Opinião
O
movimento do juiz Sergio Moro, com apoio de magistrados e
investigadores, contra projeto de lei que define crimes de abuso de
autoridade tem viés reacionário e corporativo.
Se medidas de combate à corrupção, ao "caixa 2" e ao enriquecimento ilícito são necessárias, o Brasil precisa de providências contra o abuso de poder. A lei atual é pífia. Editada em 1965, nos primórdios da ditadura, pune a prisão ilegal com singela pena de multa.
O sistema normativo e judicial de proteção das liberdades constitucionais está enferrujado. Em 2015, dois PMs foram condenados, com base no Código Militar de 1969, a um mês e seis dias de detenção por forjar flagrante contra jovem manifestante das passeatas de 2013: mesmo sem oferecer resistência, foi algemado e conduzido pelas ruas até a delegacia, em situação vexatória, e ainda "plantaram" um rojão em sua mochila. Como tudo foi filmado, a farsa logo se revelaria. Mas a condenação irrisória (os policiais permaneceram na ativa) configura incentivo aos excessos.
O episódio mostra o desequilíbrio do sistema penal brasileiro. A pena de quem rouba uma correntinha de ouro pode ser de cinco anos e quatro meses de prisão em regime fechado. O policial que surrupia indevidamente a liberdade da pessoa está simbolicamente submetido a juízo de "pequenas causas".
Abordagens policiais arbitrárias e buscas indiscriminadas, sobretudo em bairros periféricos das cidades, embaraços ilegais e agressões ao trabalho da imprensa e à liberdade de expressão: as violações são cotidianas e a tolerância com a truculência, infinita.
Se o projeto de lei tem iniciativa suspeita (seu autor, o presidente do Senado, assim como diversos parlamentares, é alvo de investigações criminais), é inegável a necessidade de reforma legislativa capaz de instituir um regime pautado pela civilidade republicana.
O texto proposto pelo senador Renan Calheiros tem sérios defeitos. Aproveita a sistemática imprecisa da legislação atual. A apuração dos crimes depende de iniciativa da vítima normalmente vulnerável e passível de intimidação. Estabelece delitos impróprios e mal definidos. Entre outros equívocos técnicos, prevê pena de um a quatro anos para quem constrange preso para obtenção de "favorecimento sexual", criando uma modalidade de estupro, digamos, mais amena.
De fato, o texto cria embaraços indevidos para a atuação do Ministério Público, por exemplo, quando ameaça punir com pena de um a cinco anos quem der início à "persecução penal sem justa causa fundamentada". Para corrigir abusos ou desvios e para conter acusações imotivadas existem o Judiciário e o habeas corpus. A proposta, despida de lógica, é inconstitucional.
Mas os defeitos do projeto não poderiam ser corrigidos? O estabelecimento de normas e procedimentos não é essencial para a vida democrática? Não é o momento de tocar nesta ferida?
Seria auspicioso ver Sérgio Moro emprestar sua credibilidade para a revisão da ineficaz Lei 4.898/65 com o empenho com que defende medidas de combate à corrupção.
Imaginar que, em nome de suposta eficiência investigativa, policiais e autoridades podem estar isentos de responsabilidade é um pensamento que protege quem não merece proteção.
Se medidas de combate à corrupção, ao "caixa 2" e ao enriquecimento ilícito são necessárias, o Brasil precisa de providências contra o abuso de poder. A lei atual é pífia. Editada em 1965, nos primórdios da ditadura, pune a prisão ilegal com singela pena de multa.
O sistema normativo e judicial de proteção das liberdades constitucionais está enferrujado. Em 2015, dois PMs foram condenados, com base no Código Militar de 1969, a um mês e seis dias de detenção por forjar flagrante contra jovem manifestante das passeatas de 2013: mesmo sem oferecer resistência, foi algemado e conduzido pelas ruas até a delegacia, em situação vexatória, e ainda "plantaram" um rojão em sua mochila. Como tudo foi filmado, a farsa logo se revelaria. Mas a condenação irrisória (os policiais permaneceram na ativa) configura incentivo aos excessos.
O episódio mostra o desequilíbrio do sistema penal brasileiro. A pena de quem rouba uma correntinha de ouro pode ser de cinco anos e quatro meses de prisão em regime fechado. O policial que surrupia indevidamente a liberdade da pessoa está simbolicamente submetido a juízo de "pequenas causas".
Abordagens policiais arbitrárias e buscas indiscriminadas, sobretudo em bairros periféricos das cidades, embaraços ilegais e agressões ao trabalho da imprensa e à liberdade de expressão: as violações são cotidianas e a tolerância com a truculência, infinita.
Se o projeto de lei tem iniciativa suspeita (seu autor, o presidente do Senado, assim como diversos parlamentares, é alvo de investigações criminais), é inegável a necessidade de reforma legislativa capaz de instituir um regime pautado pela civilidade republicana.
O texto proposto pelo senador Renan Calheiros tem sérios defeitos. Aproveita a sistemática imprecisa da legislação atual. A apuração dos crimes depende de iniciativa da vítima normalmente vulnerável e passível de intimidação. Estabelece delitos impróprios e mal definidos. Entre outros equívocos técnicos, prevê pena de um a quatro anos para quem constrange preso para obtenção de "favorecimento sexual", criando uma modalidade de estupro, digamos, mais amena.
De fato, o texto cria embaraços indevidos para a atuação do Ministério Público, por exemplo, quando ameaça punir com pena de um a cinco anos quem der início à "persecução penal sem justa causa fundamentada". Para corrigir abusos ou desvios e para conter acusações imotivadas existem o Judiciário e o habeas corpus. A proposta, despida de lógica, é inconstitucional.
Mas os defeitos do projeto não poderiam ser corrigidos? O estabelecimento de normas e procedimentos não é essencial para a vida democrática? Não é o momento de tocar nesta ferida?
Seria auspicioso ver Sérgio Moro emprestar sua credibilidade para a revisão da ineficaz Lei 4.898/65 com o empenho com que defende medidas de combate à corrupção.
Imaginar que, em nome de suposta eficiência investigativa, policiais e autoridades podem estar isentos de responsabilidade é um pensamento que protege quem não merece proteção.
Luís Francisco Carvalho Filho é advogado e colunista do jornal Folha de S.Paulo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário