Como a pós-pandemia deve afetar o comportamento na gastronomia, acentuando tendências com menos acessórios e distrações
10 mai 2020
05h11
atualizado às 09h28
Um dos setores mais afetados pela pandemia, os restaurantes no Brasil e
no mundo tiveram de se adaptar à nova realidade de delivery e
drive-thru. Novos esquemas e operações foram rapidamente montados e,
mesmo atrás de portas fechadas, as cozinhas continuaram, senão a todo
vapor, pelo menos em funcionamento. Mas é fato que despachar comida para
a casa das pessoas, geralmente a preços mais baixos do que os cobrados à
mesa, não enche o caixa de ninguém, e em algum momento os salões devem
voltar a ganhar clientes. E como será esse futuro? Como serão os
restaurantes da nova normalidade?
Portugal, por exemplo, determinou distância de 2 metros entre as mesas,
entre outras medidas anunciadas na sexta-feira, e um estabelecimento em
Amsterdã, na Holanda, está testando esquema de miniestufas de vidro
para até três clientes, servidos por garçons com escudos faciais, luvas e
pás parecidas com as de pizzaiolos para evitar contato. A ideia é
curiosa e ainda não é possível saber se funcionaria por aqui mas, na
opinião de chefs ouvidos pelo Estado, as mudanças no negócio, físicas e conceituais, serão inevitáveis a partir de agora.
O pós-pandemia deve acentuar algumas tendências já vistas aqui e ali,
de os restaurantes terem menos acessórios e distrações e investirem no
essencial. "É algo que já estava ocorrendo no mundo. Estamos vendo chefs
largando suas estrelas e investindo em conceitos mais casuais e
acessíveis", diz Rodrigo Oliveira, do Mocotó e do Balaio IMS. "O mote
agora será a inclusão. As pessoas terão menos recursos e vão procurar
experiências mais essenciais quando forem comer fora daqui em diante",
acredita.
Adaptações. De olho nesse novo consumidor há quem pense em mudar
horários e trabalhar com cardápio mais enxuto e acessível. É o caso da
chef Manu Buffara, do Manu, em Curitiba, que no ano passado entrou para a
lista dos 50 melhores restaurantes da América Latina. Ela, que só abria
para o jantar, deverá passar a servir também almoço - e a preços mais
baixos.
"Vai ser difícil para todo mundo, sem dúvida", diz a chef. "Mas as
pessoas não vão deixar de sair nem os restaurantes de existir. Muita
coisa, no entanto, terá de ser repensada. Vai ser a hora de usar a
criatividade e transformar o chuchu em caviar."
Manu aponta pelo menos um efeito colateral "do bem" quando todos
puderem sair livres, leves e soltos por aí: a valorização do trabalho na
cozinha. "As pessoas agora estão cozinhando em casa e vendo como é
difícil fazer comida. Você acaba de preparar o café da manhã e já se vê
enrolado com o almoço, não é fácil. Estão sentindo o quanto a gente
trabalha em um restaurante e o quanto é difícil organizar a operação."
É mais ou menos o que pensa o chef americano Dan Barber, dono do Blue
Hill, em Nova York, e do Blue Hill at Stone Barns, em Westchester
County, este considerado o 28.º melhor restaurante do mundo em 2019:
"Muita gente está começando a cozinhar agora, experimentando comida em
casa e descobrindo que ela é importante para a saúde, porque aqui nos
Estados Unidos não fazemos essa relação direta entre comida e saúde",
disse ao Estado. "Acho que as pessoas, de modo geral, vão
começar a olhar tudo de forma diferente, incluindo os restaurantes e os
ingredientes usados."
Com as casas fechadas, ele comanda a iniciativa ResourcED by Blue Hill,
em que vende caixas com diversos produtos frescos entregues pelos
fornecedores de suas duas cozinhas. Junto manda instruções de como
preparar os ingredientes e umas dicas a mais. "Estamos ajudando grupos
de produtores locais. Mandamos informações, como um glossário,
explicando de onde vêm aqueles produtos, quem os produz, de que forma,
etc. É educativo."
