Meu dileto amigo Celivaldo Carneiro partiu para a eternidade sem se despedir, mas deixou boas lembranças, como o artigo jornalístico que escrevemos a quatro mãos a respeito do saudoso médico santareno Paulo Jennings, publicado à época do acidente no jornal “O Liberal”, que documentei em meu livro de memórias e agora reproduzo para recordação.
E-book: Reflexões, memórias e outros escritos - José Ronaldo Dias Campos
“Morte de médico santareno vira caso científico
Paulo Jennings era um apaixonado por Santarém, principalmente pelo seu 'Pindurí', comunidade ribeirinha do rio Amazonas, neste município, onde vivenciou inesquecíveis aventuras na infância e na juventude, a quem devotava, orgulhoso, os mais profundos sentimentos de paixão, prazer e alegria.
SANTARÉM – Vai virar caso científico da genética forense em razão da metodologia usada para a comprovação da morte do médico Paulo Alberto Jennings.
Pelo menos dois artigos científicos estão sendo preparados para serem publicados brevemente em revistas especializadas. Um na revista de genética forense e outro em publicação de medicina tropical. No primeiro, os autores são o perito criminal federal Carlos Benigno Vieira de Carvalho, em parceria com o médico Erick Jennings. No segundo, Erick Jennings assina sozinho.
Nos dois, será feito o relato de todo o caso, que por ser pioneiro cientificamente, deverá servir de base para utilização do peixe piracatinga como bio-indicador da presença de cadáveres nos rios. Esse bio-indicador também pode auxiliar na identificação de corpos em naufrágios, muito comuns na região Amazônica.
As piracatingas, de onde o material foi retirado, foram pescadas 48 a 72 horas após o desaparecimento de Paulo Jennings, no local do acidente. De seus estômagos foram coletadas amostras de tecidos, que analisados por macroscopia, verificou-se como sendo de pessoa humana.
Esse material foi então trazido a Santarém, para o Laboratório Celso Matos, onde o bioquímico Moacir Borelli fez análise microscópica confirmando ser pele humana, acrescentando, inclusive, que o material já havia sofrido alteração por conta das enzimas do estômago dopeixe.
De Santarém, o material genético, junto com amostras biológicas de mucosa oral e de sangue das irmãs de Paulo Jennings, as senhoras Eilah Cáceres e Maria Orleans, além de sua filha, Beatriz Jennings, foram encaminhados pelo delegado Sílvio Birro ao Instituto de Criminalística, em Brasília.
Lá os peritos criminais federais Carlos Benigno Carvalho e Jeferson Badaraco submeteram os materiais a exames para obter perfis genéticos ou haplótipo de DNA mitocondrial, utilizando diferentes protocolos laboratoriais. Após várias etapas de extração, purificação e concentração, as amostras foram submetidas à extração de DNA por PCR e posteriormente submetidas ao analisador genético com auxílio de programas computacionais, possibilitando determinar através desse resultado o haplótipo de DNA mitocondrial com qualidade suficiente para confrontos.
Dos confrontos entre o haplótipo de DNA mitocondrial obtido a partir da amostra com aqueles provenientes de suas irmãs mostraram que os mesmos são compatíveis. Indivíduos pertencentes à mesma linhagem materna, como irmãos, filhos da mesma mãe, por exemplo, apresentando o mesmo haplótipo de DNA mitocondrial.
Comido por piracatingas
"Quero morrer no rio Amazonas e depois ser engolido por uma piraíba", profetizava sempre enfático, mas em tom jocoso, o médico cardiologista Paulo Alberto Marques Jennings, todas às vezes que mergulhava extasiado nas águas do rio Amazonas, quando por aqui vinha passear duas ou até três vezes por ano.
Profecia ou não, não foi no estômago de uma piraíba, mas de piracatingas, onde foram encontrados restos de seu corpo, depois do mergulho fatal de cima do toldo do barco Aruã, no dia 8 de outubro de 2011, no mesmo rio Amazonas, onde ele gostaria de morrer.
Paulo Jennings era um apaixonado por Santarém, principalmente pelo seu 'Pindurí', comunidade ribeirinha do rio Amazonas, neste município, onde vivenciou inesquecíveis aventuras na infância e na juventude e a quem devotava orgulhoso, os mais profundos sentimentos de paixão, prazer e alegria.
O cardiologista, uma espécie de embaixador de Santarém na capital paulista, especializado em prestar auxílio e assistência aos seus conterrâneos que buscavam tratamento de saúde naquela metrópole, promoveu em 2011, como de costume, mais uma das suas pescarias esportivas, a sétima, desde que se propôs pela primeira vez a convidar médicos e amigos de sua convivência e trabalho diário nos hospitais paulistanos para conhecer Santarém, a região e suas belezas.
Era, por assim dizer, uma fuga planejada do estresse, da rotina, do trânsito caótico e do corre-corre imposto pelo labor de quem sobrevive nos grandes centros urbanos. E Paulo Jennings vivia intensamente isso há mais de 30 anos, opção feita ainda nas salas de aula do Colégio Dom Amando.
