Novos gargalos
Prepare-se
leitor que algum dia vier a precisar do Judiciário para restaurar um
direito violado por uma operadora de telefonia, um banco, um plano de
saúde ou alguém que lhe provocar um acidente de trânsito ou qualquer
tipo de dano. Esqueçam a redução do número de recursos. Esqueçam,
também, medidas mais duras contra aqueles que atrasam o processo. O
projeto de novo Código de Processo Civil não traz nada disso. Aguardando
a votação no Senado Federal das alterações trazidas pela Câmara dos
Deputados, o substitutivo do PLS 166, de 2010, consegue a proeza de não
só evitar mudanças substanciais no modo de ser dos rituais já caducos,
como também traz inovações bisonhas e ressuscita antigas práticas que só
retardam a marcha dos processos. Fugindo do juridiquês, para que o
leigo possa entender o que está em gestação, o exame do PLS, na sua
redação atual, mostra que serão mantidos os recursos que já existem e
também criados novos casos, seja para ampliar os embargos de declaração,
seja pela introdução de figuras curiosas.
A ideia de reforma do
Código de Processo Civil poderia ter sido uma oportunidade de reduzir os
vários procedimentos existentes e simplificá-los para três (um
individual, com rito semelhante ao dos juizados especiais, um coletivo e
um sumário documental, como o do mandado de segurança), padronizando
rotinas com ganho de produtividade; porém, não só perdeu esta chance
como manteve vários procedimentos especiais. Poderia ter adotado
soluções já exitosas, como a irrecorribilidade das interlocutórias
(exemplo dos processos trabalhistas e dos juizados) ou depósito recursal
(para privilegiar o credor), mas preferiu repetir o modelo do Código de
1973, já com 40 anos de idade, e introduzir novos gargalos.
Um
exemplo claro de retrocesso é a introdução de um “embargos infringentes
de ofício” disfarçado no artigo 955, pelo qual, havendo um voto
divergente, o órgão terá de chamar outros desembargadores para garantir
possibilidade de mudança do julgamento. Ou seja, não basta o julgamento
pelo juiz de primeiro grau e nem a confirmação por dois dos três
desembargadores; agora, o processo terá de ser pausado para que se
chamem outros dois desembargadores para que analisem tudo de novo. Ao
invés de simplificar um recurso, complicaram e ainda o tornaram mais
devagar. Mais um retrocesso recursal é a previsão geral de efeito
suspensivo às apelações.
Outras mudanças curiosas, que isoladas
até não chamariam tanto a atenção, mas que em conjunto provocarão atraso
fantástico nas mãos de quem queira prolongar o processo são [1] a
determinação de que as sentenças terão não só de resolver o processo
(como o fazem hoje em dia), mas também a responder longos questionários,
ainda que protelatórios e irrelevantes ao julgamento do processo
(artigo 499), e [2] a necessidade de dar vista aos advogados de
fundamentos que estes não tenham trazido ao processo (artigo 10 e 504).
Em resumo, ao contrário do que acontece atualmente — em que o juiz julga
o caso conforme a Constituição e a Lei —, no futuro, ao ter em mãos o
processo para sentenciar, o juiz terá não só de aplicar a lei aos fatos,
como também terá de verificar se as normas e os julgados dos tribunais
foram citados pelas partes, pois, se não o foram, é obrigado a reabrir o
processo para que estes possam examiná-los e se pronunciar previamente,
gerando, na prática, uma espécie de recurso antecipado contra a decisão
antes mesmo de ela ser proferida (atrasando o processo) e, ainda, a
chance de mais novos argumentos e teses que terão de ser examinadas
(ainda que irrelevantes ao caso) e, que, por sua vez, poderão determinar
nova vista, com novas manifestações, etc.
Ou seja, a oportunidade
para um verdadeiro ciclo infinito para advogados que, percebendo que
perderão a causa, tenham capacidade de gerar incidentes para evitar o
fim útil. Num exemplo grosseiro — mas possível diante do projeto — num
acidente de trânsito comum, mesmo com todas as provas dizendo que o réu
foi o culpado, se este alegar que um marciano provocou o acidente, o
juiz terá de examinar este “argumento”. E se o juiz embasar sua decisão
num julgado do STF que não foi citado no processo, terá de abrir vista
às partes para debaterem esta decisão, dando nova oportunidade para
novas teses, e assim por diante. Como não há sanção adequada à
litigância de má-fé, o processo andará em círculos, tal qual um cachorro
tentando morder o próprio rabo.
