O
magnífico acervo de 28 mil peças da Cerâmica Tupaiú despertou a cobiça
de grandes colecionadores internacionais, um dos quais, George Victor,
norte‐americano, chegou a fazer a vantajosa proposta de compra por um
milhão de dólares. A transação, impedida pelas leis brasileiras, não
chegou a consumar‐se. Recentes notícias, que precisam ser apuradas pelo
poder nacional brasileiro, revelando que grupos indígenas estariam
recebendo milhões de dólares de estrangeiros pela cessão de direitos
sobre recursos naturais existentes em suas reservas, me motivou a
escrever esta matéria e a republicar a que vem logo a seguir. Ontem como
hoje registra‐se o interesse forasteiro sobre os recursos amazônicos em
detrimento do interesse e o respeito por seus povos, tanto por parte de
estrangeiros quanto por nós próprios, brasileiros. Uma das primeiras
tarefas do recém‐criado Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós
(IHGTap) deveria ser o resgate, ainda que parcial, de uma das belas
heranças culturais dos povos amazônicos pré‐conquista: a cerâmica Tapajó
ou Tupaiú, da qual alguns dos exemplares desenterrados nos últimos 50
anos acham‐se no Museu João Fona, em Santarém, à espera de maiores
estudos sobre o seu significado. O povo que habitava a confluência dos
rios Tapajós e Amazonas foi um dos mais cultos encontrados por espanhóis
e portugueses no momento da invasão do mercantilismo ibérico ao
continente americano. Ao mesmo tempo cultos e bravos, haja vista a
descrição do padre Cristóbal de Acuña, em 1637, quando esse religioso e
cronista espanhol anotou, durante o contato com o Tupaiús, a existência
de um exército de 40 mil homens em armas e muito bem organizados. Além
do mais, esse povo achava‐se – para a época e para as suas condições –
em avançado estágio de progresso econômico, dominando técnicas agrícolas
com enormes campos de algodão e milho, notando‐se também o cultivo de
frutas, especialmente as pacovas com as quais produziam variados pratos
que serviam com carne ou peixe. Já naquele momento histórico, os Tupaiú
comercializavam com os Mura, ocupantes de uma região nas imediações do
rio Madeira, trocando algodão in natura por peças de vestuário já
elaboradas, além de outras mercadorias transportadas em grandes canoas.
Já inauguravam uma forma de mercado, com a produção de excedentes para o
comércio e satisfação de suas necessidades. Era também um povo que se
organizava politicamente, próximo de formar aquilo que no Ocidente já se
chamava de Estado moderno, com vários chefes regionais sob a liderança
de uma espécie de rei, um dos quais foi Nurandaluguaburabara, cujo
quartel general localizava‐se mais ou menos onde é a vila de Boim, no
médio rio Tapajós. Foi esse povo que nos legou uma das mais
impressionantes coleções de cerâmica, com uma variedade de formas,
denotando que dominavam arte e inteligência. Supõe‐se que algumas das
urnas encontradas nas últimas décadas não fossem funerárias, mas que
poderia se tratar de recipientes para a produção de carne em conserva,
do que se alimentavam nos períodos de escassez por enchentes grandes ou
secas problemáticas. Entre as preciosidades desenterradas acha‐se aquilo
que alguns pesquisadores chamam de pão de índio, isto é, blocos que
eram capazes de guardar por longos períodos, enterrados, os derivados da
mandioca. A seguir transcrevo uma reportagem que fiz em 1977 e que foi
publicada no jornal O Estado de São Paulo, mostrando mais detalhes,
inclusive a ambição de diversos estrangeiros em levar para outros países
a coleção preciosa. Infelizmente a coleção de milhares de peças da
Cerâmica Tupaiú foi depredada do acervo deixado pelo advogado Ubirajara
Bentes, que incentivava escavações por pessoas não preparadas para isso e
das quais comprava as “caretas”.
