Combate à Covid-19
Enquanto especialistas em saúde pública analisam se as curvas de
propagação do novo coronavírus já permitem um abrandamento da
quarentena, um novo embate entre entes federativos — estados e
municípios — se avizinha do Judiciário. Até então, as fagulhas que mais
vinham iluminado a opinião pública diziam respeito ao atrito entre o
governo federal e os governadores (veja abaixo).
Em vários estados, tribunais de Justiça começam agora a apreciar se legislações municipais que contrariam decretos estaduais podem ou não ser admitidas.
Em geral, as cortes estaduais estão solucionando a questão afastando as normas municipais. A ConJur fez um levantamento sobre as principais decisões a respeito.
Texto maior
A questão de fundo reside basicamente no artigo 24, XII, da Constituição:
Casos
Nesta quinta-feira (30/4), ao julgar pedido de suspensão liminar, o presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, desembargador Geraldo Francisco Pinheiro Franco, manteve decisão que obriga o município de Sertãozinho a cumprir medidas estabelecidas pelo Decreto Estadual 64.881/20, que institui quarentena em SP em decorrência do avanço da Covid-19.
O decreto determina a suspensão das atividades em estabelecimentos privados de serviços e atividades não essenciais. A despeito disso, o decreto municipal de Sertãozinho autorizava a abertura parcial do "comércio em geral" até esta segunda-feira (4/5).
No caso, o desembargador Pinheiro Franco entendeu que a Constituição estabelece que temas ligados à proteção e defesa da saúde são de competência da União, dos estados e do Distrito Federal. Assim, decretos estaduais prevalecem sobre normas editadas no contexto municipal.
O TJ-SP também enfrentou os casos das cidades de São José dos Campos, Diadema e Cravinhos.
Macropolítica sanitária
Ao suspender decreto municipal de Umuarama (PR), o desembargador Leonel Cunha, do Tribunal de Justiça do Paraná, ponderou que a normativa, ao autorizar a abertura do comércio não essencial, contraria a macropolítica que foi adotada no estado para conter o avanço da Covid-19.
"Reputo acertada a interpretação de que o Decreto Estadual pretendeu estabelecer a suspensão das atividades não essenciais no âmbito do estado, especialmente em razão do risco de uma política pública municipal divergente afetar a macropolítica. (...) O retorno das atividades deve ser capitaneado no âmbito estadual, justamente para se evitar prejuízo à macropolítica sanitária", afirma a decisão, que também privilegiou decreto estadual.
O magistrado também ressaltou a decisão liminar de Moraes ao julgar a ADPF 672. Segundo o desembargador, foi chancelado o entendimento de que há competência concorrente entre União, estados e Distrito Federal para legislar sobre a defesa da saúde, enquanto os municípios, nos termos do artigo 30, inciso II da CF, possuem competência suplementar.
Ofensa às regras constitucionais
Uma disputa semelhante, também em São Paulo, envolveu um decreto de São José dos Campos. A normativa municipal autorizava o funcionamento parcial de serviços e atividades em geral, como comércios, shoppings, bares, restaurantes e salões de beleza, além de implantar o isolamento social seletivo.
Entretanto, segundo a desembargadora Maria Olívia Alves, da 6ª Câmara de Direito Público do TJ-SP, conforme a Lei Federal 13.979/20, o decreto estadual, ordenado por exigências epidemiológicas e sanitárias, não pode ser contrariado pela norma municipal, sob pena de ofensa às regras constitucionais de distribuição de competência.
"Frise-se, ainda, que da leitura do texto do Decreto Municipal 18.506/20, não se vislumbra o alegado fundamento técnico em que o agravante se embasa para invocar a pretendida prevalência de interesse local a fim de justificar o afastamento da norma estadual, não sendo demais acrescer que tampouco os documentos carreados a este recurso demonstram, de forma inconteste, a probabilidade do direito invocado", afirmou a desembargadora.
Direito à vida
Ao julgar pedido formulado por associação de lojistas de Campina Grande (PB) para que o comércio fosse reaberto com base em decreto municipal, o desembargador Oswaldo Trigueiro do Valle Filho, do Tribunal de Justiça da Paraíba, também decidiu privilegiar normativa estadual.
"A competência material reservada para os municípios no trato de questões locais diz respeito aos serviços que lhe são próprios, ou seja, aos assuntos que dizem respeito unicamente a sua comunidade em específico. Entretanto, como é por demais sabido, o combate à Covid-19 ultrapassa, e muito, os limites de circunscrição do Município de Campina Grande, a clamar medidas gerais e unificadas", afirmou o magistrado.
