenciamento
das vozes críticas, pois isso implica criar e aplicar leis de censura
que violam a Constituição.
No Equador e na Bolívia, o processo segue o mesmo padrão da Venezuela.
No Brasil, para violar o preceito constitucional da liberdade de
expressão, também foi preciso que um ministro do Tribunal Eleitoral
impedisse um veículo de comunicação de fazer publicidade da edição e
ainda o obrigasse a publicar um direito de resposta no seu site.
O El Nacional já passou por semelhante violência?
Cada
vez que revelamos corrupção ou algum desastre administrativo, a tática é
tentar nos desqualificar. O governo nem se preocupa mais em nos
desmentir ou negar a acusação.
Vocês sofrem muitas ameaças de processo?
Sim,
e nunca sabemos se as ameaças serão cumpridas ou não. De qualquer
forma, é algo que visa a assustar os jornalistas e produzir uma
autocensura inconsciente. Eles nos acusam de terrorismo e de sermos
inimigos do povo. Esse modo de agir foi implantado aqui pelos cubanos.
Eles doutrinaram o governo daqui a considerar qualquer revelação de
fatos que desmintam as versões oficiais como sendo fruto da agressão
imperialista e como tendo o objetivo de destruir o país.
Pelo que o senhor conhece da realidade brasileira, vamos pelo mesmo caminho?
No
Brasil, o aparelhamento das instituições, embora evidente, ainda não é
total como na Venezuela. Aqui, todos os burocratas com algum poder são
obrigatoriamente membros do partido do governo. Ninguém esconde isso.
Tudo é feito de forma descarada. Os membros do Supremo Tribunal de
Justiça foram escolhidos por Hugo Chávez e, depois, por Nicolás Maduro, e
obedecem cegamente aos desígnios do governo.
Além dos meios institucionais, como as leis e os tribunais, como se dá o controle da imprensa na Venezuela?
O
ataque direto a jornalistas tem aumentado. Somente neste ano foram
registradas 160 agressões. Muitos preferiram deixar o país. Entre os que
ficaram, a autocensura virou regra. Ninguém se atreve a dizer nada,
porque o governo pode cair em cima a qualquer hora. A opção que resta é
silenciar-se. Outra ferramenta usada é a compra de meios de comunicação
privados com dinheiro público. Ocorreu isso com Últimas Notícias, uma
cadeia de rádio, jornal e internet muito grande, e com o jornal El
Universal. Isso muitas vezes é feito sem que a identidade dos novos
donos seja divulgada. Mas todos sabem que o dinheiro é do governo.
Finalmente, há o estrangulamento pela falta de papel de imprensa. Em
primeiro lugar, o governo não autoriza a venda de dólares para que
possamos importar papel e imprimir as páginas. Há um ano e meio temos
usado o que tínhamos no nosso estoque. Cortamos suplementos. Hoje,
saímos com dezesseis páginas. Há um ano, eram 48. O jornal nunca foi tão
pequeno. Depois, passamos a contar com a solidariedade de jornais da
América Latina que nos emprestam bobinas.
Não há saídas legais para escapar dessas barreiras?
Como
o câmbio é controlado, as empresas precisam solicitar a compra de
dólares ao governo para importar matéria-prima. Se eles não dão os
dólares, não se pode importar nada. Durante muitos anos essa permissão
para comprar moeda estrangeira funcionou. Fazíamos a solicitação ao
governo, que nos autorizava os dólares. E nós importávamos o
papel-jornal. Há dezoito meses, eles pararam de atender às nossas
solicitações e começamos a protestar publicamente. Disseram que o país
havia entrado em crise e que o papel não era tão prioritário na lista de
importações. Depois, foi inventada uma importadora de papel, que nada
mais é do que uma gráfica que imprime dois jornais do governo. Eles têm
montanhas de bobinas, compram de fora tudo o que têm vontade, e as
utilizam para imprimir seus jornais chapa-branca e para fornecer a
veículos alinhados ao governo.
Maduro ganhou as últimas eleições
com uma diferença de apenas 1,5 ponto porcentual. Essa vitória por
raspão fez com que ele se tomasse ainda mais controlador da imprensa?
Claro
que sim. Chávez era carismático e podia justificar suas atitudes com
explicações variadas, que funcionavam. Maduro não tem a mesma força para
responsabilizar os outros pelos seus erros. Os venezuelanos não
acreditam nele, nem nos seus argumentos. Nem seus partidários gostam
dele. Assim como em todos os regimes autoritários, Maduro precisa de uma
imprensa complacente. Ele sabe que, ao contrário de Chávez, não
conseguirá se esquivar das denúncias e das críticas. Sem imprensa livre,
o regime se torna opaco, com maior capacidade de enganar os cidadãos
permanentemente. Uma das consequências mais deletérias é que a corrupção
e a impunidade se tornam espantosas. Sem imprensa livre, o governo pode
desrespeitar os direitos humanos mais elementares sem que isso traga
qualquer dano a sua imagem.
O governo de Caracas é abusivo?
Pergunte
ao oposicionista Leopoldo López. Ele foi preso sem provas, acusado de
fomentar um incêndio em San Cristóbal. As testemunhas foram unânimes em
afirmar perante o juiz que López não tinha nada a ver com o incêndio. A
outra acusação a López foi ainda mais absurda e kafkiana. O governo
recorreu a um especialista em semiótica, membro do partido chavista. Que
"provou" que Leopoldo López incitou a violência e o terror, mesmo não
tendo recorrido a nenhuma expressão violenta. O advogado de defesa quis
levar seu próprio especialista em semiótica com uma análise favorável a
López. O juiz não permitiu. Se o Brasil continuar no mesmo rumo, logo
coisas semelhantes poderão acontecer por ai.
Fonte: http://veja.abril.com.br/blog/rodrigo-constantino/tags/miguel-henrique-otero/
Colado do site JusBrasil
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