quarta-feira, 2 de maio de 2012

O advogado colecionador.


Eu ainda cheguei a ver, quando garoto, na residência do advogado Inácio Ubirajara Bentes de Sousa, pai do meu cunhado José Ronaldo Campos de Sousa, misturado com livros de Direito em sua biblioteca particular, na Avenida Adriano Pimentel, ao lado do saudoso Uirapuru Hotel, a maior e mais famosa coleção de arte tapajó do mundo, com mais de 30 mil peças inéditas, acervo várias vezes maior que a do museu Emílio Goldi, em Belém, relíquia arqueológica de valor inestimável que saiu de Santarém e mesmo do Pará por incompetência de nossos governantes. No museu João Fonna só restaram os "cacos", como fundo histórico.

A matéria publicada no blog do meu sobrinho Ignácio Ubirajara Bentes de Sousa Neto (Biroca), da lavra do jornalista Manuel Dutra (A Província do Pará - 1977), abaixo colacionada, assegura o que afirmo:

"Um amargurado comprador de caretas na desmemoriada Santarém" 



 
“Eu não conheço, em qualquer parte do mundo, coleção semelhante a esta, seja em museu (público) seja em acervo particular, pela sua quantidade e arte”.

A impressão deixada pelo geólogo Hans Gotha, da universidade de Strelitz, Alemanha, há 14 anos, no livro de registros  de visitas  do museu particular do advogado Ignácio Ubirajara Bentes de Souza, em Santarém, apresenta um enorme contraste com o atual desencanto de seu proprietário. “Depois de mais de 30 anos de trabalho paciente, juntando e recompondo o que restou da espetacular cultura dos Tapajós, eu hoje me sinto simplesmente um homem espoliado”, diz ele.

Na verdade, não apenas o velho  advogado foi espoliado, senão também a própria Santarém e a região que perdeu para São Paulo praticamente todo o acervo: das 28 mil peças catalogadas, 25 mil estão hoje no museu da universidade da USP e o que resta em Santarém, 3 mil peças, está longe de mostrar o esplendor de uma rica e mal conhecida cultura que tanto empolgou estudiosos do assunto, cientistas, arqueólogos e museólogos de todos os continentes. Sintomaticamente foi do exterior que partiram as mais tentadoras propostas de compra, onde o acervo parece melhor ter sido conhecido que mesmo no Brasil.

Explica Ubirajara Bentes de Souza que “além do impedimento legal, foi o patriotismo que me impediu de vender isto para o estrangeiro”, sentindo-se ainda satisfeito pelo fato de sua coleção encontrar-se no país.

Com documentos, ele mostra o longo esforço desenvolvido às autoridades municipais e estaduais e os mais diversos órgãos com algum interesse no assunto, no sentido de que o museu ficasse, quando não em Santarém, pelo menos em Brasília. As evasivas de políticos, governantes e até de um  ex-ministro com raízes no Pará, documentadas e cuidadosamente arquivadas, levaram o persistente colecionador  a aceitar, em 1971, a oferta de 300 mil cruzeiros, oferecidos pela Universidade de São Paulo, que deu direito aos compradores a escolher o que de melhor havia da cerâmica dos cultos Tapajós. Assim mesmo, esclarece ele, a venda só se consumou devido a dificuldades financeiras que ele enfrentava naquela época. E as peças acabaram custando apenas 170 mil cruzeiros.

Um milhão de dólares

Porém a oferta mais tentadora, de cuja veracidade muitos chegaram a duvidar, partiu do comerciante americano George Victor, em 1966. Ele ofereceu simplesmente a soma de um milhão de dólares pelo tesouro indígena, com a intenção manifesta de transformá-lo em exposição volante que partira de Nova Iorque para as demais cidades estadunidenses. Entre as dezenas de ofertas, com freqüência estrangeiras, há algumas que apresentam lances de filme policial. Certa vez um grupo também norte-americano propôs a compra do acervo de Ubirajara. Como a saída do País seria embargada pela Alfândega, eles elaboraram um plano vestindo batinas, feito padres, eles fariam algumas viagens a Santarém, e levariam parte por parte o material para assunção, no Paraguai, de onde rumariam para os Estados Unidos. O plano, evidentemente, não se consumou, de vez que era desejo do proprietário ver a cerâmica, Tapajós ficar no Brasil, além dos riscos de tal operação.

“Eu vivia sobressaltado, sobretudo depois que os jornais e revistas começaram a divulgar minha coleção”, confessa Ubirajara. Acrescenta que depois da visita dos gringos passou a temer uma possível investida de alguma quadrilha internacional, dado o interesse demonstrado pelas peças indígenas e a negativa da venda. A necessidade de vigiar permanentemente pelo acervo, juntamente com suas obrigações de advogado e empregado de uma empresa de navegação impediram, em 1968, uma viagem ao Japão, a convite do governo daquele país, para expor uma parte da cerâmica indígena na Exposição Internacional de Tóquio patrocinada pelo jornal Youmiuri, por ocasião dos jogos da primavera.

