sábado, 6 de dezembro de 2025

O advogado colecionador

Matéria publicada há algum tempo na revista virtual

https://joseronaldodiascampos.blogspot.com, que ora rememoro pela importância histórica que representa para Santarém. 👇🏽

Houve um tempo, @migo leitor, em que a história do povo tapajônico cabia inteira dentro de uma biblioteca particular. Não era museu, não era acervo público, não era instituição de pesquisa. Era o refúgio silencioso de um advogado: Inácio Ubirajara Bentes de Sousa, figura conhecida na Santarém de outrora, pai do meu cunhado Ronaldo Campos (ex-prefeito de Santarém), homem de hábitos simples e curiosidade refinada.

Lembro-me bem — eu, ainda menino — de adentrar aquela casa da Avenida Adriano Pimentel, ao lado do saudoso Uirapuru Hotel, e ver, entre estantes de livros de Direito, um universo inteiro de barro ancestral. Misturavam-se às páginas de Pontes de Miranda, J. M. de Carvalho Santos e Clóvis Beviláqua as urnas antropomorfas de olhos amendoados, as estatuetas de porte altivo, as cariátides misteriosas, as tangas cerimoniais, os vasos que guardavam o rosto dos mortos.

Era a maior coleção de arte tapajônica do mundo, com mais de trinta mil peças inéditas — número que até hoje causa espanto a arqueólogos e historiadores. Maior, mais vasta e mais representativa que a do próprio Museu Emílio Goeldi, em Belém. A casa do advogado Ubirajara Bentes, ironicamente, abrigava aquilo que o Estado jamais foi capaz de proteger.

Aquele acervo, @migo leitor, não surgiu do acaso. Foi composto peça a peça, visita a visita, escavação a escavação, compra a compra, ao longo de décadas em que a arqueologia amazônica ainda engatinhava. O advogado colecionava não por lucro, mas por fascínio. Guardava, em silêncio, o imaginário de um povo inteiro — o povo tapajó, cujo refinamento estético desafia, ainda hoje, qualquer explicação simplista.

Mas Santarém, terra generosa e, ao mesmo tempo, distraída com seus próprios espelhos d’água, não soube enxergar o tesouro que possuía. A cidade continuou erguendo casas sobre sítios arqueológicos, plantando postes sobre urnas funerárias, enquanto aquele museu íntimo repousava solitário numa sala de biblioteca.

E então, como tantas vezes acontece por estas bandas, veio a perda. A coleção saiu de Santarém — e do Pará — por omissão pública, desinteresse político e absoluta ausência de política cultural. Parte foi adquirida por instituições de fora, como a USP; parte dispersou-se em mãos privadas; e aquilo que poderia ter sido o maior museu arqueológico da Amazônia virou lembrança, saudade e lamento.

No Museu João Fona, restaram apenas “os cacos”, como outrora registrei na revista virtual joseronaldodiascampos.blogspot.com. O acervo conta história, sim; mas conta também o descaso de quem permitiu que tudo fosse embora.

A crônica de Manuel Dutra, publicada em 1977 e resgatada no blog do meu sobrinho Ignácio Ubirajara Bentes de Sousa Neto, o Biroca, já denunciava o fato com precisão jornalística e dor amazônica:

“Um amargurado comprador de caretas na desmemoriada Santarém.”

O título parece metáfora, mas é diagnóstico. Somos, tantas vezes, uma cidade que esquece o que deveria guardar e guarda o que deveria superar. E, ao esquecer, permite que outros levem consigo a alma material da nossa história.

O advogado colecionador não vive mais; a coleção também já não está entre nós. Mas a memória — essa, sim — permanece. Permanece nos relatos de quem viu. Permanece nas peças que hoje repousam em vitrines distantes. Permanece na saudade de um museu que nunca existiu. Permanece, sobretudo, como advertência: patrimônio não é luxo — é raiz.

E raiz que não se cuida, @migo leitor, vira apenas terra solta ao vento.

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