A
consolidação da ordem democrática vem rotineiramente sendo ameaçada.
Não raro presenciamos o Judiciário extrapolar os seus limites de
atuação, adentrando em esferas de indiscutível competência de outros
poderes. Ainda que cônscios, a população ignora esta usurpação e este
silêncio legitima, dia após dia, a figura do Judiciário como superego da
sociedade
[1].
Em verdade, cuida-se de uma questão de suma importância que perdura há anos. O célebre jusfilósofo Ronald Dworkin
[2]
já alertava que era preciso saber a forma como os juízes decidem, e se
eles divergem, outrossim, era imprescindível conhecer as razões da sua
divergência. De lá pra cá, continuamos sem saber como os magistrados
decidem e, esta ausência de unicidade acerca do paradigma teórico do
Direito, é uma das causas da atual crise democrática.
São inúmeras
as decisões antidemocráticas que presenciamos no nosso mister, mas uma
delas tem se sobressaído no processo penal e causado espécie àqueles que
respeitam as normas como fruto de uma construção política advinda dos
representantes legítimos do povo.
A vertente inquietação refere-se
a postura que alguns magistrados têm adotado no curso da persecução
criminal ao refutarem os argumentos ventilados em sede de resposta à
acusação, decidindo assim pelo prosseguimento do feito. Nesse aspecto,
ao invés de designar a data da instrução processual com a consequente
expedição das intimações, os juízes têm notificado a defesa
primeiramente para que se pronuncie, explicando a pertinência das suas
testemunhas arroladas em relação aos fatos imputados pela acusação, sob
pena de, não o fazendo, presumir o seu desinteresse na produção da prova
oral.
Repise-se. Sem qualquer provocação ministerial, o
Judiciário está impondo ao réu que justifique, por intermédio da sua
defesa técnica, qual a contribuição que as suas testemunhas vão
apresentar na elucidação do fato imputado, de forma que a sua revelia ou
impertinência culminarão na supressão do direito a produção desta
prova.
Em um primeiro momento imaginamos tratar-se de uma inovação
legislativa. No entanto, após acurado manuseio do Código de Processo
Penal — e, felizmente, ausência de norma neste sentido —, veio à tona as
lições de Dworkin. A partir deste aporte significativo, passamos a
compreender qual seria a concepção do Direito sob à ótica destes
magistrados, isto porque, o modo como eles decidem nos dizem mais do que
a mera solução ao caso específico, ele revela, com efeito, o
entendimento que possuem acerca do papel que exercem no Estado
Democrático de Direito. Para eles, a atuação do juiz pode extrapolar a
aplicação/interpretação das leis, alcançando o patamar de criá-las,
sempre que a prática assim determinar.
Tal afirmação é fruto da
inexistência de permissivo legal em nosso ordenamento pátrio que
autorize expressamente a referida determinação judicial ou possibilite
uma interpretação coerente, sistemática, neste sentido. Absolutamente
não. Interpretar é dar sentido e, consoante Friedrich Muller
[3],
todo sentido da norma deve caber na literalidade do texto. O que se
vislumbra, ao revés, é que a decisão que os magistrados vêm impondo à
Defesa é manifestamente discricionária!
No aspecto, não há como
sustentar que a referida determinação encontraria respaldo no artigo
396-A do Código de Processo Penal, o qual, por sua vez, estabelece o
dever da Defesa qualificar e requerer, quando necessário, a intimação
das testemunhas arroladas. Justificar a partir deste texto o
multimencionado comando judicial chega a ser teratológico. Primeiro
porque o enunciado normativo é claro ao cuidar da intimação das
testemunhas, exigindo a anuência do réu para tanto. Ademais, não há
qualquer sentido que se extraia desta norma que coadune com a guerreada
determinação judicial. Ora, em que passagem do texto resta descrito a
faculdade dos magistrados solicitarem explicações acerca da pertinência
das testemunhas com os fatos imputados? Evidente que em nenhuma!
