O
ex-ministro do STF, Ayres Britto, comunga comigo da necessidade de formação
humanística na magistratura nacional, que eu estendo a todo o agente do
direito (juiz, promotor, advogado e auxiliares da justiça) no artigo
"Repensando o Processo", publicado neste blog (http://joseronaldodiascampos.blogspot.com.br/) há algum tempo.
Veja a seguir a resposta dada pelo jurista à Revista Consultor Jurídico:
Conjur:
o que o senhor está dizendo é que o grande avanço que falta no
Judiciário não é no nível institucional. É no nível pessoal, da
magistratura?
Ayres:
eu diria que sim. O Judiciário hoje é muito bem informado. É muito bem
preparado tecnicamente. Mas, não é bem formado humanisticamente. O que
você vai fazer das informações depende da sua formação. O Judiciário
como política pública tem que colocar ênfase na formação do magistrado. O
juiz que faz de sua caneta um pé-de-cabra é o meliante número um, sem
nenhuma dúvida. O estrago que ele causa na confiabilidade e na
autoestima coletiva é maior do que quando esse estrago é perpetrado por
qualquer outro agente público. O que você vai fazer de tantas
informações técnicas, refinadas de todos os códigos e da Constituição
depende da sua formação. Se você não for uma pessoa sensível, não
percebe. Sensibilidade também é um requisito de desempenho. Sem isso,
você não vai perceber que há dramas humanos naqueles autos. O juiz tem
que abrir, mesmo, as janelas do Direito para o mundo circundante. Ele
não pode se trancar numa torre de marfim. E tem que buscar inspiração
nos códigos e, também, na viva vivida. Nos códigos está a vida pensada, a
vida teórica. Na sociedade, nos jurisdicionados, está a vida vivida.
1.
A jurisdição: poder-dever do Estado-juiz de dizer a vontade da norma,
ou melhor, do Direito, aos casos concretos, quando provocada
exterioriza-se por intermédio do processo, instrumento indispensável ao
exercício da função/atividade de julgar.
2.
E o processo? Esse complexo de atos coordenados progressivamente
objetivando a justa, tempestiva e efetiva composição da lide, como deve
ser entendido? Creio, mais que um instrumento formal de dicção do
direito, o processo deve ser compreendido como um verdadeiro instrumento
ético de realização de justiça, escopo maior da jurisdição.
3. Portanto, em que deve consistir, basicamente, a preocupação do operador do Direito, hodiernamente?
a)
em compreender que o processo, que reside nos autos, relata, registra
um drama social, um drama humano: tem vida, sentimento, chora, sangra e
morre, não se resumindo num complexo de atos inertes e frios (petições,
requerimentos, arrazoados, documentos, provas etc), num simples número
nas hostes cartoriais (estantes bolorentas do foro), mera estatística
promocional, fonte de receita estatal e/ou renda para advogado;
b)
em exigir formação humanística dos agentes do direito (juiz,
advogado, promotor e auxiliares da justiça), que devem se preocupar,
voltar suas atenções às partes e interessados, verdadeiros destinatários
do serviço jurídico a ser prestado eficientemente e a bom termo pelo
Estado. Afinal, o processo é meio, não um fim em si mesmo.
4.
O que se pode observar, na realidade prática, é que a prestação
jurisdicional, às vezes, não passa de mero serviço monopolizado, caro,
moroso e nem sempre de boa qualidade (justo e eficaz) prestado pelo
Estado.
5.
Na concepção revolucionária do acesso à justiça, como já dizia Mauro
Cappelletti, na década de 80, a atenção do processualista se amplia para
uma visão tridimensional do direito. Sob esta nova perspectiva, o
direito não é encarado apenas do ponto de vista dos produtores do
serviço jurídico, mas, principalmente, pelo ângulo dos consumidores do
direito e da justiça, enfim, sob o ponto de vista dos usuários dos
serviços processuais. O cidadão.
6.
A narrativa kafkaniana d’O Processo, ao parodiar os desvios e abusos
comuns ao seu desenvolvimento, faz nos ver a necessidade deste
transcorrer segundo regras claras, impessoais, democraticamente
estabelecidas, com transparência, assegurados o contraditório, a ampla
defesa e a sua razoável duração. O temor de Kafka serve de contraponto à
crucial importância do processo, garantidor de direitos fundamentais.
7.
Josef K., protagonista da obra literária referenciada, não entendeu
nada do seu processo, não soube sequer do que ou por quem foi acusado e
julgado, embora sempre lhe garantissem que tudo tinha razão de ser.
8.
Kafka alerta-nos do perigo de se enxergar o direito no automatismo
burocrático que se esconde no escuro dos autos. A fundamentação da
decisão, imprescindível por imperativo constitucional, quando não assume
o compromisso ético-democrático como referência, pode remeter a um
legalismo formal desconectado, capaz de oprimir e negar a vida. O
recebimento da denúncia, por exemplo, nem sempre é fundamentado, nem
permite recurso, o que traz sérias consequências ao acusado, que às
vezes responde a ação penal sem justa causa, fadada ao insucesso. O
simples fato de se responder a um processo criminal, que dura uma
eternidade, já se traduz numa sanção, com marcas indeléveis na vida do
cidadão, destacadamente quando absolvido ao final. A prisão cautelar,
qualquer que seja, só pode ser admitida em situação extremada, mesmo a
temporária (para averiguação na fase de inquérito), que abomino e vem
sendo banalizada por operações policiais sensacionalistas.
9.
Portanto, kafkiano é o processo que opera sem entender o que faz,
cumprindo regras por serem regras, sem controle de constitucionalidade,
olvidando a premissa de que o direito apoia-se nos critérios do justo e
do equitativo.
10.
Enfim, é assim que gente responsável e culta acaba se transformando em
servidores bonachões, descompromissados e indiferentes, que aos poucos
acabam promovendo, sem perceber, males gigantescos, adequados aos
aparelhos agigantados que os empregam e os transformam.
O
post traduz, em parte, colação arrumada e acrescida de obras literárias
lidas pelo subscritor, objetivando a reflexão do leitor, que não
precisa ser advogado para compreender a mensagem