1) Uma breve introdução. Uma longa caminhada de discordâncias...
Famílias paralelas não existem. Em termos
sociológicos, com a amplitude que a noção de família ganha, qualquer
reunião de pessoas vinculadas pelo afeto (em qualquer de suas acepções)
pode ser uma família. Se eu tenho um grande amigo, eu chamo de meu brother, voilà, temos uma família. Se eu chamo o meu cão de meu bebê, voilà, temos uma família.
Em sentido jurídico, o termo "famílias paralelas" denota equívoco conceitual. Há muitos anos escrevi sobre o tema na Revista Brasileira de Direito Civil, volume 2, out/dez de 2014 [1].
Transcrevo alguns trechos dessa reflexão de 2014:
"Famílias
simultâneas é o termo cunhado pela doutrina para indicar uma situação
em que uma pessoa, não necessariamente o homem, convive com outra
pessoa, não necessariamente uma mulher, em dois núcleos distintos e
simultâneos. É o caso clássico da literatura em que um homem que muito
viaja tem dois núcleos familiares distintos em localidades distintas.
Para a delimitação teórica é importante compreender que a pessoa tem
dois núcleos distintos em que todos os membros componentes destes
núcleos não residem sob o mesmo o teto".
Seguem
exemplos que utilizam o homem como centro da vida familiar simultânea
apenas pelo fato de serem estes os casos trazidos a julgamento e que
serão discutidos a seguir: a) homem que é casado com determinada mulher
em Salvador, migra para o Rio de Janeiro e se casa com outra mulher,
pois em sua certidão de nascimento não fora anotado o casamento
anterior; b) homem que é casado com uma mulher em São Paulo e, em Porto
Alegre, convive com outra mulher de maneira pública, contínua e
duradoura; c) homem que, na mesma cidade, tem duas casas e em uma mora
com sua esposa e filhos, mas também passa parte do dia ou da noite na
casa de outra mulher com quem tem filhos; d) homem casado que mora com
sua mulher, mas tem relação afetiva e sexual com outro homem com quem
convive de maneira pública, contínua e duradoura.
Não
tenho dúvidas em afirmar que em todos os exemplos o homem tem duas
famílias. Também não tenho dúvidas em afirmar que a proteção
constitucional dos filhos implica igualdade de todos, independentemente
de sua origem, e todos os filhos terão a ampla e integral proteção que o
Direito lhes confere.
Contudo,
com relação às pessoas maiores e capazes que mantém uma relação de
afeto, com comunhão de vida, seja essa relação hétero ou homoafetiva, o
Direito de Família, em tese, não tem qualquer aplicação, pois se trata
de concubinato, expressamente excluído das formas de criação de família.
A relação entre concubinos será regida pelo Direito das Obrigações, ou
seja, mediante prova do esforço comum o patrimônio adquirido por um dos
concubinos poderá ser partilhado [2].
Entretanto, o Direito tempera a regra do artigo 1727 com o princípio da boa-fé [3].
Essa
solução não é nova para o Direito de Família. É historicamente adotada
para a hipótese de casamento inválido que produz efeitos ao cônjuge de
boa-fé. É a putatividade que o Direito de Família adota como forma de
não punir aquele que desconhecia o vício ou a mácula que inquinava o
próprio casamento. A ignorância ou desconhecimento do fato (portanto a
situação é efetivamente de boa-fé subjetiva) garante a concessão dos
efeitos do casamento válido. Quem agiu de má-fé não tem a mesma sorte
(mesmo destino): o casamento não produz efeitos para ele.
Mas,
se a pessoa tiver conhecimento de que o homem com quem convive mantém
outra relação simultânea, ou seja, é casada com outro homem ou outra
mulher e, tendo conhecimento desse fato, com ele convive, em razão da
má-fé nenhum direito terá. É uma relação familiar concubinária excluída
pela lei dos efeitos do Direito de Família.
2) A decisão do STF que, por 6 votos a 5, afastou a noção equivocada de famílias paralelas no direito brasileiro
A ação julgada pelo STF, nas palavras do voto-vencedor do Ministro Alexandre de Moraes, "trata-se
de ação de reconhecimento de sociedade de fato homoafetiva, com pedido
de declaração de efeitos previdenciários, proposta pelo ora recorrente
em face de pessoa já falecida, com quem ele teria mantido convivência
comum entre os anos de 1990 e 2002, quando se deu o óbito".
No
caso concreto, houve o reconhecimento judicial da existência de união
estável do falecido com uma mulher e, posteriormente, requereu-se o
reconhecimento de uma segunda união estável, agora homoafetiva, para que
o "companheiro" do falecido fizesse jus ao benefício previdenciário
decorrente da morte.
Em
suma, João tem união estável com Maria e, após a morte de João, Pedro
requer o reconhecimento de uma segunda união estável para fins
previdenciários.
