terça-feira, 25 de junho de 2013

Constituinte exclusiva é desnecessária e perigosa

Ponderações jurídicas

A ideia lançada nesta segunda-feira (24/6) pela presidente da República Dilma Rousseff de convocar um plebiscito que decidirá sobre a instalação de uma Assembleia Constituinte para tratar exclusivamente de reforma política é desnecessária, juridicamente duvidosa — e perigosa. Essa é a opinião da maioria dos advogados e ministros, aposentados e em atividade, do Supremo Tribunal Federal ouvidos pela revista Consultor Jurídico.

Desnecessária porque é perfeitamente possível fazer a tão esperada reforma política dentro dos marcos legítimos fixados pela Constituição Federal de 1988. Ou seja, por meio de projetos de lei e propostas de emenda à Constituição.

Juridicamente duvidosa porque não é possível se convocar uma Assembleia Constituinte para tratar de um assunto específico. O poder constituinte originário é ilimitado. Logo, poderia avançar para muito além da reforma política. E perigosa porque constituinte não têm compromissos com a ordem jurídica vigente. Logo, é possível romper com a ordem vigente hoje no país e que garantiu, até hoje, 25 anos de estabilidade institucional.

“Sob a roupagem da reforma política, pode-se reestruturar o país. Pode-se diminuir o tempo de mandato do presidente da República, por exemplo. Alterar a forma de escolha dos ministros do Supremo ou fixar mandatos. Na prática, é a criação de um quarto poder que poderá mais do que os outros três poderes”, afirmou à ConJur um ministro do Supremo Tribunal Federal que criticou a ideia. Para ele, reforma política se faz por meio de leis e emendas à Constituição.

O ministro aposentado do Supremo Ayres Britto afirmou que enxerga bons propósitos na ideia da presidente da República. “Vê-se que ela está bem intencionada, que quer acertar”, disse. De acordo com o ministro, contudo, a Constituição Federal não dá ao Congresso o poder de convocar um plebiscito para tratar da matéria específica. “O Congresso Nacional pode, por motivos de conveniência e oportunidade, repassar para o povo, convocado plebiscitariamente, seu poder normativo. Ou seja, só pode convocar o povo a decidir sobre os temas que ele próprio, Congresso, tem legitimidade para decidir. Não é o caso de convocação de plebiscito para decidir a instalação de uma Assembleia Constituinte”, disse.

Ayres Britto deu exemplos práticos. O Congresso convocou um referendo para decidir sobre o desarmamento no Brasil. Momentaneamente, portanto, deixou de lado a democracia representativa, por meio da qual deputados e senadores fixam os marcos normativos do país, e convocou a população a se manifestar por meio da democracia direta. Mas o Congresso passou ao povo o poder de deliberar em seu lugar, sobre uma decisão que ele mesmo poderia tomar.

O Congresso não poderia, por exemplo, convocar um plebiscito para decidir sobre a fixação da pena de morte no Brasil. Isso porque ele próprio não tem o poder de legislar em relação ao tema. Logo, se não cabe ao Congresso decidir sobre a instalação de uma Assembleia Constituinte, não tem o poder de convocar um plebiscito para decidir sobre a matéria.

“Nenhuma Constituição tem vocação para o suicídio. Por isso, não prevê a possibilidade de se convocar uma Assembleia Constituinte. Toda Constituinte é a sentença de morte da Constituição anterior e, neste caso, o Congresso Nacional não pode convocar o povo para agir como o coveiro da Constituição de 1988, que agora é que começa a dar seus belos frutos”, afirmou Ayres Britto.

Ideia inusitada
O ministro aposentado do Supremo Carlos Velloso afirmou desconhecer a figura da “Constituinte exclusiva”. Para ele, uma mudança neste grau pode e deveria ser feita mediante emenda constitucional. “Isso é um despropósito. Uma medida para enganar a população que está nas ruas pedindo reforma”, disse o ministro, que presidiu o STF entre 1999 e 2001.“Essa medida de plebiscito, que eu considero um absurdo, é algo inusitado que esconde qualquer coisa porque não tem apoio na ordem jurídica. Sem dúvida, não tem fundamento jurídico”, criticou.


Já o ministro Marco Aurélio não entrou no mérito de ser ou não juridicamente possível um plebiscito para convocar uma Assembleia Constituinte, atribuindo à declaração da presidente um efeito de “força de expressão”. Para o ministro, como o momento exige uma tomada séria de providências, a presidente “usou algo para realmente impactar”. Marco Aurélio afirmou que a realização de um plebiscito é desnecessária, dada a insatisfação da sociedade ser evidente, e que a reforma política pode ocorrer por meio de emendas constitucionais.

