domingo, 10 de fevereiro de 2013

É preciso repensar o modelo cautelar no processo penal

Observatório Constitucional

As estatísticas sobre prisões provisórias no Brasil não são nada animadoras. De acordo com o último relatório do Departamento Penitenciário Nacional, do Ministério da Justiça, a população carcerária atingiu, em junho de 2012, 549 mil presos, com a proporção de 288 presos por 100 mil habitantes.[1] Em 1992, esse número era de 74 presos por 100 mil habitantes, o que corresponde a um aumento de 380,5%, enquanto que, no mesmo período, a população brasileira cresceu apenas 28%. Segundo levantamento do anuário World Prison Brief (WPB), o crescimento da população carcerária no Brasil, nas últimas duas décadas, só foi superado pelo do Cambodja.

Além do preocupante crescimento da população carcerária, o que mais chama atenção no relatório é o número de pessoas presas em caráter provisório. Do total de presos, 191 mil são de pessoas aguardando julgamento, muitas delas amontoadas em unidades prisionais superlotadas e sem as mínimas condições de higiene, como se constatou nos mutirões carcerários realizados pelo Conselho Nacional de Justiça[2], sem contar que mais de 40 mil presos encontram-se, irregularmente detidos em delegacias de polícia, muitos inclusive já sentenciados.

Houve, no Brasil, nas últimas décadas, um notório incremento no uso da prisão cautelar. Em 1990, a proporção entre presos definitivos e provisórios era bem diferente do que se observa atualmente. Havia, naquele ano, 90 mil presos, dos quais apenas 18% (16,2 mil) eram presos provisórios. Entre 1990 e 2012, contudo, enquanto o número de presos definitivos aumentou 490%, o número de presos provisórios, no mesmo período, cresceu, espantosamente, 1.093%, alcançando, em junho de 2012, cerca de 40% da população carcerária.

Os mutirões carcerários coordenados pelo CNJ demonstraram que a falência do sistema prisional não pode ser dissociada das sérias deficiências do sistema de justiça criminal. A par dos inúmeros casos de prisões provisórias com prazo alongado, sem conclusão da instrução e sem sentença de primeiro grau, dois exemplos parecem ilustrar o quadro de abuso eloquente: no Espírito Santo encontrou-se acusado preso provisoriamente há 11 anos; no Ceará, verificou-se um quadro ainda mais grave, uma pessoa presa há mais de 14 anos em caráter provisório.

Nesse contexto, a edição da Lei 12.403/11, que ampliou consideravelmente o rol de medidas cautelares à disposição do juiz (CPP, art. 319), apresenta-se como relevante instrumento no esforço de alteração desse quadro. Trata-se de medidas que podem ser adotadas de ofício ou a requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou a requerimento do Ministério Público (CPP, art. 282, §2º). E o mais importante: contam com prioridade em relação à prisão preventiva (CPP, art. 282, §6º)[3].

De acordo com a nova redação do artigo 310 do CPP, o juiz, ao receber o auto de prisão em flagrante, deve adotar uma das seguintes providências: a) relaxar o flagrante, se ilegal; b) converter a prisão em flagrante em prisão preventiva, se presentes os requisitos do artigo 312 do CPP e não for possível a sua substituição por medida cautelar diversa da prisão; c) conceder liberdade provisória mediante imposição de uma, ou mais de uma, das medidas cautelares previstas no artigo 319 do CPP, entre as quais a fiança.

O artigo 319 do CPP elenca as seguintes medidas cautelares alternativas à prisão, que podem ser determinadas isolada ou cumulativamente (CPP, art. 282, §1º): comparecimento periódico em juízo, proibição de acesso ou de frequência a determinados lugares, proibição de manter contato com pessoa determinada, proibição de ausentar-se da comarca ou do país, recolhimento domiciliar nos períodos noturnos e nos dias de folga, suspensão do exercício da função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira, internação provisória, monitoração eletrônica e fiança.

Conforme observado na obra Prisão e Medidas Cautelares, Comentários à Lei 12.403, “o sistema processual brasileiro sempre se caracterizou pela bipolaridade (ou binariedade): prisão ou liberdade”. [4] Não sendo cabível a liberdade provisória com ou sem fiança, não dispunha o juiz, portanto, de outras medidas substitutivas da prisão cautelar, passando esta, em muitos casos, a ser a regra, desnaturando por completo o seu caráter de excepcionalidade.

Retrata-se na referida obra um interessante contraste do sistema então vigente com o modelo concebido pela Lei 12.403/11:

“Nosso sistema carecia de medidas intermediárias, que possibilitassem ao juiz evitar o encarceramento desnecessário. Essa bipolaridade conduziu à banalização da prisão cautelar. Muita gente está recolhida em cárceres brasileiros desnecessariamente. O novo sistema (multicautelar — art. 319 do CPP), oferece ao juiz várias possibilidades de não encarceramento.”

E assim prossegue-se, com inegável propriedade:
“Para contornar o problema prisional decorrente do excesso de prisioneiros, não basta apenas apostar nas penas e medidas alternativas à prisão, que são aplicadas no momento da condenação definitiva. O cenário nacional exigia (urgentemente) medidas que possibilitassem alternativas também à prisão cautelar, já que esta é a principal responsável pela superlotação carcerária.”

