Não
é possível compreender o Direito sem que se compreenda a sociedade em
que esse se insere. E assim o é quando se trata de Direito Penal. A
tipificação de condutas, ante o estudo criminológico, serve como uma
espécie de termômetro a avaliar a forma com que a sociedade, seus
institutos e cidadãos comportam-se dentro do Estado que compõem.
Analisar as opções político-criminais eleitas pelas vias legislativas
revela ainda mais, deixa à mostra o discurso vigente, bem como as
situações que dão causa ao fenômeno criminológico capaz de impulsionar a
atividade legislativa.
Partindo
dessa premissa é importante notar os movimentos legislativos mais
recentes no cenário pátrio. No dia 21 de dezembro de 2020, foi publicada
a Lei nº 14.110, que alterou o conteúdo normativo do artigo 339 do
Código Penal brasileiro. O dispositivo em questão tipifica o delito de
denunciação caluniosa. Originalmente, quando da promulgação do
Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal
brasileiro), a tipificação penal, contida no artigo 339, se restringia
às condutas de dar causa a instauração de investigação policial ou de
processo judicial contra alguém, de modo a imputar-lhe crime de que se
sabe inocente.
Em
2000, a Lei nº 10.028 já havia alterado o artigo 339 do Código Penal,
de maneira a introduzir em sua tipificação as condutas de: 1)
instauração de investigação administrativa; 2) inquérito civil ou ação
de improbidade administrativa contra alguém, ao imputar-lhe mesmo
sabendo de sua inocência.
Entretanto,
em 2020, foi apresentado o Projeto de Lei nº 2810/2020 (que resultou na
Leiº 14.110/2020), com a finalidade de uma nova alteração no
artigo 339 do Código Penal. Em sua justificativa um dos pontos
destacados, no referido projeto de lei, foi o fato de que "as
expressões 'investigação policial' e 'instauração de investigação
administrativa' são muito amplas, genéricas e subjetivas na medida em
que um mero expediente como uma notícia de fato ou sindicância podem ser
enquadrados como 'investigação', mesmo que não submetam o sujeito à
condição de investigado e nem causem prejuízo à Administração" [1].
Por este motivo, a expressão "investigação policial" deveria então ser
alterada para "inquérito policial", enquanto que a expressão
"instauração de investigação administrativa" seria alterada para
"processo administrativo disciplinar".
Após as discussões legislativas, durante a tramitação [2], foram ainda incluídas na nova redação do tipo penal as imputações inverídicas não só de crime, mas também de "infração ético-disciplinar ou ato ímprobo", a luz da Lei de Abuso de Autoridade (Lei nº 13.869/2019).
Deste modo, a nova redação do tipo penal, denunciação caluniosa, passou a vigorar como: "Dar
causa à instauração de inquérito policial, de procedimento
investigatório criminal, de processo judicial, de processo
administrativo disciplinar, de inquérito civil ou de ação de improbidade
administrativa contra alguém, imputando-lhe crime, infração
ético-disciplinar ou ato ímprobo de que o sabe inocente", mantidas as sanções mínima de dois anos e máxima de oito anos e multa, bem como suas causas de aumento e diminuição.
Mas
qual seria a relevância de toda essa divagação histórico-legislativa
acerca do tipo penal contido no artigo 339 do Código Penal brasileiro?
Pois bem, é preciso compreender o Direito Penal enquanto "gesamte Strafrechtswissenschaf" (ciência global) [3] e,
partindo então dessa premissa, compreender que a política criminal
possui um papel de grande importância para a implementação da dogmática
penal. Nas palavras de Claus Roxin: "en
la Política criminal incluye los métodos adecuados, en sentido social,
para la lucha contra el delito, es decir, la llamada misión social del
Derecho penal; mientras que al Derecho penal, en el sentido jurídico de
la palabra, debe corresponder la función liberal del Estado de Derecho,
asegurar la igualdad en la aplicación del Derecho y la libertad
individual frente al ataque del ‘Leviathan’, del Estado" [4].
A
busca legislativa de um aprimoramento da lei penal, de modo a adequá-la
a realidade presente, é algo importante e necessário, o problema reside
em qual política criminal essa adequação está a se pautar. A elaboração
de uma alteração legislativa que, de alguma forma, amplia o campo de
incidência da lei penal reflete os problemas institucionais, políticos e
sociais sentidos pela sociedade. Estamos, assim, a tratar a
consequência, mas não a causa.
O
que justifica a necessidade de uma legislação específica tipificando o
delito de abuso de autoridade? Essa é a indagação. Assim como o mesmo
questionamento vale para a necessidade de uma ampliação quanto ao delito
de denunciação caluniosa. As instituições e autoridades estariam
deixando de observar a legislação vigente, no caso da Lei de Abuso de
Autoridade? E observar as leis não seria mais uma escolha racional de
maneira a ser necessário o temor da aplicação de uma legislação
específica para que então abusos não sejam cometidos?
Do
mesmo modo, em meio à pós-modernidade, diante de tantos avanços, ainda
observamos a necessidade de uma legislação acerca da possibilidade de
denunciações caluniosas, a propositura de inquéritos policiais, de
procedimentos investigatórios criminais, de processos judiciais, de
processos administrativos disciplinares, de inquéritos civis ou de ações
de improbidade administrativa contra pessoas sem que elas possuam as
condições para que tais imputações se realizem (crime, infração
ético-disciplinar ou ato improbidade).