É interessante notar que o acórdão do TJ-SE reconhece que "não
é possível o reconhecimento da relação homoafetiva, mesmo que sob a
roupagem de sociedade de fato, como pleiteado, pois o ordenamento
jurídico brasileiro, cujo sistema rege-se pelo princípio da monogamia,
não admite a existência simultânea de mais de uma entidade familiar, nos
moldes do artigo 226, §3º, da Constituição Federal e do artigo 1723 do
Código Civil".
Há
na decisão do tribunal de Sergipe afronta à decisão do STF datada de
2011 (ADPF 132/RJ e ADI 4277), que reconheceu que a união estável
homoafetiva e a heteroafetiva têm idênticos efeitos jurídicos? A
resposta é negativa. O que se debateu nos autos foi a possibilidade de
existência de duas uniões estáveis paralelas independentemente dessas
ocorrem entre um homem e uma mulher, ou um homem e outro homem ou uma
mulher e outra mulher.
Perfeitas as palavras do ministro Alexandre de Moraes: "Ao
reconhecer a validade jurídico constitucional do casamento civil ou da
união estável por pessoas do mesmo sexo, não chancelou a possibilidade
da bigamia, mas sim conferiu a plena igualdade".
E mais:
"Pode-se
afirmar que uma das Turmas do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL concluiu pela
impossibilidade de reconhecimento de união estável em que um dos
conviventes estivesse paralelamente envolvido em casamento ainda válido,
sendo aquela relação, portanto, enquadrada no artigo 1.727 do Código
Civil, que se reporta à figura da relação concubinária (as relações não
eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem
concubinato )".
É
possível se falar em monogamia para as pessoas que estão em união
estável? A monogamia não é regra que só se aplica ao casamento?
Notem o que defendi no artigo de 2004:
"A
monogamia é um limite mínimo trazido pelo ordenamento para afastar do
Direito de Família, certas relações afetivas. Poder-se-ia argumentar que
a monogamia não está entre os elementos necessários à configuração da
união estável. Logo, a união estável plural não encontraria óbice legal,
não estaria abarcada pelo limite do mínimo.
Nesse ponto, merece nota o fundamento dado pelo STJ quanto à questão [4]: com efeito, uma sociedade que apresenta como elemento estrutural a monogamia não pode atenuar o dever de fidelidade — que integra o conceito de lealdade e respeito mútuo —
para o fim de inserir no âmbito do Direito de Família relações afetivas
paralelas e, por consequência, desleais, sem descurar que o núcleo
familiar contemporâneo tem como escopo a busca da realização de seus
integrantes, vale dizer, a busca da felicidade.
A lealdade como dever decorrente da união
estável (artigo 1724 do CC) e a fidelidade como dever do casamento
(artigo 1566 do CC) são óbices para o reconhecimento de uniões
poligâmicas para fins do Direito de Família. Não se trata, aqui, de
confundir os planos da existência e da eficácia. Se é verdade que os
deveres estão no plano da eficácia e que a deslealdade não faz com que o
casamento ou a união estável deixem de existir, há um impeditivo ético
do qual o Direito de socorre para fazer da monogamia um valor
inconteste. O argumento se repete.
A lei indica um mínimo que obsta o
reconhecimento dos efeitos do direito de família às situações de
poligamia ou uniões simultâneas de três ou mais pessoas".
A
decisão do STF não deixa dúvidas de que a leitura que fiz em 2004 é
efetivamente aquela que faz a maioria dos ministros do STF:
"Ocorre,
porém, que um relevante e imprescindível encargo os permeia: a
unicidade de vínculo entre os partícipes, sejam esses cônjuges ou
companheiros, já que 'o Direito brasileiro, à semelhança de outros
sistemas jurídicos ocidentais, adota o princípio da monogamia, segundo o
qual uma mesma pessoa não pode contrair e manter simultaneamente dois
ou mais vínculos matrimoniais', sob pena de se configurar a bigamia,
tipificada inclusive como crime previsto no artigo 235 do Código Penal.
Dessa forma, em que pesem os avanços na dinâmica e na forma do
tratamento dispensado aos mais matizados núcleos familiares, movidos
pelo afeto, pela compreensão das diferenças, respeito mútuo, busca da
felicidade e liberdade individual de cada qual dos membros, entre outros
predicados, que regem inclusive os que vivem sob a égide do casamento e
da união estável, subsiste em nosso ordenamento jurídico
constitucional os ideais monogâmicos, para o reconhecimento do casamento
e da união estável, sendo, inclusive, previsto como deveres aos
cônjuges, com substrato no regime monogâmico, a exigência de fidelidade
recíproca durante o pacto nupcial (artigo 1.566, I, do Código Civil)" (grifo do autor).
O
que reconheceu o STF? Que a monogamia é um valor que permeia todas as
relações familiares no Direito brasileiro. Que a monogamia, sob a forma
de fidelidade (casamento) ou lealdade (união estável) é valor fundamente
do Direito de Família no Brasil.
Essa
decisão do STF reconduz o Direito de Família a suas bases jurídicas e
sociais. Jurídicas porque a monogamia para todos os modelos familiares é
um valor fundante da ordem jurídica brasileira. Sociais porque, ainda
que alguns juristas discordem com ênfase, é historicamente monogâmica a
família brasileira como tal protegida pelo ordenamento.
