Novos escribas
Advogar
na área criminal vem ficando mais difícil. Não só porque os órgãos de
Estado estão mais bem aparelhados, com profissionais mais preparados,
mas porque eles aprenderam a usar técnicas de comunicação em favor de
suas teses. Aos réus e investigados, resta se defender nos tribunais
enquanto assistem ao derretimento de suas imagens públicas.
À medida que o aparelho investigatório estatal ganhou cada vez mais importância na pauta dos veículos de comunicação, acabou, por fim, substituindo a investigação jornalística.
É o que o jornalista Solano Nascimento chamou de “jornalismo sobre investigações”, em contraposição ao “jornalismo investigativo”. Ou seja, as redações deixaram de investir em investigações próprias para se dedicar à divulgação da existência de investigações oficiais.
Nascimento é autor do livro Novos Escribas – o fenômeno do jornalismo sobre investigações no Brasil, lançado em 2010 pela editora Arquipélago. A obra resultou de sua tese de doutorado em Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB).
A tese analisou o comportamento das três maiores revistas de notícias do país, Veja, IstoÉ e Época, durante anos de eleições gerais de 1989 até 2006. E concluiu que as denúncias divulgadas por elas em 1989 e 1994 resultaram, em sua maioria, de investigações jornalísticas.
Mas o jogo virou. Em 1998, entre 35% e 40% das denúncias publicadas pela revista foram mera divulgação da existência de investigações dos órgãos dedicados a isso, como Ministério Público, Polícia Federal, Receita ou comissões parlamentares de inquérito. A partir de 2002, dois terços das denúncias noticiadas resultaram de investigações estatais.
Foi criada, portanto, uma nova frente de acusação: a imprensa. “É de fato um grande prejuízo, não só ao acusado, mas à sociedade”, diz Nascimento, em entrevista à ConJur. “Quando o jornalista recebe trechos de uma investigação, não tem acesso às cópias de documentos, depoimentos, ao contraditório e tudo mais. Ele deixa de ter o controle sobre a informação.”
Com a operação “lava jato”, o cenário mudou para pior, analisa o jornalista. Ele agora trabalha na segunda edição do livro, que será uma continuação da tese: de que maneira a “lava jato” influenciou o noticiário. Já deu para perceber o surgimento de um novo agravante, que é a divulgação de informações sem fonte, como trechos de delações premiadas, vazadas com a intenção de prejudicar alguém em benefício da fonte oculta.
Solano Nascimento é professor da Faculdade de Jornalismo da UnB, onde coordena o jornal laboratório Campus e a Oficina de Jornalismo Digital. Seu livro ganhou o Prêmio Esso de contribuição à imprensa em 2010.
Leia a entrevista:
ConJur — Basicamente, o livro conclui que o jornalismo se deixou substituir pelas investigações “oficiais”, de órgãos cuja principal função é investigar. É isso?
Solano Nascimento — Não diria que se deixou substituir. O que observei na minha pesquisa foi o surgimento e aprofundamento do chamado “jornalismo sobre investigações”. São as reportagens feitas com base em investigações desses órgãos profissionais, como Ministério Público, Polícia Federal, Receita, Banco Central, ou até CPIs, ou que divulgam a existência dessas apurações.
ConJur — Isso foi observado de maneira objetiva?
Solano Nascimento — Sim, claro. Nas duas primeiras eleições gerais pós-ditadura militar, de 1989 e 1994, o comportamento da imprensa foi bastante semelhante: três quartos de todas as denúncias publicadas pelas revistas resultaram de investigações jornalísticas. Isso começou a mudar em 1998 e mudou efetivamente em 2002, quando os números se inverteram. Dois terços das denúncias se basearam em investigações de órgãos públicos que existem para isso e só um terço resultou de investigação jornalística.
ConJur — O livro é de 2010 e obviamente não tratou das eleições mais recentes e nem da “lava jato”. Mas a impressão é que o fenômeno se aprofundou, não?