O
Direito Penal não é capaz de agir pedagogicamente, nem é essa sua
função, assim como não é função do Direito, como um todo, transformar,
educar. De acordo com Günther Jakobs: "A contribuição que o Direito Penal presta à manutenção da configuração da sociedade e do Estado é a garantia de normas" [5]. E, consequentemente, acerca de sua tutela, esclarece: "Pode-se definir como bem a ser protegido pelo Direito Penal a solidez das expectativas normativas essenciais frente à decepção" [6].
O que é preciso ponderar são as circunstâncias que levam a criação de
determinas expectativas cognitivas, que depois se transformam em
expectativas normativas. Quais são as causas. É esse o ponto.
Se
uma sociedade necessita de uma intervenção do Direito Penal em um
determinado tema, o que foi diagnosticado pela criminologia, é
necessário, então, buscar a fonte causadora do fenômeno e só então
ponderar qual a solução mais adequada para a problemática. Para tanto,
temos então a política criminal, que não necessariamente nos conduzirá à
tipificação por meio da lei penal. Como já salientado anteriormente, na
referência ao trabalho de Claus Roxin, a política criminal desempenha o
papel de eleger a solução mais adequada ao caso concreto e nem
sempre tal solução é a Lei Penal pois ela apenas trata a consequência.
Com isso não se quer dizer que a lei penal é desnecessária, pelo contrário, como ultima ratio
e, elaborada dentro dos princípios afetos à ciência jurídico-penal
(intervenção mínima, subsidiariedade, fragmentariedade,
proporcionalidade), a dogmática penal e, assim, a elaboração de leis
penais, cumpre uma importante função dentro do Estado democrático de
Direito. Mas antes de aclamar uma nova legislação penal é sempre
necessário pensar em que a motivou, o que haveria impulsionado a
atividade legislativa a agir de maneira a elaborar uma solução dentro da
legislação penal para o problema e além, refletir acerca de qual
problema se está a tratar.
É
necessário ainda pontuar a urgência em se compreender a ciência
jurídico-penal, de maneira a compreender suas limitações e que, não
reside nela, a solução de todos os problemas. Uma das limitações
práticas pode ser sentida, já de início, tomando por exemplo a
incidência do novo conteúdo do artigo 339 do Código Penal. Embora a
vigência da Lei nº 14.110/2021 tenha se iniciado com sua promulgação,
como se trata de lei penal, essa não retroage, pois é vedada a aplicação
retroativa da lei penal, exceto em benefício do réu, preceito previsto
na Constituição Federal brasileira e no próprio Código Penal. De outro
lado, como a pena mínima não ultrapassa o limite de quatro anos e, em
regra, as condutas típicas, contidas na nova redação do artigo 339 do
Código Penal, não são cometidas com violência ou grave ameaça, seria
ainda possível a incidência de acordo de não persecução penal.
A
reflexão é sempre um melhor caminho na busca de possíveis respostas,
nenhuma crítica é simplesmente positiva ou negativa, seu objetivo é
apontar possíveis problemas e quais soluções podem ser pensadas a partir
de tais constatações. É desse modo que se desenvolve a sociedade, a
ciência, por meio do diálogo constante, crítico e produtivo. O que se
aplica no campo do Direito Penal.
Referências bibliográficas
— DIAS, Jorge de Figueiredo;
ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: o homem delinquente e a
sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra, 1992.
— JAKOBS,
Günther. Tratado de direito penal. Teoria do injusto penal e
culpabilidade. Tradução Gercélia Batista de Oliveira Mendes, Geraldo de
Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey Editora, 2009.
— ROXIN, Claus. Politica criminal y sistema del derecho penal. Traducción Francisco Muñoz Conde. 2. ed. Buenos Aires: Hammurabi, 2002.
[1] Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node0u7cpn73e3muq594degwv8btk2452365.node0?codteor=1896442&filename=PL+2810/2020 >. Acesso em 23 jan 2021
[2] Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node0u7cpn73e3muq594degwv8btk2452365.node0?codteor=1919034&filename=Tramitacao-PL+2810/2020>. Acesso em 23 jan 2021
[3] Acerca
da Ciência conjunta do Direito Penal (Criminologia, Política Criminal,
Dogmática Penal), assim esclarece Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da
Costa Andrade: “Foi ao tentar englobar este conjunto de disciplinas numa
unidade coerente e harmoniosa que Von Liszt criou o designativo, que se
tornaria justamente célebre de ‘ciência global (total, universal ou
conjunta) do direito penal’.” DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel
da Costa. Criminologia: o homem delinquente e a sociedade
criminógena. Coimbra: Coimbra, 1992, p. 93.
[4] ROXIN,
Claus. Politica criminal y sistema del derecho penal. Traducción
Francisco Muñoz Conde. 2. ed. Buenos Aires: Hammurabi, 2002, p. 32.
[5] JAKOBS,
Günther. Tratado de direito penal. Teoria do injusto penal e
culpabilidade. Tradução Gercélia Batista de Oliveira Mendes, Geraldo de
Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey Editora, 2009, p. 61.
[6] Ibidem, p. 61