'Poderíamos ter avançado mais com a nova lei', afirma especialista em licitações
O presidente Jair Bolsonaro sancionou na quinta-feira (1º/3) a aguardadíssima nova Lei de Licitações, que havia sido aprovada no Senado Federal no último dia 10. O texto nasceu com a missão de modernizar a Lei 8.666, de 1993, bastante criticada por especialistas em licitações e contratos públicos por estar fora de sintonia com os tempos atuais.
O entusiasmo com a novidade, porém, não resistiu por muito tempo, já que a redação final do Projeto de Lei 4.253/20 foi considerada tímida demais — quem esperava por uma revolução no setor certamente se decepcionou.
O advogado Rafael Valim, especialista em Direito Público, está entre os muitos que esperavam mais da nova Lei de Licitações. Sócio do escritório Warde Advogados, ele acredita que o Brasil perdeu uma boa chance de refundar o seu modelo de contratações públicas.
"A gente poderia ter feito uma mudança de paradigma nas contratações públicas no Brasil. Mas é preciso estar absolutamente consciente de que conseguir essa substituição da Lei 8.666 já foi uma façanha", disse Valim.
Apesar da frustração, o advogado também tem elogios a fazer ao texto aprovado pelo Senado. Em entrevista à ConJur, ele comenta alguns pontos da nova lei que, em sua avaliação, vão dar mais transparência e agilidade às licitações e à execução dos contratos públicos, como a criação de um portal de contratações e a fixação de um prazo para que os tribunais de contas tomem uma decisão sobre os processos licitatórios que suspenderem.
Leia a seguir a entrevista:
ConJur — O Brasil realmente precisava de uma nova Lei de Licitações?
Rafael Valim —
A substituição da Lei 8.666 é uma promessa antiga, me parece que
existia desde que ela foi promulgada. A dinâmica da Administração
Pública mudou, houve uma evolução tecnológica e também uma mudança nos
desafios enfrentados pela Administração nos últimos anos, e isso
justificava, e continua a justificar, uma atualização da lei. E um outro
ponto importante é que, dada a dificuldade para criar uma nova lei
geral de contratações públicas, houve o fenômeno da pulverização do
regime. Então surgiram Lei do Pregão, Lei do RDC, que foi criada naquele
contexto dos megaeventos esportivos... De modo que hoje nós temos uma
colcha de retalhos, e essa nova lei unifica o regime de contratações
públicas, o que ao meu ver é algo bastante positivo.
ConJur — Você acredita que a nova lei será capaz de dar agilidade e transparência às licitações?
Rafael Valim —
Há uma opinião majoritária de que esse projeto não foi tão ambicioso
quanto se desejaria, que não foi aproveitada a oportunidade para se
refundar o nosso modelo de contratações públicas. Na verdade, trocamos
seis por meia dúzia. Mas me parece que há aspectos positivos na lei. Ela
traz alguns pontos positivos que estão sendo ocultados por essa visão
muito negativa. Mas é claro que a gente poderia ter avançado mais,
sempre é possível.
ConJur — As mudanças promovidas pelo novo texto legal, então, poderiam ter sido mais aprofundadas?
Rafael Valim —
Sem dúvida, a gente poderia ter feito uma mudança de paradigma nas
contratações públicas no Brasil. Mas é preciso estar absolutamente
consciente de que conseguir essa substituição da Lei 8.666 já foi uma
façanha. São muitos interesses econômicos, políticos; então, a gente não
pode ter um pé fora da realidade.
ConJur — A lei promove avanços no terreno da desburocratização do processo de licitação?
Rafael Valim —
Infelizmente, não. O que me parece é que ela dá um pouco mais de
impessoalidade para o administrador montar o modelo de contratação
adequado para o caso concreto, mas daí a dizer que vai haver um avanço
em termos burocráticos, um avanço em termos de agilidade, de tempo na
contratação... Eu sou muito cético em relação a isso.
ConJur — Seria possível cortar esse caminho da burocracia sem aumentar o risco de corrupção?