“O que a presidente quis dizer foi ressaltar a necessidade de uma mudança de rota. E, portanto, de providências dos poderes constituídos, principalmente do Congresso. Será que é necessário o plebiscito? É só perceber anseios da sociedade, que quer mudanças no campo ético, no arcabouço normativo e atenção maior para os serviços públicos”, disse. O ministro afirmou que não imagina uma convocação extraordinária para a reforma política, “quando podemos consertar sem lançar mão de uma nova Constituinte”.

Proposta legítima
Para o ministro aposentado do STF Francisco Rezek, ex-juiz da Corte Internacional de Justiça de Haia, a nomenclatura “Constituinte” é menos importante diante do atual quadro do país. Ele considera que a presidente Dilma Rousseff parte da premissa correta de que os atuais membros do Congresso Nacional não são os melhores quadros para empreender uma reforma política.


O que importa, para o ministro, é que há uma reação diante da onda de manifestações nas ruas e da perda de representatividade dos membros do Congresso Nacional, que demonstram a necessidade de se fazer com urgência a reforma no sistema político do país. Ou seja, enxergam na ação da presidente uma boa intenção, que pode ser levada a cabo de outra forma.

“Um colegiado que fosse eleito só para tratar da reforma política, que não fosse constituído pelos membros regulares do Congresso, teria mais qualidade”, afirmou Rezek. O ministro afirmou que a discussão não é nova. Nos anos 1980, lembrou, se discutiu a possibilidade da eleição de uma Assembleia Constituinte separada do Congresso, que se dissolvesse após a elaboração da Constituição. Ao fim, se decidiu transformar o Congresso em Assembleia Nacional Constituinte.

“A ideia é correta. Não seria propriamente uma Assembleia Constituinte. Nós teríamos aí um colegiado para a reforma política na Constituição, para modificar na Constituição apenas o necessário para que o produto dessa mudança signifique a autêntica reforma política que todos esperam alcançar. É uma questão de adaptar a nomenclatura, mas a ideia é a melhor possível”, defendeu o ministro aposentado.

Processo de reforma
O advogado constitucionalista Gustavo Binenbojm questionou a necessidade política da convocação de uma Assembleia Constituinte diante da história recente do país. De acordo com ele, o fato de a Constituição de 1988, em seus 25 anos, ter sido alvo de 73 emendas mostra que o processo de reforma da Constituição do Brasil é um processo facilmente acessível pelo trabalho do constituinte derivado.


“O processo é factível, é alcançável. Por que, se é possível alcançar o resultado desejável no âmbito do Congresso e dentro dos marcos constitucionais em vigor, se instalar uma Assembleia Constituinte?”, questionou Binenbojm. “Não creio que haja a necessidade. Parte da reforma pode ser feita por emendas à Constituição e parte por meio de leis ordinárias”, completou.

O advogado lembrou uma frase do ministro Ayres Britto: “O poder constituinte originário é o poder que tudo pode, só não pode o não poder”. De acordo com o advogado, o poder de uma Assembleia Constituinte é juridicamente ilimitado, insuscetível de qualquer controle. “Há um risco inerente a qualquer processo constituinte originário, que é o risco para as instituições democráticas”, afirmou.

Gustavo Binenbojm lembrou que a instalação da Constituinte que deu à luz a Constituição de 1988 se deu a partir de um processo de ruptura com a ordem jurídica anterior, que havia esgotado seu lastro de legitimidade. “Não é o caso do Brasil de hoje, em que vivemos em um regime democrático, dentro de um Estado de Democrático de Direito. Se o poder de uma Assembleia Constituinte é juridicamente ilimitado, o próprio Supremo Tribunal Federal não terá liberdade para controlar. Há uma preocupação política com os rumos de uma convocação dessa natureza”, opinou o advogado.

“Sopesando bem os prós e contras, acho que essa energia popular presente nas manifestações nas ruas poderia ser canalizada para um processo de reforma construído dentro dos marcos da Constituição Federal de 1988, com a salvaguarda de que os direitos das minorias e os direitos e garantias fundamentais serão preservados”, concluiu.

O presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Marcus Vinícius Furtado Coêlho, também afirmou que do ponto de vista técnico, a proposta da presidente Dilma Rousseff se torna inviável. “Não apenas pelos riscos inerentes dessa iniciativa, como também em face do poder ilimitado que lhe permite reformar ou fazer o que bem entender. Em resumo, não é possível convocar uma Constituinte para discutir matéria ‘a’ ou ‘b’, pois é ela própria quem define”, afirmou.

Segundo Furtado Coêlho, nada impede que a iniciativa alcance matérias relativas à liberdade de imprensa, garantias individuais e tantas outras sobre as quais a sociedade precisa constantemente se manter vigilante para que não pereçam. “A atual Constituição, às vésperas de celebrar 25 anos, ainda é fator de mobilização social, como vemos agora, para assegurar a efetivação de direitos. Acaba sendo, portanto, uma carta em branco”, disse o presidente nacional da OAB.
Rafael Baliardo é repórter da revista Consultor Jurídico em Brasília.

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