Solano Nascimento — Exatamente. Em 2016 fui sondado para participar de um evento da Abraji [Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo], que depois foi cancelado, para analisar a cobertura da “lava jato”. Como o evento foi cancelado, preferi atualizar minha pesquisa original, usando os mesmos parâmetros. Ainda não fechei tudo, mas o que vi até agora mostra um aprofundamento muito grande dessa tendência. Minha ideia agora é ver qual foi o impacto efetivo da “lava jato” nesse processo.
ConJur — O efeito disso para o direito de defesa é potencialmente terrível, não? No papel, órgãos de Estado não têm vontade, agem por dever de ofício, investigam denúncias que recebem. Mas o que vemos é o uso político de investigações. O promotor que denuncia e envia a petição a jornalistas, ou que passa informações para redações para depois pedir a abertura de inquéritos com base no noticiário...
Solano Nascimento — Não podemos tratar casos de má-fé como regra. Se há promotores, delegados, auditores fiscais, auditores do Banco Central que agem de má-fé, certamente há jornalistas que também agem. Se formos trabalhar com gente desonesta, não muda muito se elas fazem investigações oficiais ou jornalísticas, elas são desonestas. O grande perigo, do ponto de vista social, é a perda de uma frente de investigações. Não sou contra a divulgação de investigações, muito pelo contrário. Aqui no Brasil não temos ainda muitas pesquisas sobre jornalismo investigativo, mas nos Estados Unidos isso é mais aprofundado. Lá, dois grandes pesquisadores do assunto, Bill Kovach e Tom Rosentiel, afirmam que os órgãos de investigação estatais se controlam entre si inclusive por meio da divulgação de seus trabalhos.
ConJur — Mas é inegável o efeito negativo que essa divulgação, mesmo de boa-fé, causa nos investigados e acusados.
Solano Nascimento — É de fato um grande prejuízo, não só aos acusados, mas à sociedade. Quando um repórter recebe um trecho da investigação, ele não vê o quadro geral, não tem acesso ao contraditório e tudo mais. Os primeiros a colocar isso foram Kovach e Rosentiel, que falaram do grande risco de manipulação do jornalista quando ele recebe só uma parte da investigação. O que eles dizem é que quando o jornalista faz a investigação, ele tem o controle dela. Quando ele recebe a informação de terceiros, ele não tem controle.
ConJur — Nem sempre são casos de má-fé. Virou normal a convocação de entrevistas coletivas para que os investigadores contem, unilateralmente, o que “descobriram” depois de diligências e dizem aos jornalistas qual é a “versão correta” dos fatos. Como o apartamento com malas de dinheiro, ou o inquérito sobre os supostos desvios nos contratos de ensino a distância das universidades federais. São informações que já viraram verdade perante o público, e não importa o resultado do julgamento.
Solano Nascimento — O fato de o cara se absolvido pelo Judiciário não quer dizer que ele não seja culpado. Vamos lembrar que [Fernando] Collor foi absolvido pelo Supremo Tribunal Federal. Pode haver absolvições por falhas na investigação ou erros na denúncia. Isso é comum, há coisas absurdamente malfeitas por aí. Só que o jornalismo trabalha com outro nível. Ele não deve condenar. A entrevista coletiva é diferente. Achar que aquelas informações vão depois ser checadas é desconhecer a dinâmica da concorrência entre redações. Não estou defendendo que o jornalista saia de lá e publique tudo sem apurar nada, mas é isso que acontece na maioria das vezes. De todo modo, isso é menos grave do que o que vem acontecendo na “lava jato”, que é o vazamento de informações sem fonte.
ConJur — Isso é uma novidade da “lava jato”?