Rafael Valim —
É difícil. Veja, o processo administrativo é uma forma de revelar a
vontade da Administração. O problema é que, se você produz muitos
atalhos, acaba fragilizando o controle da Administração. É claro que
tudo isso tem uma medida, e me parece que no Brasil a gente tem um
excesso de atos de burocracia, de entraves. E, no final, não serve para
nada. E temos também uma acumulação de responsabilidades que, quando
você vai ver, acaba não inibindo a corrupção. Creio que a gente deveria
ter menos regras, mas com efetividade maior. No Brasil há muitas regras,
mas tem regra que só serve para fomentar a corrupção, e não para
combatê-la.
ConJur —
Então a nova lei tem poucas chances de eliminar, ou pelo menos de
reduzir significativamente, a corrupção nas obras públicas, nas
licitações?
Rafael Valim —
Nosso problema com a corrupção vai muito além das contratações. Com
esse modelo burocrático muito pesado, do jeito que foi colocado, me
parece que não há um avanço tão expressivo em termos de burocracia.
Agora, um ponto positivo que eu vejo na lei é que ela reforça a
transparência. Ela obriga a gravação em áudio e vídeo das reuniões
presenciais, reforça a publicidade do edital de contratação... São
coisas pequenas, mas que fazem uma diferença enorme. Além disso, fica
proibida aquela exigência de identificação para as pessoas que queiram
acessar o edital de licitação. Era uma coisa muito comum: era publicado o
edital de divulgação na internet, só que eles pediam um cadastro e
depois iam monitorando quem tinha interesse na licitação. Isso a lei
proibiu. E também foi criado um portal de contratações públicas, que é
um incremento na transparência. São medidas estruturais que ajudam a
combater a corrupção. Outra coisa importante: a lei reforça a ideia de
planejamento, com um plano de contratações anual e a obrigatoriedade de
projeto executivo nas obras. Nesses pontos, a lei avança.
ConJur —
Outra novidade é a criação um seguro-garantia para o caso de a empresa
contratada ficar sem dinheiro. Isso realmente pode diminuir o problema
das obras paradas?
Rafael Valim — Esse é um tema debatido há alguns anos e me parece que se apresenta como um dos pontos positivos da lei. É o chamado performance bond,
a possibilidade de uma garantia contratual, pois, em caso de
inadimplemento do contratado, a seguradora assume a execução e conclui o
objeto. Creio que é um ponto positivo também porque a seguradora vai
acabar ajudando a Administração a fiscalizar o contrato, já que
evidentemente ela não vai querer assumir a obra.
É claro que o fenômeno das obras paralisadas no Brasil tem muitas causas; às vezes ele pode ocorrer por iniciativa de um órgão de controle, por uma decisão judicial, e nesses casos a seguradora não vai resolver. Assim mesmo, me parece que essa novidade tem uma capacidade enorme de minimizar o problema lamentável das obras paralisadas no país.
ConJur —
Estamos falando da entrada de um novo elemento nessa equação, que é a
seguradora. Isso pode ter o efeito colateral de complicar ainda mais o
processo? E não seria necessário fazer uma licitação para contratar a
seguradora?
Rafael Valim — É
uma boa pergunta. O que me parece é que a seguradora terá de examinar
muito bem os projetos em que vai entrar, analisar bem os riscos
envolvidos. Mas eu não vejo nenhum problema jurídico que possa impedir
ou dificultar a participação e eventual execução dessas obras pela
seguradora. Não há nenhum empecilho para isso.
ConJur —
Como fica o papel do Tribunal de Cotas da União, assim como dos demais
órgãos de controle, com a mudança na legislação? Eles podem ganhar em
eficiência?
Rafael Valim — A
lei, em muitos aspectos, consolida a jurisprudência do TCU, em vários
pontos ela é uma consagração legislativa de entendimentos do tribunal.
Por outro lado, há um dispositivo, o artigo 171, que responde a uma
reinvindicação sobretudo das empresas que atuam nesse setor, por mais
celeridade, para que as suspensões dos processos e contratos pelos
tribunais de contas tenham um prazo razoável. O artigo coloca que o
tribunal pode suspender cautelarmente um processo licitatório, mas deve
decidir sobre o mérito da irregularidade em um prazo de 25 dias úteis.
Isso é algo que deve ser saudado. Antes se suspendia uma licitação e a
decisão poderia demorar muito. A mera estipulação de um prazo é um
importante instrumento para coibir atos de corrupção. Quando você deixa
que o agente público decida quando quiser, isso é um campo fértil para
favorecimentos ou perseguições.
ConJur — E isso atualmente ocorre na fase de projeto ou também na execução da obra?
