domingo, 7 de outubro de 2018

Juízes não podem questionar pertinência de testemunhas de defesa

Opinião

A consolidação da ordem democrática vem rotineiramente sendo ameaçada. Não raro presenciamos o Judiciário extrapolar os seus limites de atuação, adentrando em esferas de indiscutível competência de outros poderes. Ainda que cônscios, a população ignora esta usurpação e este silêncio legitima, dia após dia, a figura do Judiciário como superego da sociedade[1].
Em verdade, cuida-se de uma questão de suma importância que perdura há anos. O célebre jusfilósofo Ronald Dworkin[2] já alertava que era preciso saber a forma como os juízes decidem, e se eles divergem, outrossim, era imprescindível conhecer as razões da sua divergência. De lá pra cá, continuamos sem saber como os magistrados decidem e, esta ausência de unicidade acerca do paradigma teórico do Direito, é uma das causas da atual crise democrática.
São inúmeras as decisões antidemocráticas que presenciamos no nosso mister, mas uma delas tem se sobressaído no processo penal e causado espécie àqueles que respeitam as normas como fruto de uma construção política advinda dos representantes legítimos do povo.
A vertente inquietação refere-se a postura que alguns magistrados têm adotado no curso da persecução criminal ao refutarem os argumentos ventilados em sede de resposta à acusação, decidindo assim pelo prosseguimento do feito. Nesse aspecto, ao invés de designar a data da instrução processual com a consequente expedição das intimações, os juízes têm notificado a defesa primeiramente para que se pronuncie, explicando a pertinência das suas testemunhas arroladas em relação aos fatos imputados pela acusação, sob pena de, não o fazendo, presumir o seu desinteresse na produção da prova oral.
Repise-se. Sem qualquer provocação ministerial, o Judiciário está impondo ao réu que justifique, por intermédio da sua defesa técnica, qual a contribuição que as suas testemunhas vão apresentar na elucidação do fato imputado, de forma que a sua revelia ou impertinência culminarão na supressão do direito a produção desta prova.
Em um primeiro momento imaginamos tratar-se de uma inovação legislativa. No entanto, após acurado manuseio do Código de Processo Penal — e, felizmente, ausência de norma neste sentido —, veio à tona as lições de Dworkin. A partir deste aporte significativo, passamos a compreender qual seria a concepção do Direito sob à ótica destes magistrados, isto porque, o modo como eles decidem nos dizem mais do que a mera solução ao caso específico, ele revela, com efeito, o entendimento que possuem acerca do papel que exercem no Estado Democrático de Direito. Para eles, a atuação do juiz pode extrapolar a aplicação/interpretação das leis, alcançando o patamar de criá-las, sempre que a prática assim determinar.
Tal afirmação é fruto da inexistência de permissivo legal em nosso ordenamento pátrio que autorize expressamente a referida determinação judicial ou possibilite uma interpretação coerente, sistemática, neste sentido. Absolutamente não. Interpretar é dar sentido e, consoante Friedrich Muller[3], todo sentido da norma deve caber na literalidade do texto. O que se vislumbra, ao revés, é que a decisão que os magistrados vêm impondo à Defesa é manifestamente discricionária!
No aspecto, não há como sustentar que a referida determinação encontraria respaldo no artigo 396-A do Código de Processo Penal, o qual, por sua vez, estabelece o dever da Defesa qualificar e requerer, quando necessário, a intimação das testemunhas arroladas. Justificar a partir deste texto o multimencionado comando judicial chega a ser teratológico. Primeiro porque o enunciado normativo é claro ao cuidar da intimação das testemunhas, exigindo a anuência do réu para tanto. Ademais, não há qualquer sentido que se extraia desta norma que coadune com a guerreada determinação judicial. Ora, em que passagem do texto resta descrito a faculdade dos magistrados solicitarem explicações acerca da pertinência das testemunhas com os fatos imputados? Evidente que em nenhuma!