A quem interessa dar direitos aos concubino ou concubina do homem ou da mulher casados? Vejamos.
Se
uma pessoa é casada ou convive em união estável e um terceiro ou
terceira mantém com ela relações afetivas que indiquem uma relação
estável e duradoura com vontade de constituir família, esse terceiro ou
terceira sabe que o sistema é monogâmico e não admite "duplo casamento".
O jogo deve ser jogado segundo suas regras e, portanto, a relação
afetiva construída não ultrapassa o campo social, sendo o nada em
sentido jurídico.
Se
uma pessoa que é casada ou vive em união estável sabe que seu
marido/mulher ou companheiro/companheira mantém uma relação afetiva
estável e duradoura com um terceiro, sabe ela que está protegida pelo
direito que concede efeitos jurídicos a essa relação. O jogo deve ser
jogado segundo suas regras e, portanto, a relação afetiva construída
entre seu marido/mulher ou companheiro/companheira com um
terceiro/terceira não ultrapassa o campo social, sendo o nada em sentido
jurídico.
Há
uma regra clara com duplo efeito. A regra é da inexistência de efeitos
jurídicos decorrentes dessa relação social/afetiva. O duplo efeito é que
o terceiro não terá direito algum e, portanto, o marido/mulher ou
companheiro/companheira não terá prejuízo algum.
3) Notas conclusivas
Essa relação impropriamente denominada (no campo
idílico, dos sonhos sonhados por alguns) de "família paralelas" é o
nada jurídico. Filhos são filhos e, portanto, para eles o adjetivo
"paralelo" é vexatório, discriminante e fere a Constituição Federal. Por
outro lado, aquele que mantém a relação com a pessoa casada ou em união
estável não tem com ele/ela uma família.
Há
quem diga, no meu sentir em afronta ao sistema e ao bom senso, que o
cônjuge ou companheiro que sabe da relação paralela, que tem dela
conhecimento, deveria se divorciar ou dissolver a união estável se não
quiser suportar os efeitos jurídicos de o seu marido/mulher ou
companheiro/companheira ter uma relação com terceiro. Esse argumento é o
seguinte: você se casou ou se uniu estavelmente sob a égide de certas
regras, inclusive da monogamia/lealdade/fidelidade, mas como surgiu um
terceiro ou terceira, ponha fim ao casamento ou união estável se não
quiser perder direitos para esse terceiro.
A
orientação joga nas costas de quem cumpriu as regras do jogo o dever de
pôr fim ao jogo se não quiser ser prejudicado em sentido jurídico e
fático pelo terceiro ou terceira.
A decisão, com repercussão geral, é verdadeiro alento "a
preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes,
ressalvada a exceção do artigo 1723, §1º do Código Civil, impede o
reconhecimento de novo vínculo referente ao mesmo período, inclusive
para fins previdenciários, em virtude da consagração do dever de
fidelidade e da monogamia pelo ordenamento jurídico-constitucional
brasileiro".
A
partir da decisão do STF temos claramente uma situação de emancipação
dos terceiros ou terceiras que optam (pela cabeça ou pelo coração) por
uma relação afetiva com terceiro/terceira que já tem união estável ou
casamento e depois pretendem receber efeitos jurídicos dessa relação.
Fica melhor o direito civil ao deixar os — imprópria e preconceituosamente denominados — "amantes" fora
do conceito de família. Sejam felizes, sim, mas sem buscar a tutela do
Estado. Vivam intensamente e sem preconceitos ou peias, pois assim
permite a liberdade, porém, sem buscar efeitos jurídicos do Direito de
Família.
Uma
última nota se faz necessária. A decisão do STF afasta a hipótese de
reconhecimento de união estável putativa, ou seja, aquela em que há
desconhecimento da união ou casamento anterior?
Trata-se
de boa-fé subjetiva, a boa-fé em seu sentido psicológico. É por isso
que discordo do voto do professor Fachin (seguido pela minoria): "Por isso assento desde logo que é possível o reconhecimento de efeitos post mortem previdenciários a uniões estáveis concomitantes, desde que presente o requisito da boa-fé objetiva". A boa-fé objetiva, como norma ética de conduta, passa por um debate de lealdade e agir corretamente para com o outro.
A argumentação do voto-minoritário ("porque não se cogita de boa-fé subjetiva e sim de boa-fé objetiva")
subverte a lógica da putatividade: desconhecer ou conhecer o vício que
inquina o casamento. É boa-fé em sua noção claramente subjetiva que o
Código Civil adota em seu artigo 1.561 do CC.
Não.
Não há menção às situações em que há boa-fé subjetiva do terceiro ou
terceira que desconhece a existência do casamento ou união estável
anteriores. Nesse ponto, a boa-fé subjetiva, o desconhecimento, permite
ao casamento nulo ou anulável a produção de efeitos (putatividade) e o
mesmo ocorrerá com a união estável.