Rafael Valim — É
o que a gente chama de exame cautelar da licitação, algo bastante
comum, mas aí uma licitação que estava prevista para durar 40 dias, por
razão de suspensão do tribunal de contas, pode demorar um ano. E você se
pergunta como é que pode demorar um ano para comprar uma caneta... No
Brasil se fala muito do processo, da burocracia, dos 40 dias do processo
licitatório, mas se a gente tiver uma fase preparatória adequada, e
isso significa planejamento, todo o resto vai bem. Muitas vezes, o
problema da demora é a fase preparatória mal planejada. Se você tem um
projeto péssimo, é claro que depois vai dar problema. Vai ser mal
executado, dar margem a aditivos, e os aditivos são o grande problema da
corrupção no Brasil. A fase de planejamento e o posterior
acompanhamento de execução da obra são aspectos muito mais importantes,
que passam muitas vezes ao largo, desapercebidos e as pessoas só ficam
discutindo regrinhas de licitação.
ConJur — E a nova lei promove um avanço nesse campo?
Rafael Valim —
Ela promove, sim, mas avanços também contraditórios. Porque, por
exemplo, ela reforça o planejamento, só que permite a manutenção da
contratação integrada, que foi criada no regime diferenciado de
contratações da Copa do Mundo (de 2014), quando o governo não tinha como
executar os projetos no tempo que era necessário. Então foi criado um
regime em que é delegada a execução do projeto ao particular. E isso é a
consagração da falta de planejamento. Em outros países, passa-se muito
tempo planejando a obra e depois a licitação e a execução têm de ser
rápidas, porque tudo estava planejado nos mínimos detalhes. No Brasil,
não, querem gastar pouco tempo no planejamento, e depois é jogado um
peso enorme na execução da obra, e aí acontecem os problemas que a gente
conhece. O foco das pessoas está no lugar errado, na licitação,
enquanto deveria estar no planejamento e na execução.
Então, ao mesmo tempo em que a lei promove alguns avanços em termos de planejamento, ela, de modo contraditório, mantém a contratação integrada, que é a antítese do planejamento e que está dando muito problema porque você não define adequadamente o objeto da licitação e depois desloca todas as disputas entre a Administração e o contratado para a fase de execução. E aí surge a chance de ter obra paralisada por falta de um acordo no curso da execução contratual.
ConJur —
E quanto à transferência para o contratado da responsabilidade por
licenciamento ambiental e desapropriação, também é um aspecto negativo
do texto?
Rafael Valim — É
outra contradição. Essa novidade deve ser objeto de críticas porque
esses pontos precisam ser resolvidos antes da licitação. Se você permite
que o objeto da lei seja contratado com esses aspectos pendentes, isso
se torna uma fonte de insegurança, que depois resulta no fenômeno das
obras paralisadas.
ConJur —
Mas por que a lei permite essa transferência ao particular de
obrigações como licenciamento e desapropriação, que são próprias do
poder público?
Rafael Valim —
Isso é uma discussão de alguns anos, essa lógica de que é melhor deixar
na mão do particular porque ele vai resolver de maneira mais rápida e
mais barata. Essa lógica está equivocada, no meu modo de ver; essa é uma
responsabilidade do poder público. Acho que essas atividades até podem
ser realizadas pelos particulares, mas o problema é permitir que uma
licitação seja deflagrada sem esses pontos resolvidos, porque isso vai
de encontro à ideia a que eu me referi antes. Acabei de falar de
planejamento e a lei coloca riscos, embute riscos, na execução do
contrato que não devem ser embutidos.
ConJur — O que, lá na frente, pode fazer a obra parar...
Rafael Valim —
A obra para. E aí você tem de mudar o cronograma, não consegue avançar.
Vai ter de fazer um remanejamento, aí a empresa vai falar que a
expectativa de executar a obra é por um determinado período e que vai
ficar com a equipe imobilizada enquanto isso não se resolve, que precisa
pagar por essa imobilização... Então essa transferência acaba gerando
ineficiência e riscos enormes.
ConJur —
Você deixou claro no começo da conversa que considera que a nova lei
tem pontos positivos e negativos. Claramente nós acabamos de falar de um
ponto negativo. Há algum outro?
