sábado, 24 de agosto de 2013

'Se advogado for desvalorizado, cidadania será implodida'

Voz da sociedade

A desconsideração da prerrogativa de inviolabilidade dos escritórios de advocacia rendeu à delegada da Polícia Civil Diná Aroldi, da Comarca de Ibirubá, no Rio Grande do Sul, um ato de desagravo público na Câmara de Vereadores, no dia 23 de julho pela seccional gaúcha da OAB. Segundo a entidade, a delegada, além de atender mal o advogado Octacílio Bohn Edler, insinuando que o profissional tivesse vínculo criminoso com um cliente, pediu ao juízo local Mandado de Busca e Apreensão em seu escritório.

Quatro dias antes desse evento, em Porto Alegre, o Pleno da OAB gaúcha anunciava a aprovação do pedido de desagravo público à advogada Raquel Simone Bernardi Caovilla, ligada à subseção de Cachoeirinha. Motivo: ela se sentiu desrespeitada pelo juiz Guilherme da Rocha Zambrano por interferência em acordo de honorários durante audiência trabalhista. De acordo com os autos, o juiz tem se dirigido aos advogados de forma ofensiva, além de relatar que a tabela da OAB, prevendo honorários de 20%, é ilegal, imoral e inconstitucional. O ato de desagravo está previsto para outubro.
Dr. Marcelo Bertoluci, presidente da OAB do RS - 23/08/13 [João Henrique Willrich]‘‘Nesses dois eventos não foram desrespeitados apenas os profissionais ou a advocacia, mas a cidadania. O advogado é possuidor de delegação pública para representar o seu cliente. Se o profissional for desconsiderado, quem perde é o cidadão’’, diz o presidente da seccional gaúcha, Marcelo Bertoluci (foto).

Em entrevista concedida à ConJur, Bertoluci explica que, ao contrário do que possa parecer, os casos de interferências em honorários e de violação de escritório não são exceções e se somam a dezenas de pequenos entraves que impedem os advogados de trabalhar. De acordo com a Comissão de Defesa, Assistência e das Prerrogativas da Ordem gaúcha, são abertos, em média, cerca de 40 procedimentos por mês. Neste ano, o Pleno já aprovou 12 desagravos públicos, tendo sido feitos seis.

Muitas questões são resolvidas pelo diálogo interinstitucional entre a OAB e as corregedorias dos tribunais; outras têm extrapolado essa instância e vão parar no Conselho Nacional de Justiça, no Conselho Federal da própria Ordem ou no Conselho Nacional do Ministério Público.

‘‘Antes dos Conselhos, o nosso limite era a corregedoria, com resultados tímidos. E não poderia ser diferente: era a própria autoridade coatora se autoexaminando. Já os conselhos superiores têm atuado de forma autônoma, rápida dinâmica e efetiva’’, atesta Bertoluci.

Nascido em 14 de novembro de 1972, em Porto Alegre, Marcelo Bertoluci formou-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul em dezembro de 1994. Também na PUC-RS, fez especialização em Ciências Penais e mestrado em Ciências Criminais. É professor de Direito Penal nos cursos de especialização de Administração, Contabilidade e Economia pela universidade. Atuante na área criminal, tem mandato de três anos à frente da seccional, sucedendo Cláudio Lamachia, atual vice-presidente da OAB nacional

A entrevista foi concedida no último dia 19 de agosto, ao final de audiência pública que tratou do tema das prerrogativas na sede da entidade. 

Leia a entrevista:
ConJur — Que prerrogativas do advogado são mais violadas?
Marcelo Bertoluci — Respondo com tranquilidade, pois presidi comissão sobre esse tema na gestão passada. Num levantamento feito nas 106 subseções do estado, em 2011 e 2012, mapeamos essas violações. Uma das mais recorrentes é o aviltamento de honorários, a fixação dos nossos honorários em valores muito baixos. Também identificamos a dificuldade de acesso às autoridades — juízes, desembargadores, agentes do Ministério Público. Mais: falta de urbanidade no trato com os profissionais da advocacia.

ConJur — Nos balcões dos cartórios, o desrespeito é comum?
Marcelo Bertoluci — Exatamente. Observa-se falta de atenção e bom trato com os profissionais que estão ali representando o interesse de seus clientes. A massificação do sistema e o excesso de processos, aliados às limitações físicas, prediais, acabam por impor um stress a mais ao advogado.

ConJur — Isso só acontece na Justiça?
Marcelo Bertoluci — Recebemos muitas reclamações sobre violações de prerrogativas também nas agências do INSS. O advogado vai à agência, recebe uma ficha de atendimento e só pode tratar de um único tema administrativo. Quer dizer, o advogado que tem dois ou três temas relativos a um cliente não pode ser atendido com aquela ficha.

