Artigo – O alvissareiro projeto de lei 6.204/19 – Desjudicialização de títulos executivos civis e a crise da jurisdição estatal – Por Joel Dias Figueira Júnior
Em mais uma iniciativa digna de nota, a
senadora da República Soraya Thronicke (PSL-MS) apresentou ao parlamento
em data 20 de novembro do corrente ano o projeto de lei 6.204/191 que,
ao ser convertido em lei, modificará sobremaneira o cenário da
jurisdição nacional e colocará o Brasil em elevado patamar normativo,
ladeado por diversos países do continente europeu, a exemplo de
Portugal, Espanha, França, Itália, Alemanha, Suécia, dentre outros.2
Trata o alvissareiro PL da denominada desjudicialização das execuções civis que,
em poucas palavras, pode ser compreendida como a transferência da
competência do Estado-juiz, por delegação, aos tabeliães de protesto
(doravante denominados agentes de execução),
há muito qualificados e afeitos aos temas dos títulos de créditos, além
detentores de uma infraestrutura via de regra impecável, atinente aos
atos e procedimentos executivos.
O tema da desjudicialização das execuções,
nada obstante pouco explorado na doutrina nacional, não passou
despercebido por estudiosos da matéria, atentos aos novos influxos
normativos alienígenas norteados pela melhor doutrina estrangeira,3 o que bem serviu para alavancar e trazer subsídios ao Projeto em voga.
Vale destacar que o projeto da senadora
Thronicke toma por base o exitoso modelo português e desenvolve-se em
sintonia harmoniosa com as necessidades brasileiras, a começar pela
utilização da expertise dos tabeliães de protesto que, sabidamente,
prestam serviços de qualidade diferenciada, seguindo a linha do que há
15 anos já vem se realizando no Brasil acerca da delegação de atividades
fundamentalmente “administrativas”, até então praticadas pelo
estado-juiz, como se verifica com a extrajudicialização da retificação do registro imobiliáriodo (lei 10.931/04), do inventário, da separação e do divórcio (lei 11.441/07), da retificação de registro civil (lei 13.484/17) e da usucapião instituída com o CPC/2015 (art.1.071 – LRP, art. 216-A).4
Mais recentemente, em reforço da efetiva
participação das serventias extrajudiciais no contexto atual da
simplificação de resoluções de conflitos, o CNJ baixou diversos
provimentos merecedores do devido destaque: Provimento 67, de 26/3/18,
que dispõe sobre os procedimentos de conciliação e de mediação nos
serviços notariais e de registro do Brasil; Provimento 72, de 27 de
junho de 2018, que dispõe sobre medidas de incentivo à quitação ou à
renegociação de dívidas protestadas nos tabelionatos de protesto do
Brasil e, mais recentemente; provimento 86, de 29 de agosto de 2019, que
dispõe sobre a possibilidade de pagamento postergado de emolumentos,
acréscimos legais e demais despesas, devidos pela apresentação de
títulos ou outros documentos de dívida para protesto.
Aliás, esse é o mote dos novos desígnios do
processo civil contemporâneo, voltado à realização do direito material
mediante a efetiva satisfação das pretensões (resistidas ou
insatisfeitas) dos jurisdicionados (pessoas naturais ou jurídicas), no
momento em que se redefine o conceito de acesso à justiça e se ultrapassa a via judiciária (acesso aos tribunais) para adentrar no campo ampliado do acesso à jurisdição (pública = estatal e privada = arbitragem – CPC, art. 3º) e dos equivalentes jurisdicionais, dentre
os quais se enquadram as técnicas de negociação, mediação, conciliação e
os mecanismos diversificados de desjudicialização, tudo em prol das
resoluções de conflitos obtidas com simplicidade, eficiência, economia,
rapidez e efetividade.
Não se pode deixar de mencionar também que
tramita no Congresso Nacional, nessa mesma linha, importante PL
4.257/19, de autoria do senador Antônio Anastasia (PSDB-MG), que além de
prever a possiblidade da arbitragem tributária,5 dispõe acerca da desjudicialização da execução fiscal, nos moldes do Decreto-Lei 70/66 com a modificação da lei 6.830/80.
O Projeto de lei n. 6204 que ora vem a lume
chancela a função pública da execução dos títulos executivos por
delegação aos tabeliães de protesto, porquanto profissionais concursados
e remunerados de acordo com os emolumentos fixados por lei, cobrados
via de regra do devedor ao final do procedimento executivo, fiscalizados
pelos tribunais locais através de suas corregedorias e, em nível
nacional, pelo CNJ. A delegação, portanto, é o regime jurídico adequado
para que a desjudicialização da execução seja colocada em prática no
Brasil, nos termos do artigo 236 da Constituição Federal, sendo o
tabelião de protesto o agente que mais se enquadra no perfil do
procedimento executivo extrajudicial, alargando-se, para tanto, suas
atribuições, para fins de realização das atividades executivas.