Rafael Valim — A
possibilidade de orçamento sigiloso, que vinha já do regime
diferenciado de contratações, é algo de que eu sou crítico desde a
primeira hora. Isso gera risco de assimetria de informações e corrupção.
As eventuais vantagens do orçamento sigiloso estão longe de justificar
os riscos que ele impõe. Um deles é que um agente da Administração
Pública pode transmitir o valor do orçamento para um dos concorrentes e,
assim, dar a ele uma vantagem enorme. Então, é criado um monopólio
sobre a informação que abre a possibilidade para que ela seja vendida. A
desconsideração da personalidade jurídica na via administrativa é um
tema polêmico e que também me parece um risco enorme às empresas, porque
isso tem de ficar nas mãos do Judiciário, e não das autoridades
administrativas.
Outro problema que eu vejo é a possibilidade de ocupação provisória de bens e serviços, que já estava na Lei 8.666 e foi mantida. Isso ocorre especialmente em contratos que lidam com questões muito sensíveis, como os da área de saúde. Por exemplo, a Administração alega um determinado problema de execução e faz a ocupação dos bens. Aí ela diz que não pode parar o serviço, então determina que vai continuar usando os bens e os funcionários da empresa até resolver o problema, e isso me parece absolutamente inconstitucional porque cria um atalho para a Administração. Ela é que tem de fazer a contratação direta por emergência, não pode deixar esse problema no colo do particular. Não é o particular que tem de zelar pelo interesse público, é a Administração.
ConJur — Entre pontos positivos e negativos, o que prevalece no texto da nova lei?
Rafael Valim —
Para mim o balanço é positivo, não vou ser tão pessimista. Um ponto
interessante a se ressaltar é a previsão de que a defesa das autoridades
que tenham atuado de acordo com a orientação dos órgãos de
assessoramento jurídico pode ser feita pela advocacia pública.
Atualmente, as pessoas opinam muitas vezes de completa boa-fé, seguindo
parecer jurídico das procuradorias, mas aí tomam uma ação de improbidade
e têm de contratar o próprio advogado. E isso, de novo, é uma fonte de
corrupção, porque gera a possibilidade de fazer favores para depois
receber favores.
Outro ponto positivo é que a nova lei estipula um prazo para a resposta a um pedido de reequilíbrio econômico-financeiro. Qual é o ponto hoje no Brasil? Você faz o pedido e a Administração simplesmente o negligencia.
ConJur — E isso gera mais atrasos...
Rafael Valim —
Mais atrasos, depois mais litígios... A matriz de riscos nos contratos
também é importantíssima, a generalização da matriz de riscos. O que nós
temos hoje? Temos uma teoria que está na lei que diz que em
determinadas hipóteses, como caso fortuito, força maior ou fato do
príncipe — ou seja, conceitos bem abertos —,
deve ser feito o reequilíbrio do contrato. Aí em cada contrato a
Administração faz um exercício de futurismo, de previsão dos possíveis
riscos que podem acontecer nesse contrato. Com a nova lei, o particular
já fica sabendo de antemão que o risco é dele. Fica melhor esclarecida a
regra do jogo.
ConJur — Há mais alguma boa novidade a ser destacada?
Rafael Valim —
Há, sim. A partir da entrada em vigor da nova lei, a execução de cada
etapa da obra vai ser precedida de depósito em conta vinculada dos
recursos financeiros, ou seja, a Administração vai ter de depositar o
dinheiro em uma conta bancária e ele ficará disponível. Isso é
superinteressante também. É um avanço porque se tenta evitar o fenômeno
lamentável da indisponibilidade financeira. Esse é um ponto em que a lei
tenta dar alguma salvaguarda ao contratado, e não se trata de
privilégio, nada disso, mas de salvaguardas que podem resultar em
benefício de todos. Quando a gente coloca muitos riscos nas costas do
contratado, ele vai precificar esses riscos.
Então, as medidas que a lei apresenta, longe de buscar privilegiar o contratado, aumentam a segurança jurídica e, em última análise, podem resultar em benefício de todos. A gente precisa de segurança jurídica para todos, para o agente público, para as empresas que estão contratando com o poder público, para todo mundo. Isso, sim, é eficiência econômica, e não deixar as coisas nas mãos do particular como se isso fosse uma panaceia que vai resolver tudo.
Mateus Silva Alves é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 4 de abril de 2021, 7h41
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