Ao
adotar esta postura, os magistrados incorrem em um inquestionável
subjetivismo, solipsismo — como já abordado por Lenio Streck
[4]
em suas obras. Ou seja, estão decidindo conforme a sua consciência
individual, haja vista que, no seu juízo do que é certo ou errado, ouvir
testemunhas ditas abonatórias
[5]
em nada poderá contribuir com a elucidação do fato específico, mas
apenas na dosimetria de eventual reprimenda, o que configuraria
estratagema da defesa para prolongar um processo judicial. É uma
tentativa (infrutífera) de filtrar — sob o crivo do seu decisionismo —
quais das testemunhas arroladas devem verdadeiramente ser ouvidas em
juízo.
Olvidam-se, entretanto, que impor a necessidade de
explicação acerca da correlação entre as testemunhas arroladas e os
fatos incriminadores limita a defesa técnica e resulta por antecipar
indevidamente a estratégia defensiva. É, portanto, uma evidente ofensa
às garantias constitucionais da ampla defesa, contraditório e devido
processo legal, sem considerar, ademais, a dificuldade em promover a
indigitada pertinência face a complexidade dos casos penais.
Não
se pode deixar de consignar, ainda, que esta determinação transparece
uma visão preconceituosa ao exercício do direito de defesa, ultrajando
frontalmente à paridade de armas, visto que à acusação não recaí
idêntica exigência. Logo, aliado a violação ao princípio da isonomia
entre as partes processuais, a adoção desta postura revela, sem mais
poder, o preconceito com que estes magistrados enxergam a defesa.
Em
que pese, não causará tamanha espécie se decisões com lapsos desse jaez
forem chanceladas pelos tribunais superiores, diante da atual
legitimação popular acerca de posturas pragmatistas (ou
neoconstitucionalistas) de alguns ministros, que frequentemente
abandonam por completo o Direito a seu bel-prazer, bastando, para tanto,
que as consequências práticas assim justifiquem, consoante a
consciência individual de cada um.
Às vezes o óbvio precisa ser
dito e repetido à exaustão: o Direito não é (e nem poderia ser) aquilo
que o magistrado quer que ele seja. Enquanto a sociedade não perceber
que as decisões judiciais devem ser devidamente perfectibilizadas de
acordo com o sentido do direito projetado pela comunidade política,
amargaremos o autoritarismo do Judiciário e a consequente crise
democrática. No mais, continuamos esperançosos que as vozes das ruas
compreendam o risco destes comportamentos judiciais baseados em
critérios não-jurídicos — e, por conseguinte, antidemocráticos —, antes
que reste ceifado, por completo, o nosso direito constitucional de
defesa.
[1] MAUS, Ingeborg.
O Judiciário como superego da sociedade: o papel da atividade jurisprudencial na ‘sociedade órfã’. Trad. Martonio Lima e Paulo Albuquerque. 2000.
[2] DWORKIN, Ronald.
O Império do Direito. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014. p.03.
[3] MULLER, Friedrich.
Métodos de Trabalho de Direito Constitucional. Trad. Peter Naumman. Porto Alegre: Síntese, 1999.
[4] STRECK, Lenio Luiz.
Verdade e Consenso. Constituição Hermenêutica e Teorias Discursivas. 6ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
[5] "Constitui,
pensamos, um ilegal cerceamento a prática de alguns juízes de limitar
sua produção em juízo, exigindo a substituição de seus depoimentos por
declarações escritas (o que acarreta a violação do contraditório — por
ser uma produção unilateral e fora da audiência — e também da oralidade,
característica da prova testemunhas, nos termos do art. 204 do
CPP" (AURY, Lopes Jr.
Direito Processual Penal. 9ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
Gabriel
Andrade de Santana é advogado, mestrando em Direito Constitucional pelo
Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), especialista em
Ciências Criminais e Direito Penal Econômico e graduado pela
Universidade Federal da Bahia (UFBA).
João Daniel
Jacobina Brandão de Carvalho é advogado, mestrando em Direito
Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP),
especialista em Direito Público e Direito Eleitoral e graduado pela
Universidade Católica de Salvador (Ucsal).