sábado, 23 de maio de 2015

Um milhão de dólares pela herança do povo Tupaiú

O magnífico acervo de 28 mil peças da Cerâmica Tupaiú despertou a cobiça de grandes colecionadores internacionais, um dos quais, George Victor, norte‐americano, chegou a fazer a vantajosa proposta de compra por um milhão de dólares. A transação, impedida pelas leis brasileiras, não chegou a consumar‐se. Recentes notícias, que precisam ser apuradas pelo poder nacional brasileiro, revelando que grupos indígenas estariam recebendo milhões de dólares de estrangeiros pela cessão de direitos sobre recursos naturais existentes em suas reservas, me motivou a escrever esta matéria e a republicar a que vem logo a seguir. Ontem como hoje registra‐se o interesse forasteiro sobre os recursos amazônicos em detrimento do interesse e o respeito por seus povos, tanto por parte de estrangeiros quanto por nós próprios, brasileiros. Uma das primeiras tarefas do recém‐criado Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós (IHGTap) deveria ser o resgate, ainda que parcial, de uma das belas heranças culturais dos povos amazônicos pré‐conquista: a cerâmica Tapajó ou Tupaiú, da qual alguns dos exemplares desenterrados nos últimos 50 anos acham‐se no Museu João Fona, em Santarém, à espera de maiores estudos sobre o seu significado. O povo que habitava a confluência dos rios Tapajós e Amazonas foi um dos mais cultos encontrados por espanhóis e portugueses no momento da invasão do mercantilismo ibérico ao continente americano. Ao mesmo tempo cultos e bravos, haja vista a descrição do padre Cristóbal de Acuña, em 1637, quando esse religioso e cronista espanhol anotou, durante o contato com o Tupaiús, a existência de um exército de 40 mil homens em armas e muito bem organizados. Além do mais, esse povo achava‐se – para a época e para as suas condições – em avançado estágio de progresso econômico, dominando técnicas agrícolas com enormes campos de algodão e milho, notando‐se também o cultivo de frutas, especialmente as pacovas com as quais produziam variados pratos que serviam com carne ou peixe. Já naquele momento histórico, os Tupaiú comercializavam com os Mura, ocupantes de uma região nas imediações do rio Madeira, trocando algodão in natura por peças de vestuário já elaboradas, além de outras mercadorias transportadas em grandes canoas. Já inauguravam uma forma de mercado, com a produção de excedentes para o comércio e satisfação de suas necessidades. Era também um povo que se organizava politicamente, próximo de formar aquilo que no Ocidente já se chamava de Estado moderno, com vários chefes regionais sob a liderança de uma espécie de rei, um dos quais foi Nurandaluguaburabara, cujo quartel general localizava‐se mais ou menos onde é a vila de Boim, no médio rio Tapajós. Foi esse povo que nos legou uma das mais impressionantes coleções de cerâmica, com uma variedade de formas, denotando que dominavam arte e inteligência. Supõe‐se que algumas das urnas encontradas nas últimas décadas não fossem funerárias, mas que poderia se tratar de recipientes para a produção de carne em conserva, do que se alimentavam nos períodos de escassez por enchentes grandes ou secas problemáticas. Entre as preciosidades desenterradas acha‐se aquilo que alguns pesquisadores chamam de pão de índio, isto é, blocos que eram capazes de guardar por longos períodos, enterrados, os derivados da mandioca. A seguir transcrevo uma reportagem que fiz em 1977 e que foi publicada no jornal O Estado de São Paulo, mostrando mais detalhes, inclusive a ambição de diversos estrangeiros em levar para outros países a coleção preciosa. Infelizmente a coleção de milhares de peças da Cerâmica Tupaiú foi depredada do acervo deixado pelo advogado Ubirajara Bentes, que incentivava escavações por pessoas não preparadas para isso e das quais comprava as “caretas”.