Eis a reportagem:
A impressão
deixada há 14 anos no livro de registros do museu particular do
advogado Ignácio Ubirajara Bentes de Souza, na cidade paraense de
Santarém, sobre as 28 mil peças de cerâmica dos índios tapajós, pelo
geólogo alemão Hans Gotha, da Universidade de Strelitz, coincide com o
ponto de vista de centenas de outros visitantes, entre eles arqueólogos,
museólogos e jornalistas, particularmente americanos e europeus. O
especialista alemão enfatizou que “não conheço, em qualquer parte do
mundo, coleção semelhante a esta, seja em museu (público), seja em
acervo particular, pela sua quantidade, e pela sua arte”. A cerâmica dos
primitivos habitantes da região hoje ocupada por Santarém, na
confluência dos rios Amazonas e Tapajós, está sendo considerada como
mais importante que a cultura marajoara e, possivelmente, uma das mais
importantes do Brasil pré‐Colônia. Para um integrante de uma missão
científica japonesa, que chegou a filmar a coleção do advogado Ubirajara
Bentes para a TV de seu país, “esse acervo impressionante pode
constituir‐se num passo largo para sairmos das ideias acadêmicas sobre
as origens do ser humano”. E para o jornalista David St. Clair, que há
mais de uma década esteve em Santarém, “esta é a mais incrível coleção
da pré‐história amazônica que deve ser estudada por todos que se
interessam pela América Latina”. O jornalista pergunta: “Quem sabe quais
os novos trilhos que serão abertos pelo mistério de Santarém?”. Na
impressão deixada por um casal de pesquisadores da National Geographic
Society, de Washington, “não tínhamos encontrado uma coleção tão
extraordinária em sete meses de viagem através da Amazônia, de sua
nascente, no Peru, até Santarém”, ou ainda na observação do jornalista
alemão Rainer Hutz, “depois de visitar a maioria dos locais
arqueológicos da América do Sul, este parece ter sido o mais inesperado
fim de uma viagem de descobertas”. Durante quase 40 anos Ubirajara
Bentes dedicou‐se a colecionar peças da cerâmica dos Tapajós, em sua
maioria curiosamente encontradas em escavações feitas nas próprias ruas
da cidade. Na década de 50 ele passou a ser conhecido como “o comprador
de caretas”, pois tanto ele próprio levava a efeito as escavações como
comprava peças encontradas por outras pessoas. Muitas lendas formaram‐se
a respeito do colecionador, entre elas a que dizia que as peças por ele
procuradas continham ouro em seu interior. Na falta de estudos mais
profundos, o próprio Ubirajara tenta estabelecer alguma teoria a
respeito de seus achados. Ele acredita, por exemplo, que os índios
Tapajós tenham mantido estreitas relações com os Maias, indo até mais
longe ao afirmar que se trata de um mesmo povo que se ramificou. Essa
dedução ele tira do fato de existirem algumas semelhanças entre a
cerâmica dos dois povos. A coleção completa, que se compunha de 28 mil
peças, apresentava urnas funerárias (em algumas delas foram encontradas
ossadas), vasos de cariátides, vasos de gargalo, vasos globulares,
pratos com adornos, vasos estilizados e pintados, ídolos grandes (de até
57 centímetros de altura) modelados em pedra, cachimbos, machados,
peças de arte em geral, fósseis e exemplares dos famosos muiraquitãs,
considerados poderosos amuletos, além de milhares de peças seriadas. Uma
série de estatuetas de índios apresenta particular curiosidade: as
imagens ostentam as duas mãos nos olhos ou nos ombros, ou sobre o peito
ou no queixo ou nos joelhos, dando a sugestão de tratar‐se de gestos
rituais. Antes mesmo da atividade febril do colecionador, casualmente,
em 1923, o antropólogo alemão Curt Nimuendaju já havia encontrado
algumas peças da cerâmica dos Tapajós. O ineditismo do achado levou‐o a
divulgar as primeiras notícias sobre a herança indígena. A partir daí
dezenas de outras divulgações foram feitas em jornais e revistas
brasileiras e estrangeiras, despertando a cobiça de grandes
colecionadores internacionais, um dos quais, George Victor,
norte‐americano, chegou a fazer a vantajosa proposta de compra por um
milhão de dólares, em 1966. A transação, evidentemente, impedida pelas
leis brasileiras, não chegou a consumar‐se. Propostas escusas chegaram a
ser feitas ao colecionador, como a que partiu de um grupo, também
norte‐americano, que se propôs a retirar as melhores peças do país,