Ele também ressaltou que, segundo linha norteada pelo STF, diante de conflitos como esse, os direitos à vida e à saúde coletiva se sobrepõem à economia. Assim, o decreto estadual atinge de forma mais eficaz a tarefa determinada pela Constituição: garantir a saúde.
"Se o objetivo maior da nação no presente momento é zelar pela vida, pela saúde e pelo combate à pandemia do coronavírus, sendo essencial que todos os entes trabalhem nesse sentido, inclusive com a adoção de políticas públicas, não é lídimo e aceitável que algum ente se exima de implementá-las, sob o risco do impacto recair sobre todas as esferas do governo", afirmou.
Política dos governadores
Se os impasses entre municípios e estados chegam agora ao Judiciário, os atritos entre governadores e União já se revelaram há algum tempo.
O caso mais emblemático talvez seja o das disputas por respiradores artificiais, com União e estados se digladiando judicialmente pelos preciosos aparelhos — e a iniciativa privada no meio do fogo cruzado.
Governadores e governo central também têm disputado a competência para legislar sobre medidas de restrição de transporte e atividades econômicas. No Amazonas, um decreto estadual proibiu o transporte fluvial de passageiros, mas, até que houvesse uma definição, as águas judiciais da AGU e do governo amazonense se desencontraram.
Outro embate, desta vez no campo abstrato, ocorreu no STF, no julgamento da ADI 6.341. De quem é a competência administrativa sobre saúde pública? A Corte entendeu que há competência concorrente entre União, estados e municípios.
Caso de Sertãozinho (SP): 2080564-34.2020.8.26.0000
Caso de São José dos Campos (SP): 2076383-87.2020.8.26.0000
Caso de Campina Grande (PB): 0804938-16.2020.8.15.0000
Caso de Umuarama (PR): 0020002-72.2020.8.16.0000
Em vários estados, tribunais de Justiça começam agora a apreciar se legislações municipais que contrariam decretos estaduais podem ou não ser admitidas.
Em geral, as cortes estaduais estão solucionando a questão afastando as normas municipais. A ConJur fez um levantamento sobre as principais decisões a respeito.
Texto maior
A questão de fundo reside basicamente no artigo 24, XII, da Constituição:
Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:O artigo 30, I, complementa:
XII - previdência social, proteção e defesa da saúde;
Art. 30. Compete aos Municípios:No julgamento da ADPF 672, o ministro Alexandre de Moraes afirmou: "(...) nos termos do artigo 24, XII, o texto constitucional prevê competência concorrente entre União e Estados/Distrito Federal para legislar sobre proteção e defesa da saúde; permitindo, ainda, aos Municípios, nos termos do artigo 30, inciso II, a possibilidade de suplementar a legislação federal e a estadual no que couber, desde que haja interesse local".
I - legislar sobre assuntos de interesse local;
Casos
Nesta quinta-feira (30/4), ao julgar pedido de suspensão liminar, o presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, desembargador Geraldo Francisco Pinheiro Franco, manteve decisão que obriga o município de Sertãozinho a cumprir medidas estabelecidas pelo Decreto Estadual 64.881/20, que institui quarentena em SP em decorrência do avanço da Covid-19.
O decreto determina a suspensão das atividades em estabelecimentos privados de serviços e atividades não essenciais. A despeito disso, o decreto municipal de Sertãozinho autorizava a abertura parcial do "comércio em geral" até esta segunda-feira (4/5).
No caso, o desembargador Pinheiro Franco entendeu que a Constituição estabelece que temas ligados à proteção e defesa da saúde são de competência da União, dos estados e do Distrito Federal. Assim, decretos estaduais prevalecem sobre normas editadas no contexto municipal.
O TJ-SP também enfrentou os casos das cidades de São José dos Campos, Diadema e Cravinhos.
Macropolítica sanitária
Ao suspender decreto municipal de Umuarama (PR), o desembargador Leonel Cunha, do Tribunal de Justiça do Paraná, ponderou que a normativa, ao autorizar a abertura do comércio não essencial, contraria a macropolítica que foi adotada no estado para conter o avanço da Covid-19.