Solano Nascimento — Com certeza. Se a gente pegar até 2006, sempre considerando os anos eleitorais, todas as reportagens baseadas em investigações oficiais tinham muito claro quem era a fonte. Tinha entrevista do procurador, ou o nome do delegado responsável pelo inquérito, às vezes vinha de uma CPI, do tribunal de contas. Havia identificação em praticamente todas as reportagens. Quando a gente começa a tratar da “lava jato”, grande parte das matérias não tem a origem da informação. O que era comum do início dos anos 2000 até 2006 era, quando a revista ou o jornal recebiam informação exclusiva, preparava uma edição especial, ou saía no fim de semana, coisas do tipo. Não era muito baseado em coletiva, tinha muito o apelo da exclusividade, as coisas eram feitas com mais calma e controle, com documentos, depoimentos, cópias de cheques, coisas assim. Por mais que o jornalista não tivesse o controle da investigação, a divulgação da origem das informações e das investigações era uma forma de redução de riscos caso publicasse algo errado: o nome do procurador, do delegado, do auditor, estava nas reportagens. A “lava jato” mudou isso e a culpa é das delações.
ConJur — Por quê?
Solano Nascimento — Por causa do vazamento de pré-acordos de delação. Esse vazamento saiu do MP, do Judiciário, da polícia ou do advogado do candidato a delator? E aí não se tem nem mais documentos, não é nem mais uma prova documental terceirizada, é o depoimento de uma pessoa que não é nem testemunha, como o motorista da secretária do presidente. É uma pessoa que tem interesse enorme naquela informação, o que aumenta enormemente o risco de lidar com informação errada ou manipulada. É um cenário muito complicado. E aí reside o perigo para quem é investigado ou para quem é acusado: é um ambiente em que a imprensa está dando destaque enorme, manchete às vezes, para um depoimento de uma única pessoa que foi vazado em situações não explicadas.
ConJur — Muitos criminalistas reclamam do uso da imprensa como acessório da acusação, ou o uso estratégico de veículos de comunicação. É feita a acusação formal, perante a Justiça, e a acusação informal, por meio da divulgação de informações a jornalistas.
Solano Nascimento — Aparentemente, sim, há essa estratégia. Não posso dar uma opinião embasada porque minha pesquisa se limita ao que foi publicado nas grandes revistas em anos eleitorais. Mas observo como um leitor interessado, porque faço pesquisas e dou aulas de jornalismo. Tenho a impressão de que se tem pressa em divulgar certos fatos. Lembro de uma reportagem da Veja contando que a delegada daquele caso do reitor da Federal de Santa Catarina só falou rapidamente com ele porque precisava dar a entrevista coletiva e corrigir uma informação que estava errada no site da PF. A condenação pela sociedade é, de fato, terrível, especialmente porque estamos condenando inocentes. Mas não podemos criminalizar a divulgação, porque o outro lado seria a sociedade não saber das investigações enquanto elas estiverem em andamento.
ConJur — Mas a pesquisa conclui que houve a substituição da investigação pela divulgação. Que explicações encontrou para o fenômeno?
Solano Nascimento — Há duas frentes de explicação. Uma é efetivamente o aumento da oferta de informação. Saímos do período de ditadura para um momento de transparência de Estado, fortalecimento dos órgãos de investigação a partir de 1989 e o novo ambiente democrático. O outro ponto crucial para esse processo é a independência do Ministério Público, fruto da Constituição, de 1988, mas que só começou mesmo na segunda metade dos anos 1990.
ConJur — Com a lei orgânica?
Solano Nascimento — Isso. A lei é de 1993, mas até abrir concurso, nomear todo mundo, mudar a estrutura etc. Depois disso vieram CGU, Siafi... No primeiro governo Lula houve uma grande quantidade de concursos para a Polícia Federal. Portanto, houve mais oferta de investigações oficiais e mais investigações, fora as possibilidades de cruzamento de dados e produção de levantamentos, a Lei de Acesso à Informação, as possibilidades da internet, os mecanismos de rastreamento de bens. De outro lado tivemos um encolhimento das capacidades investigativas próprias do jornalismo.