O projeto em exame também valoriza o
protesto como eficiente mecanismo de efetivação do cumprimento das
obrigações e, para atingir tal desiderato, confere ao tabelião de
protesto a tarefa de verificação dos pressupostos da execução, a
realização da citação, da penhora, da alienação, do recebimento do
pagamento e da extinção do procedimento executivo extrajudicial,
reservando ao juiz estatal a eventual resolução de litígios, quando
provocado pelo agente de execução ou por qualquer das partes ou
terceiros interessados.
Na qualidade de macrossistema instrumental,
o Código de Processo Civil terá aplicação subsidiária, enquanto na
execução extrajudicial não poderão ser parte o incapaz, o condenado
preso ou internado, as pessoas jurídicas de direito público, a massa
falida e o insolvente civil.
O projeto açambarca além da
desjudicialização dos títulos executivos extrajudiciais civis, também as
sentenças de natureza condenatória para pagamento de quantia certa,
desde que transite em julgado e não ocorra o cumprimento voluntário da
obrigação.
Assinala-se que apesar do PL ser omisso
acerca das sentenças arbitrais dessa natureza, diante da simetria
estabelecida em lei entre as decisões estatais e as privadas (LA art. 18
c/c art. 31), se não forem cumpridas espontaneamente pelo sucumbente,
poderão ser levadas pelo credor da obrigação de quantia certa ao agente
de execução, na qualidade de título executivo judicial (CPC art. 515, VII).
Por sua vez, as partes estarão sempre
representadas por advogados em todos os atos executivos extrajudiciais,
respeitadas as regras processuais gerais e da execução, inclusive para a
fixação da verba honorária; os litigantes hipossuficientes gozarão dos
benefícios da gratuidade.
O procedimento executivo extrajudicial
inicia-se com a apresentação do título protestado ao agente de execução
que, por sua vez, cita o devedor para pagamento em 5 dias, sob pena de
penhora, arresto e alienação, concluindo-se o feito com a obtenção da
satisfação do crédito, sem prejuízo da possibilidade de autocomposição. O
título executivo judicial somente será apresentado ao agente de
execução após o transcurso do prazo de pagamento e impugnação, conforme
já assinalado.
Será suspensa a execução na hipótese de não
localização bens suficientes para a satisfação do crédito e, se o
credor for pessoa jurídica, o agente de execução lavrará certidão de
insuficiência de bens comprobatória das perdas no recebimento de
créditos, para os fins do disposto no art. 9º da lei 9.430 de
27 de dezembro de 1996, o que servirá como elemento inibidor do
ajuizamento de milhares de ações de execução perante o Estado-juiz para
obtenção desse fim.
O projeto não descura em momento algum das
garantias constitucionais, amplamente asseguradas às partes durante todo
o procedimento; na verdade, é conferido o pleno contraditório e a ampla
defesa, seja por suscitação de dúvidas ou impugnação aos atos
praticados pelo agente de execução que possam causar gravame às partes,
assim como o executado poderá manejar os embargos à execução, que serão
opostos perante o juiz de direito competente, nos termos do Código de
Processo Civil.
O agente de execução conduzirá todo o
procedimento, e, sempre que necessário, consultará o juiz competente
sobre dúvidas suscitadas pelas partes ou por ele próprio, e ainda
requererá eventuais providências coercitivas. Aliás, ao agente de
execução não é delegado qualquer poder de império (ius imperii)
que permanece integralmente inalterado e exclusivo do juiz de direito
competente para análise dessas matérias, de acordo com a lei local.
Durante a vacatio legis de
um ano todos os agentes de execução haverão de ser capacitados com
cursos promovidos pelo CNJ e pelos tribunais, em conjunto com as
entidades representativas dos tabeliães de protesto em âmbito nacional,
assim como elaborarão modelo-padrão de requerimento eletrônico que será
formulado pelo credor e encaminhado aos tabelionatos.
As tabelas de emolumentos iniciais e finais
serão estabelecidas em percentuais a incidir sobre a quantia objeto da
execução conforme diretrizes definidas pelo Conselho Nacional de Justiça
e tribunais locais, assim como será disponibilizado aos agentes de
execução acesso a todos os termos, acordos e convênios fixados com o
poder judiciário para consulta de informações denominada no PL de “base
de dados mínima obrigatória”.
