Publicado por Luiz Flávio Gomes
O STF (17/02/16 – HC 126.292), ao permitir a execução provisória de uma condenação penal após o duplo grau de jurisdição (ou seja: depois que o fato, as provas e o direito tenham sido reexaminados em duas instâncias), deu um recado contundente: tende a aplicar a “tolerância zero” contra as bandalheiras da delinquência econômica cleptocrata (DEC), leia-se, contra as pilhagens, corrupção e outras roubalheiras dos poderosos que governam a nação ou que contam com nefasto poder de influência sobre essa governança (desde logo, poderes econômicos e financeiros).
Esse grito de basta da Justiça criminal brasileira, a rigor, vem muito tarde. A descrença no país já chegou ao fundo do poço. Todas as máximas autoridades da nação estão sob investigação ou com denúncia já oferecida. Todos os ex-presidentes (Lula, FHC, Collor e Sarney) estão sob o fogo cruzado de dezenas de delações e acusações. Tudo indica que teremos mais uma década perdida, com um mundo de “bandoleiros da República” (expressão do ministro Celso de Mello) desfrutando de imunidade penal.
Mas, sinceramente, não creio que o assunto da execução provisória da pena esteja encerrado (muito menos no STF). Há dezenas de problemas jurídicos pendentes que deverão ser refletidos nos próximos dias e meses. Mais: a decisão da Corte Máxima foi preferida num habeas corpus (7 votos a 4), de forma muito veloz e emotiva (seguindo-se a onda do momento), sem ter havido qualquer tipo de debate nacional prévio com os operadores jurídicos, que majoritariamente não concordam (em defesa da democracia) com qualquer tipo de transigência com o princípio da presunção de inocência[1].
Outro detalhe: a decisão do STF não tem validade vinculante para todos os juízes. A polêmica encarniçada (que já vinha se incendiando no âmbito do Senado Federal, a partir da Lava Jato) somente acaba de ter início dentro do STF, que chamou para si uma responsabilidade que vai ter que passar obrigatoriamente pelo Congresso Nacional.
Para se ter uma ideia da gravidade da delinquência econômica cleptocrata (DEC), há uma pesquisa da Fiesp que diz que a corrupção no Brasil consome anualmente de 2% e 4% do PIB. Isso significa que desde o momento da nossa redemocratização (1985) essa bandalheira funesta de danos sociais incalculáveis significou o surrupio de um PIB inteiro (5 trilhões de reais). Claro, a maior parcela desse “PIB roubado” foi para os bolsos da delinquência econômica cleptocrata, daí a reação contundente da Justiça (que já mandou prender inclusive um senador, em exercício).
Mas são incontáveis os problemas jurídicos que a decisão do STF terá que superar (reitero: o assunto só começou a ser discutido dentro dele). A decisão quer “pegar os ricaços ou poderosos da Lava Jato” (que devem mesmo ser punidos com o devido rigor correspondente à culpabilidade de cada um e conforme o Estado de Direito).
Recorde-se que a execução imediata da pena vinha sendo pedida pelo juiz Moro e pelo Ministério Público Federal, para combater a impunidade da delinquência econômica cleptocrata (dos poderosos). A modificação da jurisprudência do próprio STF foi pensada para “pegar” os poderosos, no entanto, vale para todos. Se se firmar, será “erga omnes” (valerá para ricos e pobres). Pior para os pobres que não podem pagar grandes advogados para levar suas demandas aos tribunais superiores. As defensorias públicas competentes, como sabemos, não estão bem estruturadas no país.
Mais: de acordo com a FGV, é grande a quantidade de reformas das decisões de segundo grau (cerca de 10% no STF e perto de 30% no STJ). Isso sinaliza que muitos réus são condenados indevidamente nesses tribunais. O problema não está relacionado tanto com a análise dos fatos e das provas, sim, reside na aplicação incorreta do direito. Cada juiz e cada tribunal tem uma visão de mundo (Weltanschauung). Mas nem todas correspondem ao Estado de Direito vigente.
Como serão indenizados os réus que cumprem execução provisória de uma pena e são postos em liberdade pelos tribunais superiores? Não seria o caso de se criar um fundo para instituir uma fiança indenizatória? No cível, que cuida de interesses privados (em regra), a execução provisória é permitida mediante o pagamento de uma caução (de uma fiança). Quando se trata da liberdade humana isso não existe. A liberdade vale menos que os interesses privados?
O STF vem revogando as prisões preventivas do Moro e está buscando saídas engenhosas para não desproteger a sociedade. A sociedade brasileira, de fato, não pode continuar nas mãos desses vândalos “bandoleiros da República”, que se apropriam do dinheiro público como se fosse propriedade privada. O STF vem aplicando as medidas cautelares alternativas do CPP.