ConJur — Mas a pesquisa vê componentes políticos no fenômeno.
Solano Nascimento — O procurador de Justiça do Distrito Federal Bruno Amaral fez um doutorado na Espanha sobre as relações do Ministério Público com a imprensa. Já escreveu dois livros sobre isso, e ele acredita que, em grande parte, a busca do MP por visibilidade em suas investigações veio em oposição ao procurador que a Veja chamou de engavetador-geral da República [Geraldo Brindeiro, procurador-geral da República de 1995 a 2003]. Havia procuradores que trabalhavam nas investigações sobre autoridades, mas depois a denúncia não era feita. Portanto, esse processo começou por uma boa causa. Lembro de um caso envolvendo o Jader Barbalho e o Banpará. Houve duas frentes de investigação, uma do BC e uma do MP. Isso ficou anos parado e só andou depois que a Veja conseguiu acesso às investigações e a cópias de documentos. Então, veja: por problemas em nossos órgãos de fiscalização e de investigação, precisamos que a imprensa divulgue a existência dessas investigações.
ConJur — E que outras consequências vê no crescimento desse “jornalismo sobre investigações”?
Solano Nascimento — Vejo dois grandes prejuízos. O primeiro é que reportagens investigativas e a publicação de investigações oficiais não são excludentes, mas paralelas e independentes como têm que ser. E vemos membros do MP chamando a imprensa de parceira, o que é errado. A imprensa não pode ter parceiro, não é feita para ter parceiro. As agendas das duas instituições não podem ser as mesmas, e a sociedade precisa dessas duas frentes independentes.
ConJur — As agendas estão se misturando?
Solano Nascimento — Agora com os frutos da “lava jato” o que vemos? Corrupção, lavagem de dinheiro, desvios, envolvimento de funcionário público com suborno etc. Mas e o resto? E a parte ambiental, a defesa dos direitos humanos, a miséria que está se alastrando pelo país? Quem está cuidando disso? Se há procuradores e promotores preocupados com essa parte e não há divulgação, a culpa é, de novo, da imprensa, que se deixou levar pela agenda dos órgãos oficiais de investigação.
À medida que o aparelho investigatório estatal ganhou cada vez mais importância na pauta dos veículos de comunicação, acabou, por fim, substituindo a investigação jornalística.
É o que o jornalista Solano Nascimento chamou de “jornalismo sobre investigações”, em contraposição ao “jornalismo investigativo”. Ou seja, as redações deixaram de investir em investigações próprias para se dedicar à divulgação da existência de investigações oficiais.
Nascimento é autor do livro Novos Escribas – o fenômeno do jornalismo sobre investigações no Brasil, lançado em 2010 pela editora Arquipélago. A obra resultou de sua tese de doutorado em Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB).
A tese analisou o comportamento das três maiores revistas de notícias do país, Veja, IstoÉ e Época, durante anos de eleições gerais de 1989 até 2006. E concluiu que as denúncias divulgadas por elas em 1989 e 1994 resultaram, em sua maioria, de investigações jornalísticas.
Mas o jogo virou. Em 1998, entre 35% e 40% das denúncias publicadas pela revista foram mera divulgação da existência de investigações dos órgãos dedicados a isso, como Ministério Público, Polícia Federal, Receita ou comissões parlamentares de inquérito. A partir de 2002, dois terços das denúncias noticiadas resultaram de investigações estatais.
Foi criada, portanto, uma nova frente de acusação: a imprensa. “É de fato um grande prejuízo, não só ao acusado, mas à sociedade”, diz Nascimento, em entrevista à ConJur. “Quando o jornalista recebe trechos de uma investigação, não tem acesso às cópias de documentos, depoimentos, ao contraditório e tudo mais. Ele deixa de ter o controle sobre a informação.”