ConJur — Recentemente, o desembargador Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, do TRF-4, julgou um caso desses. Naquele episódio, manteve sentença da 2ª Vara Federal de Itajaí, que garantiu ao advogado o direito de protocolar, administrativamente, mais de um requerimento de benefício por atendimento. Marcelo Bertoluci — Essa decisão foi muito comemorada pela OAB gaúcha. Inclusive, oficiamos ao tribunal, cumprimentando o desembargador Thompson Flores.
ConJur — Esse problema será resolvido?
Marcelo Bertoluci — É o que esperamos, porque geralmente comunicamos a Superintendência do INSS em Brasília. Assim, pelas informações que nos chegam diariamente, constatamos melhoras de atendimento em algumas regionais da autarquia. Mas é preciso melhorar ainda mais.

ConJur — Qual é a reclamação em relação aos honorários?
Marcelo Bertoluci — É a absurda e incompreensível interferência de alguns magistrados em contratos privados de honorários. Vamos imaginar uma relação sadia entre o cliente e seu profissional e, por alguma razão — falta de respeito, de bom senso ou de conhecimento da lei —, esta sofre interferência. Pior: vamos imaginar um magistrado afirmando, em audiência, que a parte não deve pagar nada a seu advogado — os honorários contratuais. Não podemos concordar com essa conduta de forma alguma.

ConJur — O Ministério Público do Trabalho gaúcho já se posicionou no sentido de que não é possível a cobrança de honorários contratuais se o trabalhador litiga sob o abrigo do sindicato da categoria. O que diz disso?
Marcelo Bertoluci — Em março, fomos pessoalmente à sede do MPT para apontar a real natureza da verba honorária no campo da Justiça do Trabalho. Sustentamos a posição do Conselho Pleno da OAB, tomada na gestão Cláudio Lamachia na OAB-RS, de que, em todas as hipóteses, os honorários são devidos. Aliás, essas tentativas de interferência já geraram a aprovação de dois desagravos recentes, de juízes do Trabalho. Foram aprovados pelo Pleno e estão em vias de cumprimento. Então, nós não podemos concordar com a relativização do direito sagrado dos advogados de perceberem a verba honorária.

ConJur — O que a OAB-RS tem feito a esse respeito?
Marcelo Bertoluci — A defesa das prerrogativas é uma ação permanente da nossa seccional, sendo que muitas atuações gaúchas foram encampadas no âmbito nacional. Criada em 2007 pela Ordem gaúcha, a Ouvidoria de Honorários também foi outra ação pioneira implantada pelo Conselho Federal da Ordem. No último Colégio de Presidentes de Seccionais da OAB, em Belém, apresentamos o projeto Caravana das Prerrogativas. Diante da importância e do pioneirismo, a iniciativa será implantada pelo Conselho Federal como parte da Campanha Nacional pela Dignidade dos Honorários, que é coordenada pelo vice-presidente nacional da OAB, Cláudio Lamachia. Em março passado, criamos, de forma também pioneira, a Procuradoria Regional de Defesa das Prerrogativas. Ou seja, além do trabalho voluntário, abnegado, de mais 100 integrantes da CDAP, nós, hoje, temos um advogado contratado pela seccional só para cuidar desse tema de forma profissionalizada.

ConJur — Um profissional exclusivo?
Marcelo Bertoluci — Para cuidar da tentativa de violação e, quiçá, da violação às prerrogativas. Ele vai representar juridicamente todos os colegas, inclusive os das subseções no interior do estado. Em síntese, a instituição OAB cuida do problema em nível institucional. Em nível jurídico, cuida o nosso advogado dedicado à causa.

ConJur — A questão dos honorários na Justiça do Trabalho pode ser resolvida no âmbito administrativo ou dependerá de ações judiciais?
Marcelo Bertoluci — Nós acreditamos que será possível resolver sem partir para a judicialização. A Ordem tem atuado firmemente, na base do diálogo, do entendimento, em todas as esferas. No campo administrativo, temos os desagravos; no campo correicional, junto às corregedorias e aos Conselhos Superiores. Agora, se necessário, iremos ao campo judicial. Nas nossas visitas ao Tribunal Regional do Trabalho, mostramos que o destinatário das nossas tarefas é um só: o cidadão. E fizemos ver que questões doutrinárias ou conceituais não podem passar por cima da dignidade profissional. Se a advocacia for desvalorizada, a cidadania e a democracia restarão implodidas.

