domingo, 23 de novembro de 2025

Patrimônio cultural secular não se licita, se protege

Há lugares que não são apenas construções: são capítulos vivos da nossa própria história. A Garapeira Ypiranga é um deles. Erguida em 1922 por iniciativa privada, com expressa autorização da Intendência Municipal de Santarém, em plena celebração do Centenário da República, ela carrega no próprio nome — Ypiranga — a marca de um país que buscava afirmar sua identidade e projetar seu futuro.

A Garapeira não é um prédio, é uma memória. Um pequeno pedaço da cidade que atravessou século, acompanhando transformações, testemunhando alegrias, acolhendo histórias e guardando silêncios. É patrimônio cultural material e imaterial; é afeto, convivência, tradição. É Santarém na sua expressão mais autêntica.

Dizem que, ali, sob a batuta da família Herbert Farias (leia-se Cacheado), guardiões da receita dos pastéis e da garapa que adoçaram gerações, desfilaram autoridades, artistas, jornalistas, professores e gente de toda parte. Presidentes da República já beberam garapa naquele balcão. E o cidadão simples, aquele que constrói o cotidiano da cidade, bebia ao lado deles. Porque a Garapeira sempre foi isso: um espaço democrático, onde a vida se encontra com a história sem pedir licença.

O Município e o Estado do Pará reconheceram oficialmente sua importância cultural. Não foi à toa. Ali pulsa uma parte profunda da identidade tapajônica. Ali mora um microcosmo do que Santarém tem de mais seu.

E é por isso que causa perplexidade a ideia — tão inoportuna quanto desrespeitosa — de submeter a Garapeira Ypiranga a uma licitação. Um patrimônio secular não se licita: se protege. Não se entrega ao acaso da burocracia: se preserva. Não se trata como um ponto comercial: se cuida como bem de todos.

A Agenda 2030 da ONU, firmada por 193 países, entre eles o Brasil, no ano de 2015, é clara: a proteção do patrimônio cultural é dever do Estado. E a Constituição, nos seus artigos 215 e 216, reafirma esse compromisso. A Garapeira atravessou governos, regimes, constituições (1891, 1934, 1937, 1946, 1967, 1988) e crises sem perder sua alma. Só isso já deveria bastar para garantir-lhe respeito.

Cuidar da Garapeira Ypiranga é um gesto de responsabilidade para com a cidade que fomos, que somos e que deixaremos. É reconhecer que a memória também é infraestrutura; que cultura também é patrimônio; que história também é direito.

Antes de qualquer decisão administrativa, vale lembrar uma verdade simples: a Garapeira não pertence ao poder público; pertence ao povo.

Que o bom senso — esse velho conselheiro que nunca deveria ser aposentado — prevaleça.

sábado, 15 de novembro de 2025

Pensata

Para o crítico, o menor deslize em um texto primoroso é como um fio de cabelo no caviar: macula toda a obra.

segunda-feira, 10 de novembro de 2025

COP-30: lembrete

 Lembrando nossas lideranças:

A COP-30 bem poderia destinar parte dos vultosos recursos internacionais anunciados a ações realmente práticas, como canalizar a água fétida dos esgotos que ainda escorrem para o leito do azul-cristalino rio Tapajós, um dos mais belos do mundo e símbolo maior da Amazônia que tanto se proclama proteger.

domingo, 9 de novembro de 2025

A complexa linguagem da lei

 

As leis são complexas, escritas em vernáculo elitizado, como se fossem dirigidas apenas aos homens cultos, iniciados no mister jurídico. O povo, natural destinatário da norma, fica do lado de fora, olhando pelas frestas de um código que não compreende, mas que precisa obedecer.

Como interpretar algo que não se entende? Como exigir obediência a um comando cuja leitura não lhe permite acesso? O cidadão comum, diante do sistema jurídico, é como quem tenta decifrar um enigma latinizado — e ainda sob pena de sanção, se errar a tradução e malferir o comando normativo.

Dizem os doutos que “ninguém pode alegar ignorância da lei”. Bonito preceito. Mas experimente explicá-lo a quem mal sabe ler. Como exigir conhecimento do que o próprio Estado redige de modo cifrado?

A lei, sempre genérica e abstrata, que deveria servir ao povo, parece escrita contra ele — não por maldade, mas por hábito, costume, tradição. Há séculos, os legisladores falam do andar de cima, sem clareza comunicativa, confundindo até mesmo o Supremo Tribunal Federal, em sua composição plena, que não raro empata (5 x 5) em seus vereditos, deixando o voto de minerva ao presidente da cúpula do Judiciário nacional.

O jurista, por hábito, orgulha-se da forma rebuscada; o cidadão, por medo, resigna-se à opacidade do texto. E assim seguimos, entre o erudito e o analfabeto, com uma Justiça que escreve em latim a quem soletra na leitura.

Talvez um dia a lei aprenda a falar a língua do povo. Nesse dia, quem sabe, o cidadão também aprenda a acreditar na lei — e, por conseguinte, na Justiça.