Esse não seria também o caminho a ser seguido na “execução provisória de uma pena” contra quem ainda é presumido inocente? Não seria o caso de o Congresso Nacional disciplinar tudo isso, incluindo no rol de medidas alternativas outras situações, como a proibição de contratar com o poder público, que foi descaradamente violada com a medida provisória 703? Não seria o caso de se incrementarem as medidas que visam ao empobrecimento de todos os que se enriquecem indevidamente, pilhando o patrimônio público?
O STF tem que se posicionar com independência frente a todas as bandalheiras da delinquência econômica cleptocrata (DEC). Mas tem que superar as dificuldades com que se depara, preservando o Estado de Direito.
A CF-88 diz que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Logo, qualquer tipo de execução provisória de uma sentença tem que ter caráter cautelar. É disso que está cuidando o Senado Federal, em emenda constitucional. Está buscando as situações que justificariam essa execução provisória. Esse debate não pode ser interrompido. A decisão do STF não pode ser interpretada como uma decisão castradora da discussão. O Legislativo não está impedido de continuar a polêmica (até achar uma solução razoável).
Quanto ao cumprimento imediato da pena depois de dois graus de jurisdição reconhecendo a culpabilidade do agente o entendimento do STF se alinha com o que se passa praticamente no mundo todo civilizado. Ocorre que as constituições desses países não dizem que “ninguém pode ser considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença condenatória” (grifei).
A Convenção Americana diz que a presunção de inocência vale até que a culpabilidade do réu seja reconhecida em dois graus de jurisdição. Praticamente no mundo todo é assim. A presunção de inocência é derrubada quando provas válidas, valoradas dentro do devido processo, reconhecem a culpabilidade do agente. Isso é o que deveria constar da Constituição brasileira. Mas não foi o caso. E agora?
Mais: o próprio STF já havia admitido a validade dos recursos extraordinários para impedir o trânsito em julgado, apesar de não terem efeito suspensivo. Criou-se uma determinada cultura (neocolonialista) de respeito enorme em relação à presunção de inocência. Que não condiz com a cultura de outros países. Os poderosos não querem saber de ir para a cadeia. Pimenta Neves demorou 11 anos para iniciar o cumprimento da sua pena por um assassinato: precisa dizer algo mais? Usou mais de 15 recursos para protelar o início da execução da pena. Não há Judiciário no mundo que suporte tudo isso. Tampouco a sociedade concorda com os privilégios dos abastados.
Uma emenda constitucional, sem afastar o núcleo essencial da presunção de inocência, é a única capaz para iluminar o assunto. Houve precipitação na decisão do STF (na decisao de 17/02/16), mas não no seu espírito: as bandalheiras da delinquência econômica cleptocrata (dos poderosos), dentro da lei, devem ser tratadas com todo rigor correspondente à culpabilidade de cada réu, levando em conta inclusive o status privilegiado do agente poderoso (sua personalidade e suas condições pessoais, nos termos do art. 59 do CP) para o efeito de agravamento das suas penas.
Penso que o esforço do STF no sentido de dar efetividade à certeza do castigo é válida. Mas é preciso superar os problemas jurídicos que uma execução provisória enseja. O Legislativo está tentando fazer isso (e é por esse caminho que temos que marchar).
Não se pode esquecer (insista-se) que mesmo o réu sendo condenado em duas instâncias pode haver “erro judicial”. Se o novo pensamento do STF preponderar (o melhor seria continuar a discussão do tema no Legislativo), para se evitar a injustiça aberrante de se mandar alguém para a cadeia (logo depois do duplo grau) em casos escatológicos (claramente equivocados), o correto seria prever um habeas especial (de via rapidíssima) para essa situação (que teria prioridade sobre todos os processos, incluindo os demais habeas corpus).
Claro, também isso depende do Legislativo. Como também deve-se discutir a suspensão da prescrição depois que a culpabilidade do réu é reconhecida em duas instâncias. Há, como se vê, um mundo de questionamentos e ideias. A decisão do STF não pode interromper esse processo. Não é de se descartar a possibilidade de alguns ministros mudarem seus pontos de vista.
O movimento criminal repressivo desencadeado com a Lava Jato está nos sugerindo um certo nivelamento entre plebeus e poderosos (aplaudido pela população), transmitindo o recado de que a Justiça é contra todos. A busca pela observância da igualdade perante a lei (e substancial também, na medida das desigualdades meritocráticas), num país cleptocrata extremamente desigual, é um valor positivo. Mas também é muito relevante o que está escrito na Constituição. A Justiça, por não ser órgão de investigação, não pode ser apenas “contra” todos; acima de tudo, deve ser “para todos”. Tolerância zero contra os corruptos da delinquência econômica cleptocrata, dentro da lei.
[1] Ver http://www.conjur.com.br/2016-fev-17/advogados-stf-curvou-opiniao-pública-antecipar-pena, consultado em 18/02/16.
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