"Reputo acertada a interpretação de que o Decreto Estadual pretendeu estabelecer a suspensão das atividades não essenciais no âmbito do estado, especialmente em razão do risco de uma política pública municipal divergente afetar a macropolítica. (...) O retorno das atividades deve ser capitaneado no âmbito estadual, justamente para se evitar prejuízo à macropolítica sanitária", afirma a decisão, que também privilegiou decreto estadual.
O magistrado também ressaltou a decisão liminar de Moraes ao julgar a ADPF 672. Segundo o desembargador, foi chancelado o entendimento de que há competência concorrente entre União, estados e Distrito Federal para legislar sobre a defesa da saúde, enquanto os municípios, nos termos do artigo 30, inciso II da CF, possuem competência suplementar.
Ofensa às regras constitucionais
Uma disputa semelhante, também em São Paulo, envolveu um decreto de São José dos Campos. A normativa municipal autorizava o funcionamento parcial de serviços e atividades em geral, como comércios, shoppings, bares, restaurantes e salões de beleza, além de implantar o isolamento social seletivo.
Entretanto, segundo a desembargadora Maria Olívia Alves, da 6ª Câmara de Direito Público do TJ-SP, conforme a Lei Federal 13.979/20, o decreto estadual, ordenado por exigências epidemiológicas e sanitárias, não pode ser contrariado pela norma municipal, sob pena de ofensa às regras constitucionais de distribuição de competência.
"Frise-se, ainda, que da leitura do texto do Decreto Municipal 18.506/20, não se vislumbra o alegado fundamento técnico em que o agravante se embasa para invocar a pretendida prevalência de interesse local a fim de justificar o afastamento da norma estadual, não sendo demais acrescer que tampouco os documentos carreados a este recurso demonstram, de forma inconteste, a probabilidade do direito invocado", afirmou a desembargadora.
Direito à vida
Ao julgar pedido formulado por associação de lojistas de Campina Grande (PB) para que o comércio fosse reaberto com base em decreto municipal, o desembargador Oswaldo Trigueiro do Valle Filho, do Tribunal de Justiça da Paraíba, também decidiu privilegiar normativa estadual.
"A competência material reservada para os municípios no trato de questões locais diz respeito aos serviços que lhe são próprios, ou seja, aos assuntos que dizem respeito unicamente a sua comunidade em específico. Entretanto, como é por demais sabido, o combate à Covid-19 ultrapassa, e muito, os limites de circunscrição do Município de Campina Grande, a clamar medidas gerais e unificadas", afirmou o magistrado.
Ele também ressaltou que, segundo linha norteada pelo STF, diante de conflitos como esse, os direitos à vida e à saúde coletiva se sobrepõem à economia. Assim, o decreto estadual atinge de forma mais eficaz a tarefa determinada pela Constituição: garantir a saúde.
"Se o objetivo maior da nação no presente momento é zelar pela vida, pela saúde e pelo combate à pandemia do coronavírus, sendo essencial que todos os entes trabalhem nesse sentido, inclusive com a adoção de políticas públicas, não é lídimo e aceitável que algum ente se exima de implementá-las, sob o risco do impacto recair sobre todas as esferas do governo", afirmou.
Política dos governadores
Se os impasses entre municípios e estados chegam agora ao Judiciário, os atritos entre governadores e União já se revelaram há algum tempo.
O caso mais emblemático talvez seja o das disputas por respiradores artificiais, com União e estados se digladiando judicialmente pelos preciosos aparelhos — e a iniciativa privada no meio do fogo cruzado.
Governadores e governo central também têm disputado a competência para legislar sobre medidas de restrição de transporte e atividades econômicas. No Amazonas, um decreto estadual proibiu o transporte fluvial de passageiros, mas, até que houvesse uma definição, as águas judiciais da AGU e do governo amazonense se desencontraram.
Outro embate, desta vez no campo abstrato, ocorreu no STF, no julgamento da ADI 6.341. De quem é a competência administrativa sobre saúde pública? A Corte entendeu que há competência concorrente entre União, estados e municípios.
Caso de Sertãozinho (SP): 2080564-34.2020.8.26.0000
Caso de São José dos Campos (SP): 2076383-87.2020.8.26.0000
Caso de Campina Grande (PB): 0804938-16.2020.8.15.0000
Caso de Umuarama (PR): 0020002-72.2020.8.16.0000
Tiago Angelo é repórter da revista Consultor Jurídico.
André Boselli é editor da revista Consultor Jurídico.
Fonte: Revista Consultor Jurídico.
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