terça-feira, 5 de junho de 2012

Cerâmica tapajônica


Conversando recentemente com Cristovam Sena, titular do Instituto Cultural Boanerges Sena, sobre a inédita coleção de cerâmica do falecido advogado Ubirajara Bentes de Sousa, pai do meu cunhado Ronaldo Campos e do meu dileto compadre “Birinha”, o amigo me transmitiu, via e-mail, o texto que repasso aos leitores do blog:

“Cerâmica Arqueológica da Amazônia”
(Coleção Ubirajara Bentes de Sousa) 

Foi no início da década de 60, na residência do Dr. Ubirajara Bentes de Sousa, que vi pela primeira vez um muiraquitã original, hoje peça rara da cerâmica tapajônica aqui em Santarém. Acompanhava meu pai que ia participar de reuniões sobre futebol, principalmente justiça desportiva, com suas leis que puniam os botinudos daquela época. O Boanerges carregava sempre a sua "Coletânea", livro que especificava as infrações e recomendava as respectivas punições aos indisciplinados. Livro de cabeceira do papai contém anotações e marcas que atestam o seu uso constante, que guardei e hoje faz parte do acervo da Biblioteca Boanerges Sena.

Enquanto eles discutiam futebol ficava a observar parte da coleção de cerâmica do Dr. Ubirajara, depois da reunião, ia escutar as histórias que o colecionador contava a respeito dos visitantes ilustres que recebia em sua residência. Cientistas e pesquisadores que vinham especificamente a Santarém para conhecer a famosa cerâmica arqueológica da Amazônia, tão bem representada em sua cobiçada coleção.

Havia grande interesse dos pesquisadores estrangeiros pelos vasos cariátides e de gargalo, muiraquitãs, estatuetas e cachimbos, mas as preferidas eram umas pedras lisas e pesadas, de diversos tamanhos e formatos, que depois fiquei sabendo que eram fósseis. Os visitantes queriam levar alguns desses fósseis para parti-los com ferramentas apropriadas em seus países de origem, mas o Dr. Ubirajara nunca permitiu. Até que um dia, um japonês trouxe as ferramentas na bagagem e teve autorização de serrar alguns poucos, matando a curiosidade de todos em saber o que existia dentro deles.

Segundo a paleontologia, todo vestígio ou resto petrificado de seres vivos que habitaram a Terra antes do holoceno e que se conservaram sem perder as características essenciais, é um fóssil. Para explicar melhor esse negócio, os entendidos afirmam que o holoceno aconteceu há 12 mil anos, quando teve início a expansão da civilização no planeta. Não pensem que é muito tempo não, doze mil anos para essa turma é ontem!  

Quando as serras do japonês, de altíssima rotação, terminaram de trabalhar, o que se viu foram peixes e frutas dentro dos fósseis partidos ao meio. Nos peixes, via-se com perfeição escamas e as espinhas compondo o esqueleto, nas frutas os gomos e sementes, dando a todos a impressão que se tratava de uma laranja. Posso até estar enganado, mas hoje tenho convicção de que aquele fóssil não era de uma laranja, pois essa fruta é originária da Ásia, chegando ao Brasil trazida pelos portugueses nos idos de 1530/40. A não ser que...

Com o passar do tempo, reconhecendo que não tinha mais condições de manter a coleção em sua residência, Dr. Ubirajara procurou resolver esse problema da melhor maneira possível, tentando resguardar o interesse da região. Colocou-a venda e ofereceu primeiramente ao município, na tentativa de mantê-la aqui, servindo de base para o futuro museu de arqueologia de Santarém. Não conseguindo sensibilizar os políticos da terra, partiu para o Estado, esperando que o Governo adquirisse as peças para o Museu Emílio Goeldi, onde ficariam mais distante, mas ainda perto da gente.

A segunda negativa o obrigou a negociar sua coleção com a Universidade de São Paulo, que contou com o apoio da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo), em 1971, dando origem ao Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. Pode até parecer que o Dr. Ubirajara foi mercenário nessa história, pois deveria ter deixado todo seu acervo em Santarém, para glória da nossa cultura, mas não foi. Ele se estivesse sendo movido pelo ganho maior, poderia muito bem ter negociado com os asiáticos ou europeus, em dólar, e faturado os tubos, pois eles pagariam o que fosse pedido, pelo valor arqueológico que a coleção representa.

Lendo o livro lançado em 2002 pela editora da USP, intitulado “Cerâmica Arqueológica da Amazônia”, escrito pela Dra. Denise Maria Cavalcante Gomes, fiquei sabendo que juntamente com a coleção do Dr. Ubirajara, a USP adquiriu outra coleção em Santarém, a do José da Costa Pereira (Zeca BBC), sendo que ambas continham 8.516 peças. O livro traz um catálogo com reproduções de 163 imagens das peças mais representativas da coleção dos dois mocorongos.

Dr. Ubirajara, antes de vender sua coleção para São Paulo e para não deixar Santarém sem nada que pudesse lembrar a cerâmica tapajônica, separou um bom número de peças e ofertou ao município, onde ficaram guardadas na Casa da Cultura, sendo depois transferidas para o Museu João Fona.  

Hoje, vendo o que restou das peças que o Dr. Ubirajara gentilmente nos cedeu, chego à conclusão de que felizmente a USP adquiriu as duas coleções, pois se assim não tivesse acontecido, pouco restaria do acervo para servir de base aos cientistas que estudam a complexidade cultural da Amazônia.

 

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