Ao adotar esta postura, os magistrados incorrem em um inquestionável subjetivismo, solipsismo — como já abordado por Lenio Streck[4] em suas obras. Ou seja, estão decidindo conforme a sua consciência individual, haja vista que, no seu juízo do que é certo ou errado, ouvir testemunhas ditas abonatórias[5] em nada poderá contribuir com a elucidação do fato específico, mas apenas na dosimetria de eventual reprimenda, o que configuraria estratagema da defesa para prolongar um processo judicial. É uma tentativa (infrutífera) de filtrar — sob o crivo do seu decisionismo — quais das testemunhas arroladas devem verdadeiramente ser ouvidas em juízo.
Olvidam-se, entretanto, que impor a necessidade de explicação acerca da correlação entre as testemunhas arroladas e os fatos incriminadores limita a defesa técnica e resulta por antecipar indevidamente a estratégia defensiva. É, portanto, uma evidente ofensa às garantias constitucionais da ampla defesa, contraditório e devido processo legal, sem considerar, ademais, a dificuldade em promover a indigitada pertinência face a complexidade dos casos penais.
Não se pode deixar de consignar, ainda, que esta determinação transparece uma visão preconceituosa ao exercício do direito de defesa, ultrajando frontalmente à paridade de armas, visto que à acusação não recaí idêntica exigência. Logo, aliado a violação ao princípio da isonomia entre as partes processuais, a adoção desta postura revela, sem mais poder, o preconceito com que estes magistrados enxergam a defesa.
Em que pese, não causará tamanha espécie se decisões com lapsos desse jaez forem chanceladas pelos tribunais superiores, diante da atual legitimação popular acerca de posturas pragmatistas (ou neoconstitucionalistas) de alguns ministros, que frequentemente abandonam por completo o Direito a seu bel-prazer, bastando, para tanto, que as consequências práticas assim justifiquem, consoante a consciência individual de cada um.
Às vezes o óbvio precisa ser dito e repetido à exaustão: o Direito não é (e nem poderia ser) aquilo que o magistrado quer que ele seja. Enquanto a sociedade não perceber que as decisões judiciais devem ser devidamente perfectibilizadas de acordo com o sentido do direito projetado pela comunidade política, amargaremos o autoritarismo do Judiciário e a consequente crise democrática. No mais, continuamos esperançosos que as vozes das ruas compreendam o risco destes comportamentos judiciais baseados em critérios não-jurídicos — e, por conseguinte, antidemocráticos —, antes que reste ceifado, por completo, o nosso direito constitucional de defesa.

[1] MAUS, Ingeborg. O Judiciário como superego da sociedade: o papel da atividade jurisprudencial na ‘sociedade órfã’. Trad. Martonio Lima e Paulo Albuquerque. 2000.
[2] DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014. p.03.
[3] MULLER, Friedrich. Métodos de Trabalho de Direito Constitucional. Trad. Peter Naumman. Porto Alegre: Síntese, 1999.
[4] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. Constituição Hermenêutica e Teorias Discursivas. 6ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
[5] "Constitui, pensamos, um ilegal cerceamento a prática de alguns juízes de limitar sua produção em juízo, exigindo a substituição de seus depoimentos por declarações escritas (o que acarreta a violação do contraditório — por ser uma produção unilateral e fora da audiência — e também da oralidade, característica da prova testemunhas, nos termos do art. 204 do CPP" (AURY, Lopes Jr. Direito Processual Penal. 9ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

Gabriel Andrade de Santana é advogado, mestrando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), especialista em Ciências Criminais e Direito Penal Econômico e graduado pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).
João Daniel Jacobina Brandão de Carvalho é advogado, mestrando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), especialista em Direito Público e Direito Eleitoral e graduado pela Universidade Católica de Salvador (Ucsal).
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 6 de outubro de 2018, 6h21

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