A bordo do barco Aruã, na manhã do dia 8, Paulo Alberto partiu de Santarém com destino ao rio Cuminá, no município de Oriximiná, junto com 12 outros amigos para pescar. Seriam quase 18 horas de viagem. No andar superior da embarcação, bebiam, comiam e se divertiam como nunca antes. Por volta das 15 horas, quando navegavam à altura da comunidade de Januária, já no município de Óbidos, Paulo Jennings e dois outros amigos foram chamados por um tripulante e avisados que o almoço estava servido. Os dois amigos atenderam ao chamado prontamente. Paulo Jennings, como costumeiramente gostava de fazer, gritou ao comandante para reduzir a marcha da viagem, pois ainda iria dar um mergulho no rio antes da refeição, quem sabe até pegar reboque nas voadeiras que vinham atrás do barco. Lembranças e brincadeiras típicas da juventude santarena, de quem fazia estas travessuras diariamente em frente a pracinha, no antigo trapiche da cidade, onde o médico santareno costumava se divertir. Se era considerado exibicionismo para muitos, para Paulo Jennings estes mergulhos tinham o mais puro sabor do prazer, da alegria, da intensa satisfação que lhe aflorava quando navegava pelos rios da Amazônia.
Ele então pulou de flecha, como chamamos, no rio Amazonas, de cima do toldo do Aruã. Caiu de peito n'água, ficou imóvel, provavelmente desmaiado, mas ainda flutuou por alguns instantes, para desaparecer e não ser mais encontrado.
Foram inúteis os vários dias de busca ao corpo de Paulo Jennings, feitas por equipes do Corpo de Bombeiros, familiares e amigos, na tentativa de encontrá-lo. A correnteza forte, a falta de visibilidade e a profundidade média de seis a oito metros nesse local do rio Amazonas praticamente impediram de encontrar seus restos mortais.
Ele parece ter pulado com a certeza e determinação de que aquele seria um salto para a eternidade.
Peixe necrófago e voraz
Necrófago, territorialista e voraz são estas as principais características da piracatinga, um bagre de médio porte que pode atingir até 45 cm de comprimento, pertencente à família Pimelodidae.
É uma espécie muito comum em toda a extensão do rio Amazonas, mas, diferencia-se de todos os demais bagres por possuir duas fileiras de dentes no pré-maxilar, ao contrário das placas de dentes viliformes.
Entre pescadores, a piracatinga além de quase não ser consumida na região, é chamada de urubu das águas, por sua preferência por comer cadáveres ou qualquer matéria em decomposição.
São vários os relatos em toda a Amazônia que contam histórias de se ter encontrado restos de cadáveres no estômago de piracatingas. Aqui mesmo na região oeste do Pará, no livro, 'Zeca, o BBC de Santarém', do historiador Cristovam Sena, há a abordagem sobre as circunstâncias da morte de outro médico, Everaldo de Sousa Martins (pai da prefeita Maria do Carmo), que morreu afogado no igarapé do Atumã (afluente do rio Amazonas), em 1982.
Segundo relata no livro, José da Costa Pereira, o Zeca BBC, "a voadeira em que viaja Dr. Martins e mais três pessoas, bateu com a hélice no fundo e virou. Nessa virada ele [Dr. Martins] talvez tenha sido apanhado pela hélice e sangrou, aí os peixes caíram em cima e devoraram... lá adiante o seu Antônio Pereira e outros, pescando, pegaram umas 3 ou 4 piracatingas e na barriga toparam um pedaço de pele que era do umbigo, com cabelo. Pegaram um pedaço na barriga de outro, pedaço de víscera que era humana, porque nós mandamos fazer exames em Belém. Era víscera, a pele do umbigo, tinha um pedaço do couro cabeludo e a outra com um pedaço de carne, quer dizer, que tinham acabado de retirar do corpo do Martins. "
Os restos mortais do médico Everaldo Martins foram encontrados seis dias depois do seu desaparecimento bem próximo onde os pescadores haviam fisgado as piracatingas. "Eu tirei o corpo, a caveira com o resto... não tinha nem fedor de cadáver, demonstrando que os peixes comeram na hora. Ele foi agredido pelos peixes... os peixes comeram a carne ainda na hora com ele preso" [embaixo da voadeira], relata Zeca BBC no livro.
Nas semanas de buscas ao corpo do médico Paulo Jennings, a história quase que se repetiu, embora o corpo do médico não tenha sido encontrado até hoje.
O conhecimento desses hábitos da piracatinga e por experiência em pescarias, seu sobrinho, o também médico Erick Jennings, teve a intuição de pedir aos seus amigos pescadores, Rolinha, Paulista e Joãozinho, que participavam das buscas, que pescassem piracatingas nas proximidades do local onde ele havia desaparecido.
Nove piracatingas foram capturadas e, em cinco delas, Erick encontrou, em seus estômagos, vestígios de pele humana detectada pelo exame macroscópico realizado no local. O mesmo material foi então enviado para laboratório em Santarém e o resultado inicial foi confirmado por exame microscópico que se tratava de tecido humano.
Como Erick Jennings havia tomado todas as precauções na coleta do material e diante das constatações dos exames laboratoriais feitos em Santarém, o delegado da Polícia Civil enviou as amostras ao Instituto Nacional de Criminalística, da Polícia Federal, em Brasília, solicitando perícia para constatação de vínculo genético do material com amostras coletadas das irmãs e da filha do médico Paulo Jennings, que resultou positivado, permitindo a lavratura do óbito por decisão judicial.”
NOTA: Texto escrito por Celivaldo Carneiro e José Ronaldo Dias Campos, publicado em 16 de dezembro de 2012.
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