Eis a reportagem:
A impressão deixada há 14 anos no livro de registros do museu particular do advogado Ignácio Ubirajara Bentes de Souza, na cidade paraense de Santarém, sobre as 28 mil peças de cerâmica dos índios tapajós, pelo geólogo alemão Hans Gotha, da Universidade de Strelitz, coincide com o ponto de vista de centenas de outros visitantes, entre eles arqueólogos, museólogos e jornalistas, particularmente americanos e europeus. O especialista alemão enfatizou que “não conheço, em qualquer parte do mundo, coleção semelhante a esta, seja em museu (público), seja em acervo particular, pela sua quantidade, e pela sua arte”. A cerâmica dos primitivos habitantes da região hoje ocupada por Santarém, na confluência dos rios Amazonas e Tapajós, está sendo considerada como mais importante que a cultura marajoara e, possivelmente, uma das mais importantes do Brasil pré‐Colônia. Para um integrante de uma missão científica japonesa, que chegou a filmar a coleção do advogado Ubirajara Bentes para a TV de seu país, “esse acervo impressionante pode constituir‐se num passo largo para sairmos das ideias acadêmicas sobre as origens do ser humano”. E para o jornalista David St. Clair, que há mais de uma década esteve em Santarém, “esta é a mais incrível coleção da pré‐história amazônica que deve ser estudada por todos que se interessam pela América Latina”. O jornalista pergunta: “Quem sabe quais os novos trilhos que serão abertos pelo mistério de Santarém?”. Na impressão deixada por um casal de pesquisadores da National Geographic Society, de Washington, “não tínhamos encontrado uma coleção tão extraordinária em sete meses de viagem através da Amazônia, de sua nascente, no Peru, até Santarém”, ou ainda na observação do jornalista alemão Rainer Hutz, “depois de visitar a maioria dos locais arqueológicos da América do Sul, este parece ter sido o mais inesperado fim de uma viagem de descobertas”. Durante quase 40 anos Ubirajara Bentes dedicou‐se a colecionar peças da cerâmica dos Tapajós, em sua maioria curiosamente encontradas em escavações feitas nas próprias ruas da cidade. Na década de 50 ele passou a ser conhecido como “o comprador de caretas”, pois tanto ele próprio levava a efeito as escavações como comprava peças encontradas por outras pessoas. Muitas lendas formaram‐se a respeito do colecionador, entre elas a que dizia que as peças por ele procuradas continham ouro em seu interior. Na falta de estudos mais profundos, o próprio Ubirajara tenta estabelecer alguma teoria a respeito de seus achados. Ele acredita, por exemplo, que os índios Tapajós tenham mantido estreitas relações com os Maias, indo até mais longe ao afirmar que se trata de um mesmo povo que se ramificou. Essa dedução ele tira do fato de existirem algumas semelhanças entre a cerâmica dos dois povos. A coleção completa, que se compunha de 28 mil peças, apresentava urnas funerárias (em algumas delas foram encontradas ossadas), vasos de cariátides, vasos de gargalo, vasos globulares, pratos com adornos, vasos estilizados e pintados, ídolos grandes (de até 57 centímetros de altura) modelados em pedra, cachimbos, machados, peças de arte em geral, fósseis e exemplares dos famosos muiraquitãs, considerados poderosos amuletos, além de milhares de peças seriadas. Uma série de estatuetas de índios apresenta particular curiosidade: as imagens ostentam as duas mãos nos olhos ou nos ombros, ou sobre o peito ou no queixo ou nos joelhos, dando a sugestão de tratar‐se de gestos rituais. Antes mesmo da atividade febril do colecionador, casualmente, em 1923, o antropólogo alemão Curt Nimuendaju já havia encontrado algumas peças da cerâmica dos Tapajós. O ineditismo do achado levou‐o a divulgar as primeiras notícias sobre a herança indígena. A partir daí dezenas de outras divulgações foram feitas em jornais e revistas brasileiras e estrangeiras, despertando a cobiça de grandes colecionadores internacionais, um dos quais, George Victor, norte‐americano, chegou a fazer a vantajosa proposta de compra por um milhão de dólares, em 1966. A transação, evidentemente, impedida pelas leis brasileiras, não chegou a consumar‐se. Propostas escusas chegaram a ser feitas ao colecionador, como a que partiu de um grupo, também norte‐americano, que se propôs a retirar as