Com a operação “lava jato”, o cenário mudou para pior, analisa o jornalista. Ele agora trabalha na segunda edição do livro, que será uma continuação da tese: de que maneira a “lava jato” influenciou o noticiário. Já deu para perceber o surgimento de um novo agravante, que é a divulgação de informações sem fonte, como trechos de delações premiadas, vazadas com a intenção de prejudicar alguém em benefício da fonte oculta.
Solano Nascimento é professor da Faculdade de Jornalismo da UnB, onde coordena o jornal laboratório Campus e a Oficina de Jornalismo Digital. Seu livro ganhou o Prêmio Esso de contribuição à imprensa em 2010.
Leia a entrevista:
ConJur — Basicamente, o livro conclui que o jornalismo se deixou substituir pelas investigações “oficiais”, de órgãos cuja principal função é investigar. É isso?
Solano Nascimento — Não diria que se deixou substituir. O que observei na minha pesquisa foi o surgimento e aprofundamento do chamado “jornalismo sobre investigações”. São as reportagens feitas com base em investigações desses órgãos profissionais, como Ministério Público, Polícia Federal, Receita, Banco Central, ou até CPIs, ou que divulgam a existência dessas apurações.
ConJur — Isso foi observado de maneira objetiva?
Solano Nascimento — Sim, claro. Nas duas primeiras eleições gerais pós-ditadura militar, de 1989 e 1994, o comportamento da imprensa foi bastante semelhante: três quartos de todas as denúncias publicadas pelas revistas resultaram de investigações jornalísticas. Isso começou a mudar em 1998 e mudou efetivamente em 2002, quando os números se inverteram. Dois terços das denúncias se basearam em investigações de órgãos públicos que existem para isso e só um terço resultou de investigação jornalística.
ConJur — O livro é de 2010 e obviamente não tratou das eleições mais recentes e nem da “lava jato”. Mas a impressão é que o fenômeno se aprofundou, não?
Solano Nascimento — Exatamente. Em 2016 fui sondado para participar de um evento da Abraji [Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo], que depois foi cancelado, para analisar a cobertura da “lava jato”. Como o evento foi cancelado, preferi atualizar minha pesquisa original, usando os mesmos parâmetros. Ainda não fechei tudo, mas o que vi até agora mostra um aprofundamento muito grande dessa tendência. Minha ideia agora é ver qual foi o impacto efetivo da “lava jato” nesse processo.
ConJur — O efeito disso para o direito de defesa é potencialmente terrível, não? No papel, órgãos de Estado não têm vontade, agem por dever de ofício, investigam denúncias que recebem. Mas o que vemos é o uso político de investigações. O promotor que denuncia e envia a petição a jornalistas, ou que passa informações para redações para depois pedir a abertura de inquéritos com base no noticiário...
Solano Nascimento — Não podemos tratar casos de má-fé como regra. Se há promotores, delegados, auditores fiscais, auditores do Banco Central que agem de má-fé, certamente há jornalistas que também agem. Se formos trabalhar com gente desonesta, não muda muito se elas fazem investigações oficiais ou jornalísticas, elas são desonestas. O grande perigo, do ponto de vista social, é a perda de uma frente de investigações. Não sou contra a divulgação de investigações, muito pelo contrário. Aqui no Brasil não temos ainda muitas pesquisas sobre jornalismo investigativo, mas nos Estados Unidos isso é mais aprofundado. Lá, dois grandes pesquisadores do assunto, Bill Kovach e Tom Rosentiel, afirmam que os órgãos de investigação estatais se controlam entre si inclusive por meio da divulgação de seus trabalhos.
ConJur — Mas é inegável o efeito negativo que essa divulgação, mesmo de boa-fé, causa nos investigados e acusados.
Solano Nascimento — É de fato um grande prejuízo, não só aos acusados, mas à sociedade. Quando um repórter recebe um trecho da investigação, ele não vê o quadro geral, não tem acesso ao contraditório e tudo mais. Os primeiros a colocar isso foram Kovach e Rosentiel, que falaram do grande risco de manipulação do jornalista quando ele recebe só uma parte da investigação. O que eles dizem é que quando o jornalista faz a investigação, ele tem o controle dela. Quando ele recebe a informação de terceiros, ele não tem controle.