utilizando‐se de pessoas vestidas de padre que, paulatinamente,
transportariam o tesouro para o Paraguai e de lá para os Estados Unidos
onde integraria uma exposição volante. Confessa o advogado Ubirajara que
sempre desejou que sua coleção se transformasse em um museu da cidade
ou pelo menos permanecesse no Pará. Dezenas de vezes ele a ofereceu a
entidades culturais nacionais, universidades, pediu apoio ao governo do
Estado e do Município, porém o descaso foi total. Em 1971 a visita de um
grupo de peritos do Museu Arqueológico da Universidade de São Paulo
viria motivar uma oferta concreta, considerada, na época, razoável pelo
colecionador. A USP comprometeu‐se a pagar 300 mil cruzeiros por 25 mil
das 28 mil peças existentes, evidentemente com o direito de selecionar o
que havia de melhor e em melhor estado de conservação. Algum tempo
depois a transação consumou‐se, porém Ubirajara Bentes de Souza confessa
que “fui ludibriado”, depois que os homens da USP, através de
artifícios, só lhe entregaram um cheque no valor de 170 mil cruzeiros,
valor pelo qual terminou sendo vendida a melhor parte da coleção dos
cultos Tapajós. As três mil peças restantes, muitas delas apenas pedaços
de objetos não identificáveis, permaneceram na residência do advogado
até a semana passada, depois que a recém‐fundada Sociedade Etnográfica e
Cultural de Santarém obteve junto à municipalidade os cem mil cruzeiros
exigidos pelo colecionador, para quem o acervo restante estava avaliado
em 187 mil cruzeiros. Tais peças servirão agora de embrião para um
museu indígena de Santarém. Para Ubirajara, os 40 anos de trabalho
ininterrupto serviram para que hoje “eu seja um homem desencantado”.
Vítima de um enfarte, aos 63 anos, muitos atribuem o mal a esse
desencanto. “Minhas peças estão hoje esfaceladas e o museu com que tanto
eu sonhei já é impossível”, desabafa. Agora, o presidente da Sociedade
Etnográfica e Cultural de Santarém, Carlos Mendonça, promete tentar o
que ele mesmo classifica de “quase impossível”, o retorno do museu da
USP de algumas peças repetidas. Ele informa que lá existem 18 urnas
funerárias em perfeito estado de conservação, enquanto as cinco
existentes no incipiente museu de Santarém estão danificadas. Para
Ubirajara, os agentes da USP agiram à maneira dos comerciantes, pois na
exposição existente na capital paulista nem sequer existem referências a
respeito de seu esforço em conseguir as peças. E mostra, como exemplo,
certa reportagem que saiu em revista de circulação nacional, que
mostrava o acervo da universidade paulista como o mais completo da
América do Sul, porém sem a menor referência ao verdadeiro responsável
pelos achados. Exposição apresenta objetos arqueológicos tapajônicos
SANTARÉM – A Universidade Federal do Pará através do Programa de
Pós‐graduação em Antropologia, em parceria com a Inside Consultoria
Científica Ltda., abriu na quarta, dia 18 e expõe até o próximo dia 20
de maio, no Museu João Fona, a exposição “Um Porto, Muitas Histórias –
Objetos Arqueológicos do Porto de Santarém e seus Contextos”. A entrada é
gratuita. Com curadoria da professora Denise Schaan e de André dos
Santos, a exposição é resultado de escavações realizadas no Porto de
Santarém por arqueólogos da UFPA desde 2009. A mostra traz artefatos
pertencentes ao povo tapajós, que habitou a região onde hoje se
localizam os municípios de Santarém e Belterra e cuja ocupação remonta
ao século X. Registros fotográficos das escavações também fazem parte da
exposição, que conta parte da história indígena na região, ainda pouco
conhecida devido a acontecimentos históricos e à falta de registros
escritos.
Os arqueólogos encontraram fragmentos de vasilhas
decoradas, estatuetas, objetos líticos, como lâminas de machados (para
derrubar árvores), rodelas de fuso (para fiar) e calibradores (para
fazer hastes de flechas), pingentes, alargador de orelha, contas de
cerâmica e muitos outros objetos, além de um muiraquitã, pela primeira
vez encontrado em uma escavação arqueológica.
PUBLICADO NA GAZETA DE SANTARÉM, EM 12 DE ABRIL DE 2012.
Disponível em: http://www.gazetadesantarem.com.br/cidade/um-milhao-de-dolares-pela-heranca-do-povo-tupaiu/. Acesso em: 23 maio 2015.
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