melhores peças do país, utilizando‐se de pessoas vestidas de padre que, paulatinamente, transportariam o tesouro para o Paraguai e de lá para os Estados Unidos onde integraria uma exposição volante. Confessa o advogado Ubirajara que sempre desejou que sua coleção se transformasse em um museu da cidade ou pelo menos permanecesse no Pará. Dezenas de vezes ele a ofereceu a entidades culturais nacionais, universidades, pediu apoio ao governo do Estado e do Município, porém o descaso foi total. Em 1971 a visita de um grupo de peritos do Museu Arqueológico da Universidade de São Paulo viria motivar uma oferta concreta, considerada, na época, razoável pelo colecionador. A USP comprometeu‐se a pagar 300 mil cruzeiros por 25 mil das 28 mil peças existentes, evidentemente com o direito de selecionar o que havia de melhor e em melhor estado de conservação. Algum tempo depois a transação consumou‐se, porém Ubirajara Bentes de Souza confessa que “fui ludibriado”, depois que os homens da USP, através de artifícios, só lhe entregaram um cheque no valor de 170 mil cruzeiros, valor pelo qual terminou sendo vendida a melhor parte da coleção dos cultos Tapajós. As três mil peças restantes, muitas delas apenas pedaços de objetos não identificáveis, permaneceram na residência do advogado até a semana passada, depois que a recém‐fundada Sociedade Etnográfica e Cultural de Santarém obteve junto à municipalidade os cem mil cruzeiros exigidos pelo colecionador, para quem o acervo restante estava avaliado em 187 mil cruzeiros. Tais peças servirão agora de embrião para um museu indígena de Santarém. Para Ubirajara, os 40 anos de trabalho ininterrupto serviram para que hoje “eu seja um homem desencantado”. Vítima de um enfarte, aos 63 anos, muitos atribuem o mal a esse desencanto. “Minhas peças estão hoje esfaceladas e o museu com que tanto eu sonhei já é impossível”, desabafa. Agora, o presidente da Sociedade Etnográfica e Cultural de Santarém, Carlos Mendonça, promete tentar o que ele mesmo classifica de “quase impossível”, o retorno do museu da USP de algumas peças repetidas. Ele informa que lá existem 18 urnas funerárias em perfeito estado de conservação, enquanto as cinco existentes no incipiente museu de Santarém estão danificadas. Para Ubirajara, os agentes da USP agiram à maneira dos comerciantes, pois na exposição existente na capital paulista nem sequer existem referências a respeito de seu esforço em conseguir as peças. E mostra, como exemplo, certa reportagem que saiu em revista de circulação nacional, que mostrava o acervo da universidade paulista como o mais completo da América do Sul, porém sem a menor referência ao verdadeiro responsável pelos achados. Exposição apresenta objetos arqueológicos tapajônicos SANTARÉM – A Universidade Federal do Pará através do Programa de Pós‐graduação em Antropologia, em parceria com a Inside Consultoria Científica Ltda., abriu na quarta, dia 18 e expõe até o próximo dia 20 de maio, no Museu João Fona, a exposição “Um Porto, Muitas Histórias – Objetos Arqueológicos do Porto de Santarém e seus Contextos”. A entrada é gratuita. Com curadoria da professora Denise Schaan e de André dos Santos, a exposição é resultado de escavações realizadas no Porto de Santarém por arqueólogos da UFPA desde 2009. A mostra traz artefatos pertencentes ao povo tapajós, que habitou a região onde hoje se localizam os municípios de Santarém e Belterra e cuja ocupação remonta ao século X. Registros fotográficos das escavações também fazem parte da exposição, que conta parte da história indígena na região, ainda pouco conhecida devido a acontecimentos históricos e à falta de registros escritos.

Os arqueólogos encontraram fragmentos de vasilhas decoradas, estatuetas, objetos líticos, como lâminas de machados (para derrubar árvores), rodelas de fuso (para fiar) e calibradores (para fazer hastes de flechas), pingentes, alargador de orelha, contas de cerâmica e muitos outros objetos, além de um muiraquitã, pela primeira vez encontrado em uma escavação arqueológica.

PUBLICADO NA GAZETA DE SANTARÉM, EM 12 DE ABRIL DE 2012.
Disponível em: http://www.gazetadesantarem.com.br/cidade/um-milhao-de-dolares-pela-heranca-do-povo-tupaiu/. Acesso em: 23 maio 2015.

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