Aliás, nada de relevante alterado
na sistemática da imposição de multas ao litigante de má-fé, que, como
regra geral, depois do processo terminar, serão executadas como dívida
ativa (artigo 77, parágrafo 3º). Ou seja, condenado durante o processo, a
parte terá ainda mais interesse em evitar o fim deste, pois só pagará a
sanção ao final. Isso se pagar, pois, como é da praxe forense, as
execuções fiscais de valores inferiores a limites fixados pelo Executivo
acabam sendo arquivadas. Se quisesse mesmo reduzir as chicanas
processuais, o projeto teria autorizado multas maiores — e progressivas —
bem como a sua cobrança antecipada.
Curiosamente, também contra a
efetividade do processo, ou seja, prejudicando aquele que teve seus
direitos violados e busca reparação na Justiça, mas dando mais chances
aos devedores, o projeto de CPC inova ao criar um incidente de
desconsideração da personalidade jurídica (artigo 133) (dando tempo ao
fraudador esconder seus bens até que este incidente se resolva),
inclusive para os juizados especiais (artigo 1.074) e também proíbe que
sejam dadas liminares para bloquear o dinheiro ou aplicação financeira
do devedor (artigo 298, parágrafo único).
Houve várias outras
mudanças aparentemente pequenas, mas que gerarão no mínimo incoerência
lógica, e, na prática, atrasos ao processo, tais como a inovação que
começou interessante, mas terminou esdrúxula: a redistribuição do ônus
da prova, isto é, a possibilidade de o juiz mudar o dever de provar de
uma das partes para a outra (artigo 380); e complicado ficou porque se o
juiz mudou o ônus da prova por existir dificuldade para a parte, o
código previu, de forma curiosa, que não poderá fazê-lo se este ônus
ficar excessivamente difícil para a outra parte; ou seja, se autor e réu
disserem que não têm como fazer a prova, teremos outro ciclo contínuo
de debates.
Diga-se de passagem que há flagrante
inconstitucionalidade de produção da prova antecipada contra a União na
Justiça Estadual (artigo 388, parágrafo 4º), outra medida que gerará
prejuízo prático a diversas pessoas até que venha uma decisão final do
STF.
Uma alteração na Câmara que produzirá flagrante injustiça é a
inversão da capacidade de o juiz verificar os pedidos de gratuidade de
justiça. Se antes o juiz poderia determinar que a parte que pede
gratuidade de justiça deva comprovar a sua renda e suas despesas; agora,
se a parte contrária não pedir, o juiz está impedido de fazê-lo (artigo
99, parágrafo 1º); logo, como infelizmente ocorre várias vezes na
prática, se uma empresa notoriamente conhecida como lucrativa ou
profissional de alta renda solicitar que lhe sejam pagas todas as
despesas e a outra parte não perceber, o Estado (e o contribuinte) terão
de suportar este ônus financeiro.
O regramento dos conciliadores e
mediadores é outra medida que produzirá grandes prejuízos e da qual já
se antevê a multiplicação de mecanismos de fraudes. Isso porque o
projeto cria a proeza de instituir um cadastro aberto para qualquer um
se inscrever — bastando ter feito curso a ser pago pelo próprio Estado
(artigo 168, parágrafo 1º) — que serão indicados de forma aleatória para
atuar nos processos (artigo 168, parágrafo 2º), em regra em local
diverso e longe da fiscalização do juízo (artigo 166, parágrafo 2º) e de
forma confidencial (artigo 167, parágrafo 1º). Melhor receita para
abrir as portas às fraudes contra a população menos conhecedora de
direitos não há! Por desconhecer a prática do que ocorre no Brasil, o
projeto aparentemente não permite a conciliação ou mediação por juízes
(artigo 166, parágrafo 2º), ignorando vários exemplos de sucesso nesta
área, tais como milhares de conciliações em SFH oriundas de experiências
de sucesso originadas em 2003 pela Justiça Federal da 4ª Região, o
início dos juizados de pequenas causas em 1982, por obra de juízes
estaduais de Rio Grande (RS), a conciliação nas ações de desapropriação
para duplicação da BR-101 e tantas outras. Não se nega que possam atuar
conciliadores e mediadores, mas vedar a participação dos juízes e querer
que aqueles atuem de forma sigilosa, sem fiscalização, é, infelizmente,
abrir as portas para a fraude. Basta uma singela pesquisa na internet
pelos termos “fraude juiz arbitral” ou “picarbitragem” e são apontados
desdobramentos que vão desde apreensão de centenas de carteiras de “juiz
arbitral” (inclusive possibilitando porte de arma de fogo), vendas de
cursos ou expedição de citações e intimações com ameaça de condução
coercitiva. Não é à toa que o CNJ, no passado, foi acionado pela OAB
justamente para investigar entidades deste quilate; entendendo ser
ilegal o uso de carteiras funcionais, utilização de armas da república e
denominação de juiz ou tribunal, o CNJ encaminhou para o Ministério
Publico cópias daquelas acusações (CNJ, PP 0006866-39.2009.2.00.0000).
