domingo, 12 de abril de 2020

Prisões em tempos de Covid-19 e o papel do Judiciário

Prisões em tempos de Covid-19 e o papel do Judiciário
*Artigo originalmente publicado no jornal O Globo deste domingo (12/4)
Há cerca de um mês, pouco depois do anúncio da pandemia do novo coronavírus pela Organização Mundial da Saúde, o Conselho Nacional de Justiça aprovava a Recomendação 62 para incentivar o Judiciário a adotar medidas contra a propagação da Covid-19 em nosso sistema prisional. Partindo da premissa de que as prisões brasileiras operam em um estado de coisas inconstitucional, dado o contexto de superlotação e péssimas condições sanitárias e de higiene, a recomendação foi elaborada segundo rigorosos critérios de saúde e de segurança. Não à toa, o texto vem ganhando apoio maciço de entidades técnicas no Brasil e no exterior, referendado por organizações como o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
As medidas sugeridas pelo CNJ não são obrigatórias. Cada magistrado avalia o caso concreto e o contexto local para formar sua convicção, aberta, como sempre, a manifestações e recursos dos demais atores do sistema de justiça criminal. Exceto por critérios específicos de resguardo à saúde, notadamente quanto a grupos mais vulneráveis, a Recomendação 62 jamais incentivou a libertação de pessoas pertencentes a facções criminosas, que tenham cometido crimes contra a administração pública ou com uso de violência. Ainda assim, vale lembrar que, independentemente da infração cometida, todas as pessoas um dia terminarão de cumprir suas penas. Precisamos, portanto, cuidar para que nossas prisões estejam à altura de prepará-las para o retorno ao convívio social.
O CNJ ainda não iniciou monitoramento sobre o alinhamento de decisões à Recomendação 62, mas notícias indicam que cerca de 30 mil pessoas foram liberadas. É uma estimativa possível, pois essa é a média mensal de alvarás de soltura emitidos nacionalmente, representando menos de 5% das mais de 750 mil pessoas privadas de liberdade do país. Além disso, a liberação emergencial para evitar contaminações em massa em presídios soma-se a casos semelhantes reportados nos Estados Unidos, Irã, França, Indonésia, Reino Unido e Marrocos entre outras dezenas de países, independentemente do espectro político, regime de governo e grau de desenvolvimento.
Embora compreensível, a preocupação com o impacto dessas medidas para o quadro geral de segurança pública se mostra injustificável em vista dos dados que começam a ser divulgados pelas autoridades competentes, como a redução de 87,5% nos latrocínios no Rio Grande do Sul e de 56% nos roubos de celulares em São Paulo no período. Sabemos que é tentador eleger situações desviantes para questionar o sucesso de políticas públicas, mas somente evidências e dados agregados podem mostrar o caminho correto a seguir, lição que vemos se repetir diariamente nas tomadas de decisão quanto ao enfrentamento da Covid-19.
Infelizmente, notícias dão conta de que medidas preventivas não estão impedindo a propagação da Covid-19 nas prisões, vulnerabilidade alertada de início pelo Ministério da Saúde. Enquanto isso, o Judiciário segue consciente de suas responsabilidades frente à excepcionalidade da situação, cumprindo o papel de guardião da lei e protetor de direitos básicos, incluídos o direito à saúde coletiva e o direito à vida.

José Antonio Dias Toffoli é presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 12 de abril de 2020, 10h23

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