sábado, 29 de setembro de 2012

A (de)formação humanística nos concursos públicos



Todos sabem que, com o advento da famosa Resolução 75 do Conselho Nacional de Justiça, em 2009, os concursos públicos para a carreira da magistratura passaram a conter questões dissertativas relacionadas a “noções gerais de Direito e formação humanística”. Tal eixo temático é composto de cinco disciplinas: (a) sociologia do Direito, (b) psicologia judiciária, (c) ética e estatuto jurídico da magistratura nacional, (d) filosofia do Direito e (e) teoria geral do Direito e da política.

Desde então, nenhuma voz se levantou para denunciar o verdadeiro monstro que se criou no “universo dos concursos jurídicos”. Na semana passada, Lenio Streck publicou na ConJur (clique aqui para ler) uma forte — e pertinente — crítica à “bibliografia” que vem surgindo nos últimos anos para atender esta nova fatia do mercado editorial.

Trata-se de um sistema perverso, que se retroalimenta. Na verdade, não sabemos o que veio primeiro: Se foram os livros, que se baseiam nas questões dos concursos; ou se foram as questões dos concursos, que ensejaram a publicação destes livros. De todo modo, isto também não importa, uma vez que a crise do ensino jurídico é autorreferencial. De um lado, os livros são de péssima qualidade (para dizer o mínimo), não dando conta da complexidade das disciplinas propedêuticas. De outro, as questões evidenciam que os próprios examinadores desconhecem os conteúdos que exigem dos candidatos.

A título ilustrativo, trago quatro exemplos dos concursos da magistratura do trabalho — todos relacionados ao tema da interpretação do Direito —, para que não restem quaisquer dúvidas a respeito da (de)formação humanística promovida, via reflexa, pela Resolução 75/09 do CNJ:

Questão 1 do XXVI Concurso Público para Provimento de Cargo de Juiz do Trabalho Substituto do TRT da 15ª Região: “Discorra sobre hermenêutica. Aplicação de normas e de princípios constitucionais e a atuação do juiz trabalhista. Dê 2 (dois) exemplos concretos: um referente à interpretação e aplicação de normas e outro à interpretação e aplicação de princípios constitucionais, apresentando os respectivos fundamentos.”


Vejamos. Discorrer sobre hermenêutica permite que o candidato delimite os aspectos que pretende abordar (origem, evolução, escolas, etc.). Na sequência, porém, ele se vê constrangido a distinguir normas e princípios. Mais do que isto: A questão pede que o candidato exemplifique, de um lado, a maneira através da qual se dá a interpretação e aplicação de normas; e, de outro, a interpretação e aplicação de princípios. O pressuposto do examinador, obviamente, é de que os princípios não são normas. Ledo engano. Tudo indica que a pretensão do examinador, no fundo, era estabelecer a tradicional distinção conceitual entre regras e princípios — ambos entendidos como espécies normativas (isto está lá em Robert Alexy (para citar um autor conhecido de todos no Brasil) —, a fim de que o candidato respondesse que as primeiras se subsumem, enquanto os segundos se ponderam (o que também é discutível na doutrina contemporânea).

Questão 5 do XI Concurso Público para Provimento de Cargos de Juiz do Trabalho Substituto do TRT da 24ª Região: “Sob a perspectiva constitucional, responda: (a) Como deve proceder o Juiz do Trabalho Substituto, ao examinar determinado caso concreto, diante de normas de interpretação polissêmica ou plurissignificativa? (b) Tal análise pode ser por ele levada a efeito, apesar da cláusula de reserva de plenário?”

Aqui, a questão exige que o candidato responda como o juiz deve atuar quando se deparar com normas cujo texto comporta mais de uma interpretação. Ocorre que, desde o positivismo normativista, todos sabem que as normas jurídicas são vagas e ambíguas. Kelsen trouxe a ideia de “moldura” da norma e revolveu o problema conferindo discricionariedade aos juízes. Interpretar, para ele, é um ato de vontade. Hart, por sua vez, usou a figura da “zona da franja”, subscrevendo a mesma delegação aos juízes. Por outro lado, Dworkin combate a discricionariedade positivista, sustentando a tese da existência de respostas corretas no Direito. Tal debate — que parte da diferença entre texto e norma — inaugura uma nova etapa dos estudos de teoria do Direito.

O objetivo do examinador, todavia, era bem mais singelo: bastava responder que, nestes casos, a interpretação deve observar o “princípio da proteção”, voltado à aplicação da norma mais benéfica para o trabalhador. Para completar, o desdobramento da questão envolve matéria de controle difuso de constitucionalidade, exigindo que o candidato demonstre saber que o juiz singular não se submete à reserva de plenário (art. 97, CF).
Questão 6 do VI Concurso Público para Provimento de Cargo de Juiz do Trabalho Substituto do TRT da 19ª Região: “Disserte sobre o processo de desenvolvimento e características dos direitos humanos no sistema global contemporâneo. Aborde os principais princípios de hermenêutica dos direitos humanos. Há princípios próprios à hermenêutica dos direitos sociais? Em caso positivo, quais seriam e quais os significados desses princípios.”

Está é uma das piores de todos os tempos. Superada a parte da questão relativa ao sistema de direitos humanos, o examinador indaga sobre os “princípios de hermenêutica dos direitos humanos”. Como se isto não bastasse, ainda pergunta se os direitos sociais teriam uma hermenêutica própria e quais princípios a orientariam... Tudo indica que, ao menos para o examinador, hermenêutica é o mesmo que metodologia, técnica, cânone, tal qual se acreditava no século XIX. Seguindo esta lógica, haveria diversas hermenêuticas: uma para os direitos sociais, outra para os direitos individuais, talvez uma terceira para os direitos privados e assim por diante. Aposto que distinções/classificações deste jaez podem ser facilmente encontrada nos livros de preparação para concursos...
 
Questão 6 do XVIII do Concurso Público para Provimento de Cargo de Juiz do Trabalho Substituto do TRT da 14ª Região: “Quais as hipótese em que se aplica a interpretação conforme a Constituição?”

Quando li a questão, confesso que fiquei em dúvida. Tal perplexidade decorre da ideia de que, ao aplicar as normas, devemos sempre buscar sua interpretação em conformidade com a Constituição. Caso o examinador estivesse se referindo à técnica da “interpretação conforme a Constituição” — prevista no parágrafo único do artigo 28 da Lei 9.868/99 —, a resposta não seria diversa. Moral da história: de uma maneira ou de outra, penso que a resposta deveria ser: a interpretação conforme a Constituição deve ser aplicada sempre que possível, isto é, em todas as hipóteses, especialmente quando a constitucionalidade da lei depender da atribuição de determinado sentido.

Tudo isto me faz lembrar, na verdade, a famosa história de Frankestein, ou o moderno Prometeu, escrita no início do século XIX por Mary Shelley e que rendeu diversas adaptações para o cinema. Como se sabe, o enredo envolve um jovem cientista que, obcecado pela busca do segredo da vida, dedica-se à geração de um ser humano, em seu laboratório, mas termina por criar um monstro. O único problema é que esta criatura restou abandonada no mundo, e, ao final, levou seu criador à morte.

André Karam Trindade é doutor em Teoria e Filosofia do Direito (Roma Tre/Itália), mestre em Direito Público (Unisinos) e professor universitário.
Revista Consultor Jurídico, 29 de setembro de 2012

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