Manuscrito deixado pela minha saudosa mãe, professora e poetisa Maria da Glória Dias Campos, nascida em 14/08/1920.
“No período de 1934 a 1937, dos 14 aos 17 anos que passei interna no Colégio Santa Clara, como órfã, todas as segundas-feiras, após a missa de costume — que antecedia o café da manhã — minha obrigação, como a das demais colegas, era a lavagem de roupas das cem órfãs, padres e freiras daquele educandário.
Naquela época, poucas eram as casas que possuíam água encanada, e o nosso colégio era uma delas.
A água era retirada de duas cisternas lá existentes: uma recolhia a água das chuvas; a outra era movida por cata-vento — isto quando havia vento —, o que, por vezes, dificultava até o nosso banho, realizado duas vezes por semana, sendo um deles aos sábados, no rio, em frente a Santarém.
Bem em frente à primeira prefeitura da cidade, existia, à beira do rio, um banheiro conhecido como “banheiro das freiras”. E aos sábados, lá íamos nós, em grande fila, com duas irmãs, para o banho.
Rezávamos para não chover, nem ventar… Sabem por quê? Pelo simples fato de as cisternas não encherem.
Uma vez secas, tínhamos de ir lavar roupa no igarapé dos padres, no Irurá, onde saciávamos a vontade de tomar banho.
Aos domingos à noite, uma das irmãs, após o jantar, lia a relação das órfãs que iriam lavar roupa.
Muitas vezes, mesmo sem estarmos em boas condições de saúde, escondíamos a verdade, já que era a única chance de sairmos e nos distrairmos um pouco.
E às cinco horas da manhã, após assistirmos à santa missa na capela do colégio e tomado o café, seguíamos o longo percurso, felizes, a papaguear rumo ao Irurá.
O carro de boi ia à frente, cheinho de sacas de roupa, um panelão com farofa, frutas e um pequeno rancho para o almoço do dia. Seu Chico, irmão da tia Neca, era quem conduzia a carroça.
O caminho era pela densa mata virgem, onde, aqui e ali, encontrávamos frutas silvestres como araçá, pitanga, goiaba, achuá, caju e manga — oferta da mãe natureza.
Ao chegarmos ao Irurá, mudávamos de roupa, merendávamos a farofa e caíamos no igarapé, onde passávamos quase o dia todo de molho, tomando banho e lavando roupa.
A tarefa era assim distribuída: umas lavavam as batinas, outras as camisas, outras as calcinhas, outras as cuecas, meias e lenços. Éramos em número de trinta meninas e três freiras.
O almoço era servido às 12 horas, em cuias.
Cada uma tinha pressa em acabar a obrigação para dar umas voltinhas pelas redondezas à cata de frutas, pois, para sermos francas, sentíamos fome… A curta refeição não nos satisfazia.
Foi numa dessas saídas que, desobedecendo às irmãs, fomos mais longe, atravessando o igarapé dos padres rumo ao campo do araçá.
Havíamos nos distanciado quando fomos surpreendidas por uma manada de gado bravo, solto.
Dela surgiu um touro preto que investiu contra nós, obrigando-nos a subir em árvores. Só que o danado simpatizou logo com a que eu estava e, embaixo dela, ciscava e chifrava a tenra árvore, que não sei como não tombou. Ele dava urros pavorosos.
Imaginem quem nunca havia subido numa árvore antes…
As colegas das outras árvores, vendo que o touro só se preocupava conosco, desceram de mansinho e foram contar para as irmãs, que ficaram preocupadíssimas.
Nós permanecemos na mira da fera até que o animal resolveu acompanhar a manada que se distanciava.
Deixamo-lo seguir um pouco e, ato contínuo, descemos da árvore e fomos nos juntar às outras colegas.
Custou-nos a desobediência três dias de castigo, fazendo refeições de joelhos.
Acho que foi uma injustiça, já que a fome comandava os nossos passos.
Assim mesmo, valeu a desobediência!”