“Depois disso tudo, - desabafa o advogado, a exposição do meu material lá em São Paulo nem sequer cita o meu nome como responsável pelo achado”. Acrescenta que os novos donos do acervo inclusive já patrocinaram uma reportagem numa revista nacional, apresentando a cerâmica Tapajós como a mais completa no gênero na América do Sul, talvez insinuando ter sido obra do esforço dos atuais donos.
 
A cerâmica dos primitivos habitantes de Santarém, povo cuja real estatura ainda está por ser estudado, é considerada por muitos como sendo mais importante que a Marajoara. No dizer de um integrante de uma missão científica japonesa que chegou a filmar as peças para a TV de seu país, o acervo do dr. Ubirajara pode constituir-se num “passo largo para sairmos das idéias acadêmicas (...) sobre as origens do ser humano”. Para o jornalista David St. Clair, do Time-Life, “esta é a mais incrível coleção da pré-história amazônica que deve ser estudada por todos os interessados na América Latina” e pergunta – “quem sabe quais os novos trilhos que serão abertos pelo mistério de Santarém?”

Em resumo, a coleção completa das obras dos índios Tapajós, na época que ainda se compunha de 28 mil peças, era composta de urnas funerárias, algumas com  ossos petrificados ou cristalizados, vaso de cariátides, vasos de gargalo, vasos globulares, pratos com adornos, vasos estilizados e pintados, ídolos grandes modelados na pedra, cachimbos, machados, peças de arte em geral e fósseis, além de flexas, arcos, bordunas, instrumentos de suplício, colares, plumas, redes, muiraquitãs e milhares de pequenas peças seriadas.

Os riscos de colecionador
Certa noite alguém bateu a porta da casa de Ubirajara. Era um homem que se apresentava como professor da Universidade da Bahia, acompanhado de um grupo de crianças. Pediu para ver o museu, porém dada a impropriedade da hora, o dono da casa começou a desconfiar das intenções do visitante que talvez tentasse utilizar as crianças para roubar as peças. Ubirajara explicou que as peças estavam encaixotadas e com essa evasiva despachou o estranho visitante. Dias depois recebe notificação da Polícia Federal chamando-o para explicar-se sobre uma denúncia de que estava com toda a coleção embalada para enviar para um país estrangeiro. 

Nascido em Belém, o advogado Ubirajara Bentes, 63 anos, em Santarém, desde 1953, depois de morar 13 anos em Alenquer, sempre teve paixão por colecionar raridades. Antes da cerâmica indígena, ele colecionava moedas e afirma que chegou a ter em mãos uma moeda assíria de 1218 anos antes de cristo. Há poucos anos ele vendeu um grupo de mais de 100 imagens a um conhecido político maranhense por 16 mil cruzeiros, hoje avaliadas em 500 mil. Entre suas peças raras havia inclusive uma imagem do senhor dos passos, “vertebrado” que se ajoelhava, sentava e mexia com os braços que seguravam a cruz.

Único filho homem de um comandante fluvial, Ubirajara tem 5 filhos, um deles deputado estadual atualmente. Aos filhos ele presenteou recentemente com os muiraquitãs autênticos de sua coleção.

Desencantado, ele vive hoje da exclusiva atividade de advogado. Contudo, guarda com carinho todos os documentos, publicações as centenas em jornais e revistas, fotos de visitantes ilustres, além dos livros onde esses visitantes deixaram suas impressões. Com orgulho, ele mostra entre tantas, uma foto em que o ex-ministro da Marinha, almirante Augusto Rademaker escrevia suas observações. E o detalhe da visita ao concluir, o almirante pediu aos membros de sua comitiva para que ficasse de pé, para ouvir a leitura de suas impressões. As reminiscências dos dias febris da coleta de peças raras são, hoje parte do dia a dia de Ubirajara, que se tornou conhecido, especialmente entre a garotada, como o “comprador de caretas”. Gente da cidade, dos arredores e do interior, trazia as peças achadas e as vendia ao colecionador que também dedicava-se a escavar extensas áreas muitas vezes no centro da cidade.

