domingo, 24 de agosto de 2025

O Direito que aprendi

Aprendi, ancorado no princípio da legalidade estrita ou da reserva legal, que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. O rol dos tipos penais é taxativo. Por isso, não se admite, sob qualquer aspecto, interpretação extensiva ou aplicação analógica em prejuízo do acusado: o poder punitivo do Estado só se legitima dentro dos estreitos limites da lei material penal.

Aprendi que ninguém pode ser condenado sem juízo de certeza. No processo penal, a dúvida não autoriza sentença condenatória; ao contrário, impõe a absolvição. Essa é a essência da presunção de inocência, pedra angular do devido processo legal.

Aprendi que o juiz que revela parcialidade deve se afastar — ou ser afastado — do processo, sob pena de nulidade absoluta. A imparcialidade não é virtude eventual, mas condição de validade da prestação jurisdicional. Por isso, além das hipóteses de suspeição, a legislação processual penal prevê causas objetivas de impedimento, igualmente destinadas a resguardar a confiança da sociedade na Justiça.

Aprendi, também, que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente, previamente constituída em lei: é o princípio do juiz natural, consagrado na Constituição como direito fundamental. Ele impede a criação de tribunais de exceção e assegura que a jurisdição não seja moldada ao sabor da conveniência política ou do caso concreto.

Aprendi que a pena, para ser legítima, deve observar o princípio da individualização, respeitando a pessoa do condenado, a gravidade do delito e as circunstâncias específicas do caso. O rigor cego não se confunde com justiça.

Aprendi que o Direito Penal deve atuar como “ultima ratio”, guiado pelos princípios da intervenção mínima e da fragmentariedade. Não cabe ao legislador — e muito menos ao julgador — transformar o Direito Penal em instrumento de controle exacerbado, quando outros ramos do Direito podem oferecer respostas mais adequadas.

Aprendi que a bagatela não deve ser criminalizada: o princípio da insignificância, reconhecido reiteradamente pela jurisprudência, impede que condutas de mínima ofensividade sejam tratadas como crimes, sob pena de banalizar o sistema penal e desviar a atenção dos verdadeiros conflitos relevantes.

Aprendi que a pena deve respeitar a dignidade da pessoa humana, observando o princípio da razoabilidade: não se toleram sanções cruéis, degradantes ou que aniquilem a esperança de reinserção social.

Aprendi, ainda, que o magistrado não deve opinar nem comentar causas sob sua jurisdição, porque sua palavra deve ser reservada aos autos, e não à arena pública de opiniões.

E aprendi, sobretudo, a distinguir entre justiçamento e julgamento justo. O justiçamento nasce da turba enfurecida, da vingança; é espetáculo de condenação, em que não há espaço para garantias nem para defesa. O julgamento justo, ao contrário, ergue-se sobre princípios, obedece à lei, respeita a prova, preserva a dignidade e busca a verdade sem se deixar contaminar pela paixão ou pelo clamor popular. Onde impera o justiçamento, reina o arbítrio; onde vigora o julgamento justo, floresce o Estado de Direito.

Enfim, aprendi que o Direito Penal só se sustenta quando fiel aos princípios que estruturam e legitimam o seu sistema normativo. Sempre que a pressa, a conveniência ou a paixão se sobrepõem à legalidade, ao juiz natural, à prova e à imparcialidade, o que se perde não é apenas um processo: é a própria credibilidade da Justiça — e, com ela, a confiança no Estado de Direito.

segunda-feira, 18 de agosto de 2025

O Direito que sonhei

O Direito que estudei e ensinei, erguido sobre os pilares da imparcialidade, da justiça e da equidade, parece, aos poucos, afastar-se do horizonte que um dia idealizei. Sonhei com uma ciência humanizada, voltada a pacificar conflitos, restaurar dignidades e semear justiça.

Na sala de aula, dizia aos alunos que o processo — expressão viva de um drama social — deveria ser bom, breve e barato (a regra dos três Bs – BBB), jamais um labirinto burocrático capaz de sufocar a esperança, como já advertira Franz Kafka. No fórum, acreditava que a palavra empenhada pelo advogado, pelo juiz, pelo Ministério Público e pelo cidadão possuía força ética na busca da verdade.

Mas o tempo, implacável, revelou-me desvios. O formalismo, tantas vezes, suplanta a essência; a astúcia, não raro, sobrepõe-se à verdade; e a ânsia de poder obscurece o sentido do servir.

Ainda assim, não renego o sonho. É nele que reside a centelha de resistência que transmiti às minhas filhas, hoje advogadas: acreditar que o Direito pode reencontrar-se com sua vocação primeira — não a de punir por punir, nem subjugar, mas de compor, equilibrar e libertar.

