A
Lei Federal 13.964, de 24 de dezembro de 2019, denominada popularmente
como “Lei Anticrime”, inovou substancialmente o ordenamento jurídico
penal e processual penal do Brasil com vistas a aumentar a eficácia no
combate ao crime organizado, ao crime violento e à corrupção, além de
reduzir pontos de estrangulamento do sistema de justiça criminal.
Como
uma das grandes novidades do novo marco, exsurgiu do texto normativo —
pela via legislativa admitida em nosso ordenamento constitucional — o
acordo de não persecução penal (ANPP), inserido no artigo 28-A do Código
de Processo Penal e que se coloca como mais um instrumento da justiça
penal consensual em nosso país, ao lado de outros já largamente
utilizados, a exemplo da transação penal nos crimes de menor potencial
ofensivo (artigo 76 da Lei 9.099/95) e da suspensão condicional do
processo nos crimes cuja pena mínima seja igual ou inferior a um ano
(artigo 89 da Lei 9.099/95).
Segundo Francisco Dirceu de Barros,
trata-se de medida salutar, que tem como principal objetivo proporcionar
efetividade, elidir a capacidade de burocratização processual,
proporcionar despenalização, celeridade na resposta estatal e satisfação
da vítima pela reparação dos danos causados pelo acordante ou acusado.[
1]
De
acordo com o dispositivo legal acima referenciado (artigo 28-A do CPP),
não sendo o caso de arquivamento e tendo o investigado confessado
formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência
ou grave ameaça e com pena mínima inferior a quatro anos, o Ministério
Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que
necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante
as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente:
I - reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo;
II - renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo
Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime;
III - prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período
correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois
terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma
do artigo 46 do Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código
Penal);
IV - pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do artigo
45 do Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a
entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da
execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens
jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito;
ou
V - cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo
Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração
penal imputada.
O texto legal veda a aplicação do instituto do
ANPP nas hipóteses em que: I - for cabível transação penal de
competência dos Juizados Especiais Criminais; II - se o investigado for
reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta
criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes
as infrações penais pretéritas; III - ter sido o agente beneficiado nos
cinco anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não
persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo; e
IV - nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou
familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo
feminino, em favor do agressor.
Sob a ótica formal, o ANPP será
lavrado por escrito e será firmado pelo membro do Ministério Público,
pelo investigado e por seu defensor. Para a homologação do acordo será
realizada audiência na qual o juiz deverá verificar a sua
voluntariedade, por meio da oitiva do investigado na presença do seu
defensor, e sua legalidade. Na hipótese do juiz considerar inadequadas,
insuficientes ou abusivas as condições dispostas no acordo de não
persecução penal, devolverá os autos ao Ministério Público para que seja
reformulada a proposta de acordo, com concordância do investigado e seu
defensor.
Em uma análise preliminar sobre o novel instituto, é
possível visualizar um amplo espectro de hipóteses de cabimento do ANPP
em matéria de crimes cometidos contra o meio ambiente natural, cultural e
urbanístico.
Com efeito, tanto crimes tipificados na Lei 9.605/98
(artigos 30, 33, 34, 35, 38, 38-A, 39, 40, 41, 42, 45, 54, 56, 61, 62,
63, 66, 67, 68, 69 e 69-A da Lei de Crimes Ambientais, por exemplo),
quanto outros previstos em leis especiais (artigos 15 e 16 da Lei
7.802/89 – Lei de Agrotóxicos; artigo 50 da Lei 6.766/79 – Lei do
Parcelamento do Solo Urbano, por exemplo), atendem a três dos principais
requisitos objetivos para o cabimento do ANPP: não estão sujeitos à
transação penal nos Juizados Penais Criminais; não são praticados com
violência ou grave ameaça e possuem pena mínima inferior a quatro anos
(artigo 28-A, caput, e § 2º., I).
Logo, o campo para a aplicação
do acordo de não persecução penal no âmbito dos delitos ambientais é
promissor e o instituto pode, se bem utilizado, contribuir para maior
eficiência, eficácia e celeridade na repressão às condutas contra o meio
ambiente, bem como para a efetivação da tutela reparatória em prol do
bem ambiental.
Mas para que isso ocorra de fato é necessário que o
instituto do acordo de não persecução penal seja lido, interpretado e
aplicado sob as luzes do direito penal e processual penal ambiental, que
possuem particularidades marcantes quando comparados com o direito
penal e processual penal clássicos.
A primeira questão de relevo
que se coloca é que a exigência de reparação do dano, em se tratando de
crimes contra o meio ambiente, sempre será cláusula obrigatória e
indeclinável em todo e qualquer acordo de não persecução penal, devendo o
artigo 28-A, I, do CPP ser aplicado em conjugação com os preceitos
insertos nos arts. 27 e 28 da Lei 9.605/98, que exigem a composição do
dano cível ambiental como requisito essencial para a aplicação das
medidas despenalizadoras envolvendo crimes ambientais. A ausência de tal
previsão deverá impor a recusa da homologação do acordo quando da
análise pelo Poder Judiciário, por ausência dos requisitos legalmente
exigíveis (artigo 28-A, § 7º)
Na mesma toada, a interpretação
sistêmica das regras do artigo 28-A do CPP com aquelas previstas na Lei
9.605/98 impõe que a declaração da extinção da punibilidade do agente
beneficiado pelo ANPP que cometeu crime ambiental sempre dependerá de
laudo de constatação de reparação do dano ambiental, ressalvada a
impossibilidade de fazê-lo (artigo 28 da Lei de Crimes Ambientais).