Valorização do local. Assim como a iniciativa de Dan, o caminho de
volta à simplicidade passa pela valorização dos produtos locais e
sazonais, outra forte tendência que deve ganhar novo fôlego quando as
portas puderem ser reabertas. "Nossa missão é nos manter com
criatividade, para continuar sendo atrativos para as pessoas, e também
ser mais locais do que nunca, apoiando a nossa rede de abastecimento,
com mecanismos que beneficiem o fazendeiro, o pescador, o produtor de
queijos", afirma Jorge Vallejo, chef do Quintonil, na Cidade do México,
cujo menu de 11 pratos garante a ele um lugar frequente entre os
melhores do mundo e da América Latina.
Jorge se juntou a outros chefs estrelados mexicanos para vender caixas
de ingredientes de seus fornecedores - a R$ 700 para duas pessoas - e
faz "lives" para ensinar a usá-los.
Além dos produtos, o chef deve voltar os olhos para o consumidor local,
não muito frequente em suas mesas. "A clientela do Quintonil antes da
pandemia era, na maioria, de estrangeiros, mas agora teremos de olhar
novamente para o consumidor local e entender o que ele busca", afirma.
Fisicamente falando. E na prática, como deve ser a reabertura? Ainda há
muitas dúvidas. "Os clientes terão de ficar mais afastados uns dos
outros, o que muda a decoração, o estilo e o tamanho dos salões", diz
Carla Pernambuco, do Carlota.
As ideias em geral vão do uso de cardápios descartáveis ou digitais,
por meio de QR Code, até a instalação de biombos entre as mesas, número
restrito de clientes por turno de serviço e medidas que deixem as casas
mais arejadas.
Também não está claro como garçons e o resto da equipe poderão ficar
mais protegidos, mas serão preocupações permanentes de agora em diante,
assim como a segurança alimentar e a higiene, que passarão a fazer parte
da experiência do consumidor, na opinião de Benny Goldenberg, sócio de
Paola Carosella no Arturito e no La Guapa. "O consumidor estará muito
mais atento a isso a partir de agora."
Benny, que também é sócio no Mangiare, acredita que o setor será muito
impactado e a capacidade de se adaptar pode fazer a diferença. "Tem a
ver com gestão. Não é só passar pela crise, mas como você sairá do outro
lado", afirma. "O importante será entender o cenário o quanto antes e
se adaptar a ele."
Ele espera que a reabertura gradual de países europeus, como Itália e
França, dê alguma ideia do caminho a seguir por aqui também. "O
delivery, está claro, não é uma solução, está saturado. Vamos ver como
os restaurantes vão reagir lá fora para ver se funciona para nós."
Thiago Bañares, chef do Tan Tan, acompanha a reabertura de
estabelecimentos na Ásia e acredita que agora deve ser uma chance de
exercitar a criatividade, para encontrar novas saídas para novos
problemas que vão aparecer. "Teremos de aceitar que o modelo de negócio
atual vai morrer, mas vai sobrar gente com boas ideias."
Nas contas da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel)
até 40% dos negócios em todo o País podem fechar as portas e 2,4 milhões
de profissionais podem perder seus empregos. Quase um cenário de
guerra, compara Júlio Raw, do Z Deli. "Mas é uma oportunidade única que
uma guerra e agora essa doença trazem de mudança, de cada um ficar com o
que é mais importante para si."
O QUE ELES PENSAM
"Vai ser a hora de usar a criatividade e transformar o chuchu em caviar"
Manu Buffara, CHEF DO MANU
"Muita gente está começando a cozinhar agora e descobrindo que é importante para a saúde"
Dan Barber, CHEF DO BLUE HILLS E DO BLUE HILLS AT STONE BARNS
"Talvez as pessoas pensem melhor nos seus hábitos de consumo e a partir daí se façam questionamentos que provoquem uma mudança"
Cafira Foz, CHEF DO FITÓ
"Devemos ser mais locais do que nunca e apoiar o fazendeiro, o pescador, o produtor de queijos"
Jorge Vallejo, CHEF DO QUINTONIL
"Se engana quem pensa que restaurante é massa, carne, frutos do mar. É
um lugar de restauração, tão importante em um momento como agora"
Rodrigo Oliveira, CHEF DO MOCOTÓ E DO BALAIO IMS
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