quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Os bandidos, livres, agradecem

  • No Brasil, onde a elite intelectual adotou como ideal "o mundo sem armas", confunde-se propositalmente regulamentação com banimento
ARTIGO - DENIS LERRER ROSENFIELD 

Tornou-se quase uma compulsão nacional o Brasil procurar dar exemplos pelo mundo do que está fazendo, como se os demais países devessem seguir o seu caminho, pois aqui tudo dá certo. O caso do desarmamento é particularmente exemplar, pois, a propósito do massacre na escola de Sandy Hook, em Newton, os ideólogos do desarmamento logo se apressaram a dizer que os EUA deveriam seguir a política brasileira. Tudo tão simples assim?

Pitadas de antiamericanismo são, assim, destiladas, tendo como pano de fundo um suposto sucesso da política nacional de combate à violência. No Brasil, país onde a elite intelectual adotou como ideal "o mundo sem armas", confunde-se propositalmente regulamentação, que é o que se discute nos Estados Unidos, com banimento, que é justamente a bandeira desse setor da intelligentsia verde-amarela. Entre regulamentação e banimento existe um hiato político e filosófico gigantesco.

Aqui, os ideólogos do desarmamento, vorazes adversários da liberdade de escolha e da autodefesa, procuram banir o comércio de armas, deixando os cidadãos literalmente a mercê dos assaltantes e criminosos. Os bandidos, livres, agradecem penhoradamente, pois não precisam do comércio legal para se abastecerem. Aliás, pessoas que exercem a autodefesa, quando assaltadas, por possuírem armas não registradas em casa, tornam-se objeto de processos judiciais por terem transgredido a lei. Só falta a indenização de assaltantes e criminosos!

Nos EUA, a legislação que está sendo discutida, sob a coordenação do Vice-Presidente Joe Biden, não propugna o banimento das armas de fogo, pois sabe que a liberdade de escolha e o direito à autodefesa são assegurados constitucionalmente. O que está em questão é uma regulamentação. Assim, dentre algumas ideias defendidas, consta um cadastro nacional de proprietários de armas de fogo e a ausência de antecedentes criminais para a compra de armas. Medidas sensatas de fiscalização e controle. Se os desarmentistas nacionais fossem coerentes, defenderiam a política de Obama no Brasil, ou seja, haveria uma liberalização do comércio de armas, seguindo esses critérios de fiscalização e controle.

Sempre que uma tragédia com a de Sandy Hook acontece nos Estados Unidos, imediatamente a sociedade americana é descrita como violenta – com formadores de opinião defendendo essa ideia. Nessa narrativa entram considerações sobre a indústria cultural americana (cinema e TV), o tal culto às armas e as estatísticas cuidadosamente pinçadas para dar ares de ciência ao preconceito.

Os americanos são descritos como militaristas, violentos e armados “até dos dentes”. Supor-se-ia, então, que a criminalidade por armas de fogo seria, lá, muito maior do que a brasileira. Teríamos a conclusão lógica dessas premissas. Não é isto, contudo, o que ocorre.

Vejamos os dados. As informações sobre crimes foram extraídas do Escritório das Nações

Unidas sobre Drogas e Crime (The United Nations Office on Drugs and Crime - UNODC), que implementa medidas que refletem as três convenções internacionais de controle de drogas e as convenções contra o crime organizado transnacional e contra a corrupção. Os dados sobre armas foram extraídos do “Small Arms Survey”. Trata-se de um projeto independente de pesquisas, sediado no Instituto de Pós-Graduação de Estudos Internacionais e Desenvolvimento em Genebra, Suíça, fundado em 1999. É uma referência no debate sobre armas, tanto para desarmamentistas quanto para defensores de porte e posse de armas.

Existem aproximadamente 270 milhões de armas de fogo em mão civis nos Estados Unidos. A relação é de 83 a 96 armas para cada 100 habitantes. Isto é, quase uma arma para cada cidadão. Esses números astronômicos colocam o país na primeira posição em posse de armas de fogo em todo o mundo. O Brasil, por sua vez, possui 14 milhões de armas de fogo em mãos civis. Em cada 100 habitantes, apenas 8 possuem armas de fogo.

Os homicídios por armas de fogo no Brasil permanecem razoavelmente estáveis desde 2003. Em 2008 foram 34.678, isto é, 18,1 por 100 mil habitantes. Nos Estados Unidos, o número de homicídios também permanece estável. Porém, contrariando a argumentação desarmamentista, a média dos últimos anos naquele país não ultrapassa 10 mil homicídios por armas de fogo, ou seja, aproximadamente 2,9 para cada 100 mil habitantes. É significativamente inferior ao Brasil.

A Suíça é o terceiro país em posse de armas de fogo no mundo. Mesmo assim, em 2011, apenas 58 pessoas foram mortas por essas armas naquele país. Um país fortemente armado com insignificante número de vítimas de armas de fogo. Algo que contraria frontalmente a tese dos ideólogos brasileiros do desarmamento. Ademais, a Alemanha, embora seja o décimo quinto, registrou menos mortes do que a Itália, que ocupa a posição de número cinquenta e cinco. Foram 158 mortes por arma de fogo na Alemanha, 417 na Itália.

Desde 1997, o Brasil impõe restrições à posse e ao porte de armas, mas elas foram inócuas quando, em 1999, o estudante de medicina Mateus da Costa Meira invadiu um cinema e matou a tiros quatro pessoas. Em 2003, as leis brasileiras ficaram ainda mais restritivas, mesmo assim, foram novamente inócuas quando, em 2011, o estudante Wellington Menezes de Oliveira matou doze pessoas na Escola Municipal Tasso da Silveira, no Rio de Janeiro. A reação ao Massacre do Realengo, como ficou conhecida a tragédia, demonstra o pensamento mágico envolvido na defesa do desarmamento.

Como se não bastasse, alguns políticos estão propondo alterações no Estatuto do Desarmamento para incluir o artigo que foi rejeitado pela população em 2005. Além do desconhecimento da realidade, tais propostas mostram um profundo desprezo pela democracia e pela soberania do povo. Não é uma minoria parlamentar ideologizada que deveria se substituir a um referendo. O respeito às regras republicanas é essencial. Por que não um referendo sobre a liberdade de escolha e o direito à autodefesa?

Denis Lerrer Rosenfield é professor de filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul

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