Seu sonho de ver seu respeitável acervo transformado num grande museu, em Santarém,  o que seria com toda justiça motivo de maior orgulho para a cidade e para o Estado, já não podem concretizar-se. Porém nem tudo está perdido. As três mil peças restantes poderão em breve passar para o domínio do município ou do Estado, permanecendo em exposição na casa da cultura. Esforço nesse sentido está sendo desenvolvido pela redeviva Sociedade Cultural e Etnográfica de Santarém, que espera o indispensável apoio do poder público. A prefeitura prometeu dar apoio, no sentido de apelar junto a órgão que pudessem dar o suporte financeiro. Segundo Ubirajara, o conjunto de peças está avaliado atualmente em 187 mil cruzeiros. A avaliação foi feita recentemente por um perito amigo do proprietário, porém ele está pedindo somente 100 mil cruzeiros. Enquanto os membros da Sociedade aguardam  uma palavra final do prefeito Paulo Lisboa sobre a compra, o colecionador deu um prazo de 60 dias para a espera, depois do que, se não sair a solução, ele poderá abrir a possibilidade de vender a quem aparecer primeiro, atitude até certo ponto compreensível, de vez que as peças restantes, mesmo que tenham discutível valor, já não poderão constituir o museu sonhado pelo “comprador de caretas”.

“Coleção extraordinária”


Personalidades como o Xá Rehzza Palevi, do Irã, chegaram a referir-se sobre a cerâmica dos Tapajós Publicamente. Durante sua visita ao Brasil, em anos passados, o Xá, em entrevista coletiva no Rio de Janeiro, lamentou não poder vir até o Pará conhecer o museu de Ubirajara, sobre o qual tinha boas informações. No livro onde estão registradas milhares de impressões de visitantes, lê-se entre outras, o espanto do casal de jornalistas e pesquisadores do National Geographic Society, de Washington: “Em sete meses de viagem através da Amazônia, de sua nascente, no Peru até Santarém, não tínhamos encontrado uma coleção tão extraordinária”. Ou a observação do jornalista alemão Rainer Hutz que escreveu que “depois de visitar a maioria dos locais arqueólogos da América do Sul, este parece ser o mais importante e inesperado fim de uma viagem de descobertas”. E o colecionador recorda, com saudades, o tempo em que sua casa era parada obrigatória de visitantes ilustres, ressaltando até o fato da visita do ex-rei Leopoldo da Bélgica. Sintomaticamente, no registro de visitas é muito mais freqüente a assinatura de estrangeiros, levando a crer que foi quase milagre ou simplesmente o patriotismo confessado de Ubirajara que impediram as excelências  de arte e habilidade manual saídos do espírito dos Tapajós de estar hoje num grande museu de uma capital norte americana ou européia, de onde partiu o maior interesse pelo tesouro e onde foram feitas as mais sérias divulgações sobre o assunto. Na imprensa local alguns registros podem ser encontrados, quase sempre superficiais, salvo poucas exceções, geralmente por ocasião da visita de uma personalidade ao museu particular, revelando que a publicação enfatizava a personalidade e não o acervo.

As três mil peças restantes, se concretizados os entendimentos, ainda poderão permanecer em Santarém, seu lugar natural, mesmo levando em conta que na cidade raríssimas pessoas as conhecem. Nas escolas, alunos e professores desconhecem o que deixaram os primeiros habitantes da região, como desconhecida é a historia de um povo que enfrentou valentemente, até o desaparecimento, o colonizador. Contudo, não admirará se ocorrer o contrário e algum mercador de raridades açambarcar o que restou da coleção, esfacelando o que deveria constituir-se parte integrante da memória de um povo. Finalmente, em Santarém nos últimos 15 anos, destruiu-se o teatro vitória, em sua modéstia um dos únicos monumentos do lugar, construído quase a época dos Teatros da Paz e Amazonas, descaracterizou-se totalmente   a arquitetura interna da Catedral da Imaculada Conceição e chegou-se a atear fogo em preciosas coleções existentes na biblioteca pública. Recentemente a direção de um colégio particular resolveu “modernizar” sua biblioteca queimando obras antigas e, por sorte, alguém conseguiu retirar da fogueira algumas obras hoje valendo verdadeiras fortunas em selos de algumas capitais, entre elas livros raros sobre a ação dos jesuítas que acompanharam o colonizador desde os primeiros dias na Amazônia. Dentro em breve, mais que outros lugares, Santarém poderá ser uma cidade inteiramente “desmemoriada” pois, até os dois ou três imóveis com algum valor histórico estão não apenas abandonados, mas sendo “adaptados” para servir de lojas e depósitos.


 
A salvação do que resta de cerâmica dos tapajós seria o mínimo para reparar mais uma grave erro cometido, numa cidade onde, pelo seu porte, é possível palpar a crueldade do progresso material recente.


O desprezo pelo passado, pela conquista de povos ainda hoje considerados inferiores, não seria, em certa medida, um desprezo pelo presente, resultante na falta de fé  na sobrevivência espiritual  dos que hoje vivem , apenas, sobre o mesmo (...................) quando de sua campanha em prol do Rearmamento Moral, passou por Santarém e deixou escrito que “é uma experiência excepcional olhar esses objetos (...) Construamos um futuro decente para o mundo, antes que o homem se torne permanentemente fossilizado”.

Fonte: Manuel Dultra - jornal A Província do Pará - junho de 1977


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