Uma
das grandes “novidades” que surgiriam como novo Código já são previsões
que existem: a suspensão de processos que tratam de matéria conhecida
no STF como repercussão geral e no STJ como recurso repetitivo. Além de
nãos serem mais uma novidade — e por isso não justificarem todo um novo
código — estes institutos, na prática, representam um problema prático
que ainda não está equacionado. O primeiro deles, que já acontece
diariamente, é a suspensão de milhares de processos deixando as partes a
aguardar uma solução que poderá levar anos pelo STF. Como o número de
questões em repercussão geral admitidos pelo STF (524, ou seja, 69,4%
dos pedidos) é bem maior do que o número julgado (185, apenas 35,37%), a
perspectiva é a de que as pessoas levem anos aguardando uma solução. O
exemplo mais claro disso é a pendência do exame da eficácia, ou não, dos
equipamentos de proteção para evitar o reconhecimento de tempo de
atividade para aposentadoria especial: há milhares de processos
aguardando e pessoas esperando para saber se vão, ou não, se aposentar. O
segundo problema é que, se e quando julgadas cada uma destas questões,
haverá a necessidade de avaliar em cada processo qual a repercussão do
julgado do STF/STJ, bem como verificar as consequências individualizadas
— imagine, caro leitor, no exemplo de processos previdenciários parados
por vários anos, milhares de situações sendo analisados uma a uma para
verificar se em cada um deles calcular o tempo que resultou do julgado e
verificar se houve outro(s) pedido(s) de aposentadoria concedido(s)
neste intervalo de tempo para fazer a compensação de valores devidos?
Aquilo que poderia ser feito pouco a pouco terá de ser feito em lote,
ocupando todos os juízes e servidores por tempo incalculável. E apesar
dos problemas já perceptíveis em pouco tempo, esta sistemática adotada
no STF e no STJ será reproduzida aos tribunais!
É bem verdade que
tais circunstâncias não decorrem do projeto em si, mas elas são um claro
sinal dos problemas que surgem com reformas feitas com pensamento
teórico e pouco pragmático. Neste passo, não se pode deixar de lamentar
que, ao contrário de outros países realmente federativos, em que o
Direito pode e deve se atentar às circunstâncias de cada lugar, o Brasil
se constitui num estado cada vez mais centralizado. Isso gera um
paradoxo: a mesma Constituição que exalta o princípio federativo (artigo
18 e artigo 60, parágrafo 4º, inciso I) e reconhece as desigualdades
regionais que precisam ser reduzidas (artigo 3º, inciso III), prevê um
Tribunal Superior para manter uma uniformização da interpretação do
direito federal — STJ — e um mecanismo para cassar decisões que tenham
aplicado a lei de forma diferente — Recurso Especial (artigo 105, inciso
III, alínea ‘c’). Contudo, como imaginar uma aplicação totalmente igual
para a regra de que o tempo de serviço exige prova material (artigo 55,
parágrafo 3º, Lei 8213/1991) na região metropolitana de São Paulo e
para as populações ribeirinhas do Amazonas, que sequer têm certidões de
nascimento? Como pressupor que uma linha de pobreza imaginária de renda
per capita seja a mesma para Brasília e para o interior mineiro de
Itinga, no coração do Vale do Jequitinhonha, com uma das menores rendas
do país? Os crimes de proteção dos costumes, o reconhecimento de
“contratos verbais” e outros fatos sociais devem ter a mesma
interpretação em cidades de 10 mil habitantes, no interior do país, que é
dada nas capitais? A aplicação da lei deve desconhecer que vivemos num
país com tantas desigualdades econômicas, sociais, educacionais e de
oportunidades?
Para que não se diga que todas as “inovações” são
ruins, há itens que poderão auxiliar, como a previsão de gravação
audiovisual das audiências (artigo 374, parágrafo 5º) — a exemplo do que
ocorre atualmente nos processos penais — e uma regulamentação da
fixação de honorários advocatícios (artigo 85), que, porém, poderiam ter
sido inseridos no atual CPC sem criar todo um novo diploma legal para
isso.
Por fim, sobrevoando as reflexões apresentadas, é possível
traçar algumas conclusões. A primeira é a de o projeto de novo Código de
Processo Civil não trará mudanças estruturais simplificadoras do “modo
de ser” do processo, optando por mudanças no geral cosméticas, de
aparência. A segunda é a de que trará mudanças que, em vez de acelerar
os processos, irão criar mais incidentes e demoras na resolução, em
prejuízo ao cidadão que teve seu direito violado. O projeto será lançado
com festa — mas nada alterará — e produzirá diversos livros novos e
palestras ou cursos a serem feitos. Em conclusão, “muito barulho por
nada”, parodiando famosa peça de Shakespeare; se aprovado, o novo CPC
confirmará a máxima de que nada é tão ruim que não possa piorar.
Fonte: ConJur
Fonte: ConJur
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