Talvez a distância entre o Direito que sonhei e o que hoje presencio seja também um chamado: recordar a todos nós — juízes, advogados, promotores, estudantes e cidadãos — que a justiça não se esgota nos códigos, mas pulsa, sobretudo, na consciência e no coração do ser humano.

terça-feira, 12 de agosto de 2025

O Colégio Santa Clara na década de 1930

Manuscrito deixado pela minha saudosa mãe, professora e poetisa Maria da Glória Dias Campos, nascida em 14/08/1920.

“No período de 1934 a 1937, dos 14 aos 17 anos que passei interna no Colégio Santa Clara, como órfã, todas as segundas-feiras, após a missa de costume — que antecedia o café da manhã — minha obrigação, como a das demais colegas, era a lavagem de roupas das cem órfãs, padres e freiras daquele educandário.

Naquela época, poucas eram as casas que possuíam água encanada, e o nosso colégio era uma delas.

A água era retirada de duas cisternas lá existentes: uma recolhia a água das chuvas; a outra era movida por cata-vento — isto quando havia vento —, o que, por vezes, dificultava até o nosso banho, realizado duas vezes por semana, sendo um deles aos sábados, no rio, em frente a Santarém.

Bem em frente à primeira prefeitura da cidade, existia, à beira do rio, um banheiro conhecido como “banheiro das freiras”. E aos sábados, lá íamos nós, em grande fila, com duas irmãs, para o banho.

Rezávamos para não chover, nem ventar… Sabem por quê? Pelo simples fato de as cisternas não encherem.

Uma vez secas, tínhamos de ir lavar roupa no igarapé dos padres, no Irurá, onde saciávamos a vontade de tomar banho.

Aos domingos à noite, uma das irmãs, após o jantar, lia a relação das órfãs que iriam lavar roupa.

Muitas vezes, mesmo sem estarmos em boas condições de saúde, escondíamos a verdade, já que era a única chance de sairmos e nos distrairmos um pouco.

E às cinco horas da manhã, após assistirmos à santa missa na capela do colégio e tomado o café, seguíamos o longo percurso, felizes, a papaguear rumo ao Irurá.

O carro de boi ia à frente, cheinho de sacas de roupa, um panelão com farofa, frutas e um pequeno rancho para o almoço do dia. Seu Chico, irmão da tia Neca, era quem conduzia a carroça.

O caminho era pela densa mata virgem, onde, aqui e ali, encontrávamos frutas silvestres como araçá, pitanga, goiaba, achuá, caju e manga — oferta da mãe natureza.

Ao chegarmos ao Irurá, mudávamos de roupa, merendávamos a farofa e caíamos no igarapé, onde passávamos quase o dia todo de molho, tomando banho e lavando roupa.

A tarefa era assim distribuída: umas lavavam as batinas, outras as camisas, outras as calcinhas, outras as cuecas, meias e lenços. Éramos em número de trinta meninas e três freiras.

O almoço era servido às 12 horas, em cuias.

Cada uma tinha pressa em acabar a obrigação para dar umas voltinhas pelas redondezas à cata de frutas, pois, para sermos francas, sentíamos fome… A curta refeição não nos satisfazia.

Foi numa dessas saídas que, desobedecendo às irmãs, fomos mais longe, atravessando o igarapé dos padres rumo ao campo do araçá.

Havíamos nos distanciado quando fomos surpreendidas por uma manada de gado bravo, solto.

Dela surgiu um touro preto que investiu contra nós, obrigando-nos a subir em árvores. Só que o danado simpatizou logo com a que eu estava e, embaixo dela, ciscava e chifrava a tenra árvore, que não sei como não tombou. Ele dava urros pavorosos.

Imaginem quem nunca havia subido numa árvore antes…

As colegas das outras árvores, vendo que o touro só se preocupava conosco, desceram de mansinho e foram contar para as irmãs, que ficaram preocupadíssimas.

Nós permanecemos na mira da fera até que o animal resolveu acompanhar a manada que se distanciava.

Deixamo-lo seguir um pouco e, ato contínuo, descemos da árvore e fomos nos juntar às outras colegas.

Custou-nos a desobediência três dias de castigo, fazendo refeições de joelhos.

Acho que foi uma injustiça, já que a fome comandava os nossos passos.

Assim mesmo, valeu a desobediência!”


segunda-feira, 11 de agosto de 2025

Resultado da lista sêxtupla.