ConJur — Recentemente, o criminalista Cesar Peres apontou falta de magistrados nos gabinetes e outros que despacham de casa. Até que ponto isso atrapalha o trabalho do advogado?
Marcelo Bertoluci — A jurisdição é uma delegação permanente. O magistrado é magistrado nas 24 horas do dia. E o advogado, por determinação legal, tem direito de acessar, a qualquer tempo, a autoridade. Então, sempre que o advogado vai ao foro ou ao tribunal e não encontra o magistrado — e vem a alegação de que ele está trabalhando fora do seu recinto —, há violação de prerrogativa. Afinal, isso limita o acesso e inibe seu direito de fala e de petição. Posterga ou até elimina o acesso à Justiça. Não há conveniência administrativa que justifique a falta do magistrado, no plano físico, permanentemente, no horário funcional, nos foros e tribunais.

ConJur — Qual tem sido a resposta da seccional?
Marcelo Bertoluci — Esse caso específico é da Justiça estadual. Nós instauramos diversos expedientes em razão de situações concretas e já oficiamos as corregedorias. É importante ressaltar que a Ouvidoria de honorários, que cuida de prerrogativas de modo geral, é vinculada ao gabinete da Presidência da OAB. Chegando aqui a denúncia, eu cuido pessoalmente do caso, junto com minha assessoria. Nós respondemos e atuamos no prazo máximo de 48 horas.

ConJur — A OAB já tentou reunir os magistrados oriundos do quinto constitucional da advocacia para ajudá-la na tarefa de esclarecimento sobre a importâncias das prerrogativas?
Marcelo Bertoluci — Na gestão passada, foram feitos vários encontros com magistrados do quinto. Recentemente, dia 12 de agosto, promovemos nova reunião com os magistrados da Justiça estadual, federal e trabalhista para fazer essa interlocução. Afinal, o advogado que virou magistrado é um porta-voz, sim, dos anseios da classe. Ele passa para a posição de juiz, mas leva junto a cultura da classe.

ConJur — Alguns bate-bocas entre juízes e advogados, notadamente na Justiça do Trabalho, têm provocado a interposição de Exceções de Suspeição, geralmente indeferidos. É que o TRT não reconhece a falta de urbanidade do juiz como fator de impedimento. A OAB tem ciência do problema?
Marcelo Bertoluci — A urbanidade é fundamental nas relações profissionais e institucionais. Nós cobramos dos nossos associados uma postura compatível com a dignidade da profissão. Nosso papel não é discutir o mérito da decisão judicial, mas chama a atenção o baixíssimo número de Exceções opostas por advogados aceitas pelo Judiciário. Isso causa muita apreensão entre os advogados. É um sinal jurisprudencial evidente, mas estamos atentos.

ConJur — Que resultado é esperado dessa audiência pública da OAB-RS sobre prerrogativas?
Marcelo Bertoluci — Trata-se de um ato oficial da OAB no mês do advogado. Com ele, a Comissão de Defesa, Assistência e das Prerrogativas pretende ouvir os advogados, as pessoas em geral, a cidadania, sobre as dificuldades no exercício das prerrogativas profissionais. E por que digo cidadania? Porque, numa primeira leitura, a desconsideração às prerrogativas diz respeito ao profissional advogado. Ocorre, entretanto, que o advogado é o elo entre o jurisdicionado e o Poder Judiciário. Por isso, uma vez desrespeitado, toda a cidadania é atingida em seus caros direitos. Ou seja, a prerrogativa não é um direito corporativo colocado no Estatuto da Advocacia. É um direito com roupagem de munus publico [que emana do poder público ou da lei e que é exercido em proveito da coletividade]. Sempre que a fala de um advogado for tolhida, está se calando a boca de um cidadão.

ConJur — Qualquer pessoa pode participar das audiências e denunciar atos atentatórios às prerrogativas?
Marcelo Bertoluci — Sim. Todos estão convidados a se fazerem presentes na OAB e apontarem onde estão os riscos ao exercício da advocacia, o que viole o Estatuto ou a nossa Constituição, enfim, o que abale a estrutura do Estado Democrático e de Direito. É importante frisar que esta audiência pública em Porto Alegre é um movimento institucional destinado à capital. No interior do estado, a partir de 9 de setembro, estaremos retomando as Caravanas das Prerrogativas.

ConJur — Como se dará essa ação?
Marcelo Bertoluci — Este grupo percorrerá as 106 subseções, recolhendo sugestões e relatos de violações da advocacia. Nós iremos a cada recanto do Rio Grande ouvir, planilhar, estabelecer a ação concreta, agir e, depois, prestar contas a quem gerou a demanda. Aliás, a ideia das Caravanas nasceu aqui e já se espalhou por mais de dez estados, porque foi considerado o melhor instrumento para esse propósito.

ConJur — O que vem na sequência?
Marcelo Bertoluci — A seccional, por meio da Comissão, vai instaurar um Expediente, seja perante as corregedorias dos tribunais ou perante os Conselhos Nacionais, para apurar as violações. Tudo tem de ter início, meio e fim, para que não passe em branco. 
Jomar Martins é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio Grande do Sul.

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