Um nítido exemplo disso pode ser observado na quantidade de Habeas Corpus em tramitação no Superior Tribunal de Justiça, aproximadamente 200 mil. E o que impressiona ainda mais é que metade deles, conforme dados da distribuição até 2011, deu entrada naquela Corte nos últimos três anos. Somente em 2012, até no final de setembro, foram ajuizados mais de 25 mil novos HCs. Como grande parte desse acervo tem por objeto a concessão de liberdade provisória, resta clara a urgência de se repensar o modelo cautelar no processo penal, o que se espera seja alcançado com as modificações trazidas pela nova lei. No Supremo Tribunal Federal, esse impacto também é visível. De acordo com estatísticas da Corte, apenas em 2012, até o mês de agosto, foram concedidos 221 HCs, grande parte por excesso de prazo.

Além das medidas cautelares, uma medida que poderia ter impacto positivo é a apresentação do preso em flagrante ao juiz. Cuida-se de procedimento expressamente previsto em tratados dos quais o Brasil faz parte, já incorporados ao Direito interno, como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (art. 9º, item 3, primeira parte do Decreto 592/92 — Pacto de Nova Iorque) e Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 7º, item 5, primeira parte do Decreto 678/92 — Pacto São José da Costa Rica).

Conforme bem lembrado por Delmanto Júnior, “desde que o Brasil ratificou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de Nova Iorque, existe, em nosso ordenamento, o dever (reiteradamente desrespeitado) de as autoridades policiais apresentarem a um juiz de Direito o preso em flagrante”. 
 
Trata-se, portanto, de importante mecanismo de controle da legalidade das prisões em flagrante, prevenindo-se prisões ilegais e até torturas no ato da prisão, situações constatadas nos mutirões carcerários realizados pelo Conselho Nacional de Justiça e constantemente noticiadas pela imprensa.
Diante desse quadro, mostra-se oportuna a iniciativa do CNJ em dar cumprimento às citadas imposições legais, conforme deliberação plenária daquele órgão em procedimento específico sobre o tema.
Esse procedimento precisa ser efetivamente aplicado pelos próprios magistrados. Estudos indicam que, até aqui, a Lei 12.403/2011 teve pouco impacto na diminuição da população carcerária brasileira. Embora o número de presos provisórios tenha crescido menos (em 2011, o aumento foi de 1%, ao passo que em 2010 foi de 2,9%), ainda há 217 mil pessoas encarceradas provisoriamente. E no estado de São Paulo, onde se concentra grande parte da população carcerária do país, a situação é ainda pior. O número de presos provisórios desse estado aumentou, no mesmo período, em 3,6%, o que representa mais do que o triplo do percentual nacional
.
De qualquer sorte, é importante ressaltar que, agora, dispõe o juiz, portanto, com um amplo leque de medidas cautelares diversas da prisão preventiva e que podem ser adotadas como providência mais justa ao caso concreto. É necessário, contudo, que tais medidas sejam efetivamente aplicadas. De nada adiantarão as mudanças implementadas se não houver, da parte do Judiciário, a clara percepção de que as medidas viabilizadas pela nova lei contam com prioridade em relação à prisão preventiva, e que esta, após a vigência da Lei 12.403/2011, somente se justifica quando devidamente demonstrada a inadequação das cautelares à disposição do juiz.

Um dado importante sobre a cultura do encarceramento no âmbito do próprio Judiciário foi revelado em diagnóstico publicado pelo Ministério da Justiça em 2010, sob o título Dez anos da política nacional de penas e medidas alternativas. Registrou-se nesse estudo que:

“Característica essencial das penas e medidas alternativas é que elas se constituem como sanção que não implica a privação de liberdade. Ante o perfil do autor do fato e da conduta praticada, a melhor maneira de promover sua responsabilização são as sanções a serem cumpridas em meio aberto. Nesses casos, a prisão, dadas suas consequências sociais e econômicas, é intervenção a ser evitada. No entanto, embora pareça contraditório, ainda é grande o número de réus sancionados por penas ou medidas que aguardam o julgamento do seu processo preso provisoriamente.”

Esse fenômeno, de acordo com o citado estudo, foi identificado por pesquisa realizada em cinco unidades da federação brasileira — Belém, Distrito Federal, São Paulo, Pernambuco e Porto Alegre—, em processos de furto. Constatou-se que, nas localidades pesquisadas, embora para a maioria dos réus sejam aplicadas penas e medidas alternativas, grande parte deles passa pela prisão cautelar. Assim concluiu Barreto (2007), autor da pesquisa citada no diagnóstico:

“Verifica-se que dos processos concluídos em que houve aplicação de pena, mais de dois terços resultaram em alternativa à prisão em São Paulo, Recife, Belém e Distrito Federal. Apenas em Porto Alegre este número é inferior a 50% [...].O tempo médio de prisão provisória para réus cujo processo teve como conclusão alguma medida alternativa à prisão é bastante significativo. Por exemplo, em todas as cidades, o tempo médio de prisão provisória dos réus condenados a cumprir penas restritivas de direito foi superior a um mês, sendo que em Recife esse número superou quatro meses e em Belém quase chegou a 10 meses.”

Esse dado, como se percebe, parece confirmar a utilização abusiva da prisão provisória.

A superação desse quadro vergonhoso no sistema prisional exige um mutirão institucional com a cooperação proativa de todos os setores envolvidos, tendo em vista também uma efetiva revisão da justiça criminal.

Fonte: Conjur.

Nenhum comentário:

Postar um comentário