Minha querida amiga Anete Penna foi a mais votada no cômputo geral para encabeçar a lista sêxtupla a ser encaminhada pela OAB ao TJPA, com vistas à formação da lista tríplice. Não tenho dúvida de que será a mais nova desembargadora — a primeira mulher guindada, pelo Quinto Constitucional, ao segundo grau da jurisdição paraense.

Eleições 5 Constitucional OAB PA 2025 📅✍️
Lista Sextupla 📋
(Feminina) 👩‍⚖️
1ª Anete Penna de Carvalho - 3.173 votos 🗳️
2ª Patricia Bahia - 3.033 votos 🗳️
3ª Roberta Veiga - 1.269 votos (cota representatividade racial) ✊🏽
(Masculina) 👨‍⚖️
1º Jarbas Vasconcelos - 2.550 votos 🗳️
2º João Paulo Ledo - 2.058 votos 🗳️
3º Hugo Mercês - 1.346 votos (cota representatividade racial) ✊🏾

sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Quando o poder não serve: se serve

 Por José Ronaldo Dias Campos

Homens maus, sem formação humanística, insensíveis — independentemente de paralelos e meridianos — não deveriam legislar, julgar ou administrar interesses coletivos. Pensam apenas em si mesmos e no grupo dominante, inebriados pela ânsia de poder que os informa e sustenta — e, não raro, os corrompe. A política, que deveria ser instrumento da ética pública, transforma-se em palco de vaidades e de propósitos escusos.


Com o tempo, tornam-se déspotas. Justificam-se com eloquência, travestem-se de bem-intencionados, escudam-se em números, decisões e normas que manipulam com habilidade. Moldam discursos para iludir e apaziguar os incautos. A retórica é sua arma; a manipulação, seu método.


O direito de resistência — inscrito, ainda que de forma velada, na Constituição — vai sendo progressivamente ofuscado. Interesses obscuros disfarçam-se de legalidade. A repressão adquire ares de ordem; a censura, roupagem de proteção. E o silêncio do povo é encoberto pelo temor.


O medo sempre teve papel central na história. Não apenas o medo da punição, mas também o da mudança, da liberdade controlada, de escrever o que se pensa. É com ele que se constrói a obediência cega e se anula a vontade coletiva — a cidadania ativa.


Mas chega o tempo — sempre chega — em que o povo desperta. E, ao compreender os verdadeiros mecanismos que sustentam o sistema, clama por mudança. Não por rupturas temerárias ou violentas, tampouco por falsos salvadores da pátria, mas por renovação lúcida — longe da polarização tóxica que paralisa e contamina a democracia.


Toda nação precisa reaprender o valor da vigilância cívica. Porque o poder que não se submete ao livre e democrático escrutínio da sociedade perde a legitimidade — e tende a se servir, em vez de servir ao povo.

sábado, 2 de agosto de 2025

O papel humanizador do juiz e demais agentes do Direito

O processo não é apenas um conjunto de atos formais, ritos e prazos — é, antes de tudo, a representação da vida em conflito. Por trás de cada número, que serve à estatística, há pessoas, histórias, dores, esperanças. Mais que isso: há um clamor por justiça que transcende a letra fria da lei.

O juiz, como condutor da relação processual, precisa ser mais que um técnico do Direito. É imprescindível que possua sensibilidade social e empatia jurídica. Isso não significa ceder à emoção, mas compreender que a aplicação da norma ao caso concreto exige diálogo com a realidade dos autos — com o chamado Direito achado na rua, expressão que simboliza a construção de uma ordem jurídica viva, comprometida com os clamores populares e com a concretização da dignidade humana.

Essa lição já foi ensinada por grandes nomes do pensamento jurídico. Piero Calamandrei via o processo como uma ponte entre o Direito e a vida. Para ele, “o processo é o caminho para alcançar a justiça, que não pode ser uma abstração jurídica, mas uma resposta concreta aos conflitos humanos”. Francesco Carnelutti, por sua vez, dizia que “o processo é dor”, pois nele se tenta curar uma ferida social.

Não basta ao juiz apenas saber julgar; é preciso interpretar, compreender, acolher. O julgador indiferente ao drama humano torna-se insensível à justiça que deveria promover. Por isso, é preciso reconhecer: o processo tem vida, tem sentimento, sangra, chora — e só cumprirá sua função se for conduzido com urbanidade, escuta e sensibilidade.

Essa postura é ainda mais necessária no Brasil, onde desigualdades e vulnerabilidades sociais afloram nos litígios. O formalismo excessivo, sem o devido cuidado com a pessoa envolvida, pode transformar a jurisdição em instrumento de perpetuação de injustiças — quando deveria ser o contrário.

Portanto: que o Direito não se afaste da vida. Que o juiz não se afaste da pessoa. Que o processo não se afaste da justiça.