ConJur — Nem sempre são casos de má-fé. Virou normal a convocação de entrevistas coletivas para que os investigadores contem, unilateralmente, o que “descobriram” depois de diligências e dizem aos jornalistas qual é a “versão correta” dos fatos. Como o apartamento com malas de dinheiro, ou o inquérito sobre os supostos desvios nos contratos de ensino a distância das universidades federais. São informações que já viraram verdade perante o público, e não importa o resultado do julgamento.
Solano Nascimento — O fato de o cara se absolvido pelo Judiciário não quer dizer que ele não seja culpado. Vamos lembrar que [Fernando] Collor foi absolvido pelo Supremo Tribunal Federal. Pode haver absolvições por falhas na investigação ou erros na denúncia. Isso é comum, há coisas absurdamente malfeitas por aí. Só que o jornalismo trabalha com outro nível. Ele não deve condenar. A entrevista coletiva é diferente. Achar que aquelas informações vão depois ser checadas é desconhecer a dinâmica da concorrência entre redações. Não estou defendendo que o jornalista saia de lá e publique tudo sem apurar nada, mas é isso que acontece na maioria das vezes. De todo modo, isso é menos grave do que o que vem acontecendo na “lava jato”, que é o vazamento de informações sem fonte.
ConJur — Isso é uma novidade da “lava jato”?
Solano Nascimento — Com certeza. Se a gente pegar até 2006, sempre considerando os anos eleitorais, todas as reportagens baseadas em investigações oficiais tinham muito claro quem era a fonte. Tinha entrevista do procurador, ou o nome do delegado responsável pelo inquérito, às vezes vinha de uma CPI, do tribunal de contas. Havia identificação em praticamente todas as reportagens. Quando a gente começa a tratar da “lava jato”, grande parte das matérias não tem a origem da informação. O que era comum do início dos anos 2000 até 2006 era, quando a revista ou o jornal recebiam informação exclusiva, preparava uma edição especial, ou saía no fim de semana, coisas do tipo. Não era muito baseado em coletiva, tinha muito o apelo da exclusividade, as coisas eram feitas com mais calma e controle, com documentos, depoimentos, cópias de cheques, coisas assim. Por mais que o jornalista não tivesse o controle da investigação, a divulgação da origem das informações e das investigações era uma forma de redução de riscos caso publicasse algo errado: o nome do procurador, do delegado, do auditor, estava nas reportagens. A “lava jato” mudou isso e a culpa é das delações.
ConJur — Por quê?
Solano Nascimento — Por causa do vazamento de pré-acordos de delação. Esse vazamento saiu do MP, do Judiciário, da polícia ou do advogado do candidato a delator? E aí não se tem nem mais documentos, não é nem mais uma prova documental terceirizada, é o depoimento de uma pessoa que não é nem testemunha, como o motorista da secretária do presidente. É uma pessoa que tem interesse enorme naquela informação, o que aumenta enormemente o risco de lidar com informação errada ou manipulada. É um cenário muito complicado. E aí reside o perigo para quem é investigado ou para quem é acusado: é um ambiente em que a imprensa está dando destaque enorme, manchete às vezes, para um depoimento de uma única pessoa que foi vazado em situações não explicadas.
ConJur — Muitos criminalistas reclamam do uso da imprensa como acessório da acusação, ou o uso estratégico de veículos de comunicação. É feita a acusação formal, perante a Justiça, e a acusação informal, por meio da divulgação de informações a jornalistas.
