Em funcionamento há cerca de 10 anos no Brasil, a prática da Justiça
Restaurativa tem se expandido pelo país. Conhecida como uma técnica de
solução de conflitos que prima pela criatividade e sensibilidade na
escuta das vítimas e dos ofensores, a prática tem iniciativas cada vez
mais diversificadas e já coleciona resultados positivos.
Em São Paulo, a Justiça Restaurativa tem sido utilizada em
dezenas de escolas públicas e privadas, auxiliando na prevenção e no
agravamento de conflitos. No Rio Grande do Sul, juízes aplicam o método
para auxiliar nas medidas socioeducativas cumpridas por adolescentes em
conflito com a lei, conseguindo recuperar para a sociedade jovens que
estavam cada vez mais entregues ao caminho do crime. No Distrito
Federal, o Programa Justiça Restaurativa é utilizado em crimes de
pequeno e médio potencial ofensivo, além dos casos de violência
doméstica. Na Bahia e no Maranhão, o método tem solucionado os crimes de
pequeno potencial ofensivo, sem a necessidade de prosseguir com
processos judiciais.
A Justiça Restaurativa é incentivada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) por meio do
Protocolo de Cooperação para a difusão da Justiça Restaurativa, firmado em agosto com a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB).
Pioneiro
na implantação do método no país, o juiz Asiel Henrique de Sousa, do
Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT)
explica, na entrevista abaixo, como funciona essa prática e compartilha
alguns bons resultados da aplicação da Justiça Restaurativa no Distrito
Federal.
O que significa Justiça Restaurativa?
Costumo
dizer que Justiça Restaurativa é uma prática que está buscando um
conceito. Em linhas gerais poderíamos dizer que se trata de um processo
colaborativo voltado para resolução de um conflito caracterizado como
crime, que envolve a participação maior do infrator e da vítima. Surgiu
no exterior, na cultura anglo-saxã. As primeiras experiências vieram do
Canadá e da Nova Zelândia e ganharam relevância em várias partes do
mundo. Aqui no Brasil ainda estamos em caráter experimental, mas já está
em prática há dez anos. Na prática existem algumas metodologias
voltadas para esse processo. A mediação vítima-ofensor consiste
basicamente em colocá-los em um mesmo ambiente guardado de segurança
jurídica e física, com o objetivo de que se busque ali acordo que
implique a resolução de outras dimensões do problema que não apenas a
punição, como, por exemplo, a reparação de danos emocionais.
Quem realiza a Justiça Restaurativa?
Não
é o juiz que realiza a prática, e sim o mediador que faz o encontro
entre vítima e ofensor e eventualmente as pessoas que as apoiam. Apoiar o
ofensor não significa apoiar o crime, e sim apoiá-lo no plano de
reparação de danos. Nesse ambiente se faz a busca de uma solução que
seja aceitável. Não necessariamente o mediador precisa ter formação
jurídica, pode ser por exemplo uma assistente social.
A Justiça Restaurativa só pode ser aplicada em crimes considerados mais leves?
Não,
pode também ser aplicada aos mais graves. No Brasil temos trabalhado
ainda, na maioria das vezes, com os crimes mais leves, porque ainda não
temos estrutura apropriada para os crimes mais graves. Em outros países
até preferem os crimes mais graves, porque os resultados são mais bem
percebidos. A diversidade de crimes e de possibilidades a serem
encontradas para sua resolução é muito grande. Vamos supor que, após um
sequestro relâmpago, a vítima costuma desenvolver um temor a partir
daquele episódio, associando seu agressor a todos que se pareçam com
ele, criando um “fantasma” em sua vida, um estereótipo.
Independentemente do processo judicial contra o criminoso, como se
retoma a segurança emocional dessa pessoa que foi vítima? Provavelmente
se o ofensor tiver a oportunidade de dizer, por exemplo, porque a vítima
foi escolhida, isso pode resolver essa insegurança que ela vai carregar
para o resto da vida.
Mas a Justiça Restaurativa implica o não cumprimento da pena tradicional?
Não,
as duas coisas podem ser e frequentemente são concomitantes. O mediador
não estabelece redução da pena, ele faz o acordo de reparação de danos.
Pode ser feito antes do julgamento, mas a Justiça Restaurativa é um
conceito muito aberto. Há experiências na fase de cumprimento da pena,
na fase de progressão de regime etc. Mas nos crimes de pequeno potencial
ofensivo, de acordo com artigo 74 da Lei n. 9.099, de 1995, o acordo
pode inclusive excluir o processo legal. Já quando falamos de infrações
cometidas pelo público infantojuvenil há outras possibilidades como a
remissão ou a não judicialização do conflito após o encontro
restaurativo e o estabelecimento de um plano de recuperação para que o
adolescente não precise de internação, desde que o resultado gere
segurança para a vítima e reorganização para o infrator. Em São Paulo e
no Rio Grande do Sul, por exemplo, há juízes com larga experiência na
Justiça Restaurativa com adolescentes, por meio de um processo circular e
desritualizado, mais lúdico.
Qual é a diferença da Justiça Restaurativa e da conciliação?
Em
comum, podemos dizer que não são processos dogmáticos. No entanto, a
conciliação é mais voltada para resolver questões de interesse
econômico. Os conciliadores se permitem conduzir um pouco o processo
para resultados mais efetivos; a conciliação acontece com hora marcada
na pauta do tribunal. Já na mediação realizada pela Justiça Restaurativa
não é possível estabelecer quando vai acabar, pode demorar dias, meses,
até se construir uma solução. Na medida em que você tem um conflito de
maior gravidade, que traz uma direção maior de problemas afetados, é
preciso dedicar mais tempo. A vítima tem espaço para sugerir o tipo de
reparação. O crime gera uma assimetria de poderes: o infrator tem um
poder maior sobre a vítima, e a mediação que fazemos busca reequilibrar
esses poderes, mas não invertê-los. Os envolvidos podem ir com
advogados, embora ao advogado seja reservado um papel muito mais de
defesa da voluntariedade de participação e dos limites do acordo, para
que este represente uma resposta proporcional àquela ofensa.
O senhor poderia nos contar um caso interessante aqui do TJDFT?
Há
um caso recente que ocorreu em uma zona rural aqui do Distrito Federal,
que era relativamente simples: dois vizinhos que brigavam em relação
aos limites da terra ajuizaram um processo que foi resolvido na vara
cível, confirmado no tribunal, mas depois continuaram a brigar pelos
limites das águas de uma mina. Aquele conflito terminou desenvolvendo
para a morte de alguns animais de uma das chácaras, feita supostamente
por um dos vizinhos, além de ameaças, e decidimos encaminhá-lo para a
Justiça Restaurativa. A solução foi muito interessante. A equipe
entendeu por chamar para participar a Agência Nacional de Águas (ANA) e a
ONG ambiental WWF, que trouxe como sugestão um programa chamado
apadrinhamento de minas. Então aqueles dois confrontantes terminaram
fazendo um acordo de proteção pela mina e ficaram plenamente satisfeitos
com a solução. Tratava-se de um conflito que já estava na Justiça há
mais de dez anos e que, embora com a solução já transitada em julgado,
as coisas estavam se encaminhando para um desfecho trágico. Ou seja, a
Justiça tradicional resolveu apenas um espectro do problema, o jurídico,
mas as demais questões em aberto continuaram se acumulando, até que foi
feito esse acordo criativo pelo Programa Justiça Restaurativa do TJDFT.
Então a Justiça Restaurativa não retira o direito da pessoa recorrer à Justiça tradicional?
A
intervenção restaurativa é suplementar: de par com o processo
oferecemos um ambiente para resolver demais problemas relacionados com o
conflito. Nada impede que você tenha uma iniciativa, como com
adolescentes infratores, que exclua o processo. Primeiro buscamos uma
persuasão, depois dissuasão e só depois mecanismos de interdição, que
seria a internação. Persuasão significa abrir o ambiente para uma
negociação direta entre as partes. Se isso não for alcançado, usamos
mecanismos dissuasórios, que seriam um misto de acordo com
possibilidades de uma resposta punitiva e, se isso tudo não funcionar,
daí sim partimos para outros mecanismos.
Qual é o maior benefício da Justiça Restaurativa?
Em
muitos casos, essas iniciativas alcançam a pacificação das relações
sociais de forma mais efetiva do que uma decisão judicial.
Luiza de Carvalho
Agência CNJ de Notícias