É
que a garantia da reparação cível dos danos causados em detrimento do
meio ambiente é um dos princípios básicos da Lei de Crimes Ambientais do
nosso país, cujos efeitos se espraiam a todo o ordenamento jurídico,
até mesmo porque, como bem leciona Alex Fernandes Santiago[
2]:
A
conclusão é de que nada servirá um Direito Penal que pretenda proteger o
meio ambiente e não se ocupe da reparação do dano ambiental. A
reparação é essencial, imanente a qualquer discussão sobre meio
ambiente. Primeiro prevenção e, em seu fracasso, imediatamente buscar a
reparação. De que servirão sanções como a pena privativa de liberdade
para aqueles que desmatam a floresta amazônica, por exemplo, se também
não lhes é exigida a recomposição do ambiente danificado ?
Também
não nos parece remanescer margem de discricionariedade ao Ministério
Público quanto à inserção no âmbito do ANPP versando sobre crime
ambiental da previsão do agente beneficiado pelo instituto renunciar
voluntariamente a bens e direitos que sejam instrumentos, produto ou
proveito do crime. Com efeito, o princípio da reparação integral que
vige em sede de direito ambiental veda que o agente aufira qualquer tipo
de vantagem com a prática do ilícito e o artigo 25 da Lei 9.605/98
emite comando no sentido de que os produtos e instrumentos dos crimes
ambientais devem ser apreendidos e perdidos.
Quanto à prestação de
serviços à comunidade prevista no inciso III do artigo 28-A do CPP, em
se tratando de crimes ambientais, não se aplica a regra geral do artigo
46 do CPB, mas sim o dispositivo específico previsto na Lei 9.605/98,
segundo o qual: artigo 9º A prestação de serviços à comunidade consiste
na atribuição ao condenado de tarefas gratuitas junto a parques e
jardins públicos e unidades de conservação, e, no caso de dano da coisa
particular, pública ou tombada, na restauração desta, se possível.
Na
mesma toada, quanto à prestação pecuniária prevista no inciso IV do
artigo 28-A do CPP, descarta-se o artigo 45 do CPB e aplica-se, por
especialidade, o artigo 12 da Lei 9.605/98, conquanto as redações
atualmente sejam idênticas. Vale destacar que, em razão do princípio da
máxima coincidência possível, basilar em matéria de tutela do meio
ambiente, a destinação social da entidade beneficiária da prestação
pecuniária deve guardar pertinência com matéria de cunho ambiental. Ou
seja, ela deve ter como função proteger bens jurídicos iguais ou
semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito.
Insta
salientar, por oportuno, que, como já decidido pelo Conselho Nacional de
Justiça no Pedido de Providências 2460-96.2014.2.00.0000, os valores
decorrentes das transações penais ou sentenças condenatórias referentes à
tutela do meio ambiente, patrimônio cultural e urbanístico devem ter
como destino específico o efetivo custeio de medidas de proteção ao meio
ambiente, não se aplicando a destinação a contas judiciais de âmbito
genérico.
Ponto de relevância é, ainda, em sede de ANPP sobre
crimes ambientais, a possibilidade do ajuste ser firmado, também, com
pessoas jurídicas, considerando a excepcional hipótese de
responsabilização criminal dos entes morais que exsurge dos artigos 225,
§ 3º. da Constituição Federal, complementado pelo artigo 3º da Lei
9.605/98.
Em tal hipótese, vale relembrar que a prestação de
serviços à comunidade pela pessoa jurídica é objeto de disciplina
específica pelo artigo 23 da Lei 9.605/98, segundo o qual:
Art. 23. A prestação de serviços à comunidade pela pessoa jurídica consistirá em:
I - custeio de programas e de projetos ambientais;
II - execução de obras de recuperação de áreas degradadas;
III - manutenção de espaços públicos;
IV - contribuições a entidades ambientais ou culturais públicas.
Por
derradeiro, o inciso V do artigo 28-A do CPP prevê a possibilidade de
se inserir como cláusula no ANPP a obrigação de cumprir, por prazo
determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que
proporcional e compatível com a infração penal imputada.
Trata-se
de “cláusula de abertura” de extrema relevância prática para que todas
as dimensões da lesão ou da ameaça ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado possam ser objeto do necessário tratamento jurídico,
resgatando o cumprimento da lei e assegurando o alcance dos fins
colimados pelo direito ambiental, em sua inteireza.
Nesse
sentido, será possível, por exemplo, impor no ANPP a suspensão de
atividades econômicas ou industriais potencialmente degradadoras que
estejam sendo desenvolvidas sem a autorização dos órgãos competentes,
até que elas sejam regularmente obtidas.
Enfim,
são essas as nossas primeiras reflexões sobre a aplicabilidade do
instituto do acordo de não persecução penal em matéria de crimes
ambientais, feitas com o intuito de contribuir, de forma singela, para o
debate e amadurecimento do melhor entendimento doutrinário sobre a
novidadeira temática.
1 Acordo de não persecução penal. Teoria e prática. JHMizuno. Leme. 2019. p. 06.
2 Fundamentos de Direito Penal Ambiental. Belo Horizonte: Del Rey. 2015. p. 349f