Solano Nascimento — Aparentemente, sim, há essa estratégia. Não posso dar uma opinião embasada porque minha pesquisa se limita ao que foi publicado nas grandes revistas em anos eleitorais. Mas observo como um leitor interessado, porque faço pesquisas e dou aulas de jornalismo. Tenho a impressão de que se tem pressa em divulgar certos fatos. Lembro de uma reportagem da Veja contando que a delegada daquele caso do reitor da Federal de Santa Catarina só falou rapidamente com ele porque precisava dar a entrevista coletiva e corrigir uma informação que estava errada no site da PF. A condenação pela sociedade é, de fato, terrível, especialmente porque estamos condenando inocentes. Mas não podemos criminalizar a divulgação, porque o outro lado seria a sociedade não saber das investigações enquanto elas estiverem em andamento.
ConJur — Mas a pesquisa conclui que houve a substituição da investigação pela divulgação. Que explicações encontrou para o fenômeno?
Solano Nascimento — Há duas frentes de explicação. Uma é efetivamente o aumento da oferta de informação. Saímos do período de ditadura para um momento de transparência de Estado, fortalecimento dos órgãos de investigação a partir de 1989 e o novo ambiente democrático. O outro ponto crucial para esse processo é a independência do Ministério Público, fruto da Constituição, de 1988, mas que só começou mesmo na segunda metade dos anos 1990.
ConJur — Com a lei orgânica?
Solano Nascimento — Isso. A lei é de 1993, mas até abrir concurso, nomear todo mundo, mudar a estrutura etc. Depois disso vieram CGU, Siafi... No primeiro governo Lula houve uma grande quantidade de concursos para a Polícia Federal. Portanto, houve mais oferta de investigações oficiais e mais investigações, fora as possibilidades de cruzamento de dados e produção de levantamentos, a Lei de Acesso à Informação, as possibilidades da internet, os mecanismos de rastreamento de bens. De outro lado tivemos um encolhimento das capacidades investigativas próprias do jornalismo.
ConJur — Mas a pesquisa vê componentes políticos no fenômeno.
Solano Nascimento — O procurador de Justiça do Distrito Federal Bruno Amaral fez um doutorado na Espanha sobre as relações do Ministério Público com a imprensa. Já escreveu dois livros sobre isso, e ele acredita que, em grande parte, a busca do MP por visibilidade em suas investigações veio em oposição ao procurador que a Veja chamou de engavetador-geral da República [Geraldo Brindeiro, procurador-geral da República de 1995 a 2003]. Havia procuradores que trabalhavam nas investigações sobre autoridades, mas depois a denúncia não era feita. Portanto, esse processo começou por uma boa causa. Lembro de um caso envolvendo o Jader Barbalho e o Banpará. Houve duas frentes de investigação, uma do BC e uma do MP. Isso ficou anos parado e só andou depois que a Veja conseguiu acesso às investigações e a cópias de documentos. Então, veja: por problemas em nossos órgãos de fiscalização e de investigação, precisamos que a imprensa divulgue a existência dessas investigações.
ConJur — E que outras consequências vê no crescimento desse “jornalismo sobre investigações”?
Solano Nascimento — Vejo dois grandes prejuízos. O primeiro é que reportagens investigativas e a publicação de investigações oficiais não são excludentes, mas paralelas e independentes como têm que ser. E vemos membros do MP chamando a imprensa de parceira, o que é errado. A imprensa não pode ter parceiro, não é feita para ter parceiro. As agendas das duas instituições não podem ser as mesmas, e a sociedade precisa dessas duas frentes independentes.
ConJur — As agendas estão se misturando?
Solano Nascimento — Agora com os frutos da “lava jato” o que vemos? Corrupção, lavagem de dinheiro, desvios, envolvimento de funcionário público com suborno etc. Mas e o resto? E a parte ambiental, a defesa dos direitos humanos, a miséria que está se alastrando pelo país? Quem está cuidando disso? Se há procuradores e promotores preocupados com essa parte e não há divulgação, a culpa é, de novo, da imprensa, que se deixou levar pela agenda dos órgãos oficiais de investigação.
Pedro Canário é editor da revista Consultor Jurídico.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 7 de janeiro de 2018, 7h32
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