As demandas executivas pendentes e
cumprimentos de sentenças não serão redistribuídas aos agentes de
execução quando da entrada em vigor da norma em exame, salvo se
requerido pelo credor e em sintonia com as diretrizes estabelecidas
pelas corregedorias dos tribunais estaduais, em conjunto com os
tabelionatos de protestos locais; trata-se de providência salutar que
permitirá a implementação paulatina satisfatória da desjudicialização,
sem comprometer a qualidade, rapidez e eficiência que se espera na
prestação desses serviços dos agentes de execução.
Mister destacar ainda que o Código de
Processo Civil permanece praticamente inalterado, recebendo apenas
ajustes pontuais para se harmonizar ao novo microssistema; para tanto, o
PL modifica parcialmente apenas os artigos 516, 518, 525, 526, e 771 do
aludido Diploma Instrumental.
Frisa-se que o projeto de lei 6204/19 é
mais do que oportuno, é adequado e imprescindível para combater,
eficazmente, a crise em que se encontra mergulhada a jurisdição estatal,
somando-se aos resultados de redução de custos efetivos para o Estado,
segundo se pode constatar da Jjstificação do próprio projeto e dos dados
obtidos do “Justiça em Numeros-CNJ/2019” (ano base 2018).
Extrai-se do aludido Anuário que havia em
2018 nada menos do que 79 milhões de processos tramitando, dos quais
42,81 milhões são de natureza executiva fiscal, civil e cumprimento de
sentenças, equivalente a 54,2% de todo o acervo do Poder Judiciário;
desse acerco surreal, aproximadamente 13 milhões de processos são
execuções civis fundadas em títulos extrajudiciais e judiciais, o que
corresponde a 17% de todos os feitos em tramitação no Poder Judiciário.
Como se não bastasse a descrição de um
quadro patológico crônico que se agrava a cada ano, as estatísticas do
CNJ vão além e apontam para um período de tempo de tramitação das
execuções extremamente longo, qual seja, 4 anos e 9 meses,
considerando-se a data da distribuição até a efetiva satisfação (se
houver), enquanto que os processos de conhecimento tramitam por tempo
muito inferior (1ano e 6 meses).
Os dados do CNJ ainda indicam que apenas
14,9% desses processos de execução atingem a satisfação do crédito
perseguido, sendo de 85,1% a taxa de congestionamento, isto é, de cada
100 processos de execução que tramitavam em 2018, somente 14,9 obtiveram
baixa definitiva nos mapas estatísticos.
Não é dificil concluir e dizer, em outras
palavras, que a crise em que se encontra mergulhada a prestação da
tutela jurisdicional estatal tem como ponto nevrálgico, ou melhor, il collo di bottiglia (gargalo
de garrafa) as demandas executivas, enquanto o Estado-juiz exerce as
funções de mero “administrador de cobranças”, pois é assente que a
jurisdição, na verdadeira acepção da palavra, raramente é prestada nos
procedimentos executivos.
O projeto de lei 6.204/19 também vem ao
encontro dos anseios nacionais em prol da redução do elevado custo do
estado brasileiro, impactando positivamente e de forma gradativa na
ascenção da economia nacional; basta considerar que o custo médio total
para a tramitação de um processo de execução civil gira em torno de R$
5.000,00, e, multiplicando-se pelo número de ações executivas civis
pendentes (13 milhões), encontra-se um total aproximado de R$ 65 bilhões
de despesas arcadas pelos cofres públicos que, doravante, poderão ser
economizadas.6
Por vias transversas, o PL acabará também
minimizando o problema atinente ao represamento de créditos no Brasil
que, de acordo com os dados publicados no Anuário do Instituto de
Protestos (“Cartórios em Números”), edição 2019, no exercício de 2018,
32,1% dos títulos privados protestados não foram pagos, o que representa
R$ 9,6 bilhões; a esses números somam-se milhares de títulos que,
sabidamente, não são levados à protesto, mas para serem satisfeitos,
necessitam ser executados perante o Estado-juiz.
Estamos certos de que o PL 6.204/19 que
acaba de ser protocolizado no Senado Federal atenderá aos reclamos das
pessoas naturais, jurídicas, dos Poderes Executivo e Judiciário, pois
traz em seu bojo a proposta clara bem delineada de um procedimento
extrajudicial mais econômico, célere, simples, qualificado e efetivo,
com a observância das necessárias garantias constitucionais e
participação dos advogados em todas as fases da execução extrajudicial,
somando-se aos efeitos positivos nos planos metajurídicos em seus
multíplos aspectos panprocessuais.
Que os anseios e as esperanças transformem-se, em breve, em realidade.
O primeiro, firme e importante passo foi bem dado… agora, com a palavra, o Congresso Nacional!
1 O Projeto é
fruto do trabalho elaborado pela comissão independente de juristas que
tive a honra de presidir, juntamente com a Profª. Dra. Flávia Ribeiro e o
Tabelião de Notas, Protesto e Registrador André Gomes Netto, somando-se
às preciosas contribuições recebidas da competente equipe da Senadora
Thronicke, liderada pelo Assessor Parlamentar, Prof. Dr. Victor Teixeira
Nepomuceno.
2 Na maioria dos
países europeus a execução de títulos executivos é realizada sem a
interferência do Judiciário, sendo os procedimentos “administrativos”
executivos de atribuição do agente de execução, intervindo o Estado-juiz
somente quando provocado para embargos do devedor ou outros incidentes
que exijam sua atuação cabal (v.g. na França, pelo hussier; na Alemanha, pelo gerichtsvollzieher; em Portugal, pelo solicitador de execução; na Itália, pelo agenti di esecuzione; na Suécia, pelo kronofogde; na Espanha, pelo secretário judicial.
3Merecem ser destacados os seguintes estudos desenvolvidos sobre esse tema na doutrina brasileira: sob o prisma da crise da jurisdição estatal, a razoável duração do processo e os métodos alternativos de resolução de controvérsias, realizei
em sede de Pós-doutoramento na Universidade de Florença (2011/2012)
estudos a respeito deste e outros temas correlatos e, em 2014 publiquei
estudo intitulado Execução Simplificada e a Desjudicialização do Processo Civil: Mito ou Realidade (coletânea de estudos em Homenagem ao Prof. Araken de Assis Execução civil e temas afins – do CPC/1973 ao Novo CPC. Editora
Revista dos Tribunais); esse estudo foi em 2019 atualizado em parceria
com o Juiz de Direito Auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça, Dr.
Alexandre Chini (intitulado Desjudicialização do Processo de Execução de Ttítulo Extrajudicial, publicado
na coletânea denominada “CNJ e a efetivação da Justiça”); merece também
destaque a tese de doutorado em direito da Profª Dra. Flávia Pereira
Ribeiro, defendida em 2012, sob o título Desjudicialização da Execução Civil (publicada em 2013 pela Editora Saraiva); Rachel Nunes de Carvalho Farias publicou a monografia intitulada Desjudicialização do Processo de Execução – O modelo português como uma alternativa estratégia para a execução civil brasileira (Editora Juruá, 2015); Taynara Tiemi Ono, em monografia intitulada Execução por Quantia Certa – Acesso à justiça pela desjudicialização da execução civil (Editora Juruá, 2018); Humberto Theodoro Jr., “O futuro do processo civil brasileiro”. Revista do Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Brasília: TRF 1, vol. 30, n. 7/8. p. 39, jul.-ago. 2018.
Vale registrar ainda que foram defendidas outras dissertações de
mestrado sobre o tema, anotando-se a de Luiz Fernando Cirluzo (USP) e
Marina Polli (CESUSC).
4 Vale lembrar
que além da qualidade dos serviços prestados pelos tabelionatos de
protestos, são eles permanente e rigorosamente controlados pelas
Corregedorias dos Tribunais de Justiça e pelo Conselho Nacional de
Justiça, o que garante um resultado de maior transparência e eficiência.
5 Sobre esse tema, v. a nossa obra intitulada Arbitragem, Cap. III, item 3.9, pp. 164/167 (Rio de Janeiro: Forense, ed. 3ª, 2019).
6 Informam
também os dados do CNJ que no ano de 2018 as despesas do Poder
Judiciário somaram R$ 93,7 bilhões de reais (= 1,4 PIB), correspondente a
2,6% dos gastos da União, Estados e Municípios; o custo total da
Justiça no mesmo período foi de R$ 449,53 por habitante.
*Joel Dias Figueira Júnior é
pós-doutor em Direito Processual Civil. Doutor e Mestre em Direito
Processual Civil. Especialista em Direito Civil e Processual Civil.
Desembargador aposentado do TJ/SC. Advogado, consultor jurídico e
árbitro. Professor convidado da Escola Superior da Advocacia-SC e
CESUSC.
Fonte: Migalhas
A Anoreg/BR divulga produções acadêmicas e científicas. Entretanto, os